sábado, novembro 30, 2013

CABELOS,,, PRA QUE VOS QUERO?

O orgulho da pequena cidade do interior do interior de São Paulo era a imagem do Senhor Morto, em tamanho natural, deitado em sua urna de vidro. Linda e ainda por cima (afirmavam) milagrosa! A bem da verdade os milagres não se deviam à imagem, mas sim aos cabelos, fartos e ondulados que emolduravam o rosto do Cristo. Segundo contara o avô do Coronel Raimundo, doador da imagem, haviam pertencido a um santo frade que, em tempos remotos, por ali andara fazendo o bem sem olhar a quem. O frade devia ser bem estranho com tal cabeleira, mas ninguém duvidava da origem, mesmo porque milagres ocorriam em profusão por ali, beneficiando pessoas, animais e plantas.

A imagem só saía da alcova, junto à sacristia, em dias da procissão do Senhor Morto que era seguida até por habitantes das cidades vizinhas, que se faziam presentes só para contemplá-la e pedir bênçãos. Às vésperas da Semana Santa o vigário convocou as três beatas titulares para o piedoso mister de preparar a imagem para a procissão de sexta feira. Cabia-lhes lavar e passar a roupagem e, sobretudo escovar os lindos cabelos, deixando-os brilhantes e bem distribuídos sobre os santos ombros. Como nos anos anteriores esta pia tarefa era executada sob atenta observação do Vigário e no mais absoluto e respeitoso silêncio. Afinal tratava-se da toalete do Senhor.

A beata da vez, ou seja àquela que por sorteio caberia o escovar dos cabelos, delicadamente desprendeu a cabeleira da Santa Cabeça e para espanto dos demais iniciou uma dança selvagem, cabeleira erguida no braço estendido, proferindo gritos pra lá de profanos. Passado o estupor dos espectadores evidenciou-se a desgraça: baratas em profusão caiam ao chão. O padre e as duas outras beatas aderiram à dança sapateando no chão. Só quando terminado o extermínio puderam se dar conta da extensão da desgraça: as ditas baratas haviam se banqueteado com a cabeleira que agora exibia um belo corte punk!

Desolados murmuravam a seu turno expressões adequadas ao cunho santificado do evento: Virgem Santa! Danou-se! Só pode ser coisa do mardito! E entre choros e ranger de dentes começaram a dar tratos a bola de como resolver. A procissão sem a imagem era inimaginável. Tinha que ser reunido o conselho. O conselho era formado do Padre, do Coronel Raimundo e de D. Arminda, dona do único salão de beleza – O Corte da Fada Madrinha - e líder social da cidade. As beatas foram encarregadas da convocação dos membros, não sem antes serem advertidas que, fora estes, a ninguém, mas ninguém mesmo, poderia ser divulgado o ocorrido.

O Conselho reuniu-se na sacristia, a portas fechadas e... a pátria foi salva por D. Arminda que solene declarou: “se me arranjarem cabelos eu faço uma peruca”. Maravilha! Mas e os cabelos? Onde obtê-los? Voltaram a cair em depressão. O padre, como sempre ocorria em momentos de aflição, foi até a nave da igreja acender uma vela, ao pé da imagem de Santa Edvirges. E teve um alumbramento com a visão das três beatas que, cabeças inclinadas, ajoelhadas, rezavam fervorosamente por um milagre! E este se fez! Santa Edvirges dada a gravidade do fato havia agido sem a vela mesmo. Arrebanhando a batina, o Padre retornou correndo à sacristia, aos gritos: os coques! Os coques! A compreensão dos demais foi imediata.

Os coques, há anos cultivados pelas três beatas, forneceriam uma quantidade mais do que razoável de cobertura capilar. Estava resolvida a matéria prima. O problema agora era o convencimento das beatas. Este coube ao Padre que, com argumentos irrefutáveis, transformou a tosa em honraria e em inúmeras indulgências. Nem bem dito, foi feito. D. Arminda, na calada da noite, procedeu a tri-mutilação capilar das beatas em lágrimas, e passou horas e horas trancada no salão (fechado por motivo de doença na família) lavando, pintando e amaciando os cabelos que, segundo ela estavam imundos! Armada a peruca, D. Arminda aplicou-lhe enormes bobs coloridos e respeitosamente e piedosamente ajustou-a à Santa Cabeça. A visão da imagem nesta situação bizarra só foi revelada ao Padre, que horrorizado, não cessava de benzer-se, e à sua criadora maravilhada com sua obra. Um secador portátil ventava sobre a cabeça do Senhor, ao som de uma Ave Maria rezada pelo Vigário, em contrição pelo desconforto a que estava submetendo o Divino.

E eis que chega a manhã do dia da procissão. D. Arminda, munida de pente, escova e laquê trancou-se na alcova e ao sair, revelou aos olhos do Padre e das beatas (que afinal de contas dado o sacrifício a que foram submetidas mereciam as primícias da visão) um dos penteados mais em voga na época - o cabelo gatinho: liso e longo com as pontas voltadas para fora. A procissão ocorreu sem incidentes embora a visitação da imagem, que acontecia depois, tivesse formado filas incalculáveis. A ausência do coque das beatas e a possível inconfidência das próprias, orgulhosas de se haverem tornado parte integrante do Senhor, haviam provocado uma enorme curiosidade.

Mas o mais estranho, o que ninguém nunca soube explicar, é que os milagres continuaram a ocorrer e, pelo que sei, ocorrem até hoje.

2005

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