O
orgulho da pequena cidade do interior do interior de São Paulo era a imagem do
Senhor Morto, em tamanho natural, deitado em sua urna de vidro. Linda e ainda
por cima (afirmavam) milagrosa! A bem da verdade os milagres não se deviam à
imagem, mas sim aos cabelos, fartos e ondulados que emolduravam o rosto do
Cristo. Segundo contara o avô do Coronel Raimundo, doador da imagem, haviam
pertencido a um santo frade que, em tempos remotos, por ali andara fazendo o
bem sem olhar a quem. O frade devia ser bem estranho com tal cabeleira, mas
ninguém duvidava da origem, mesmo porque milagres ocorriam em profusão por ali,
beneficiando pessoas, animais e plantas.
A
imagem só saía da alcova, junto à sacristia, em dias da procissão do Senhor
Morto que era seguida até por habitantes das cidades vizinhas, que se faziam
presentes só para contemplá-la e pedir bênçãos. Às vésperas da Semana Santa o
vigário convocou as três beatas titulares para o piedoso mister de preparar a
imagem para a procissão de sexta feira. Cabia-lhes lavar e passar a roupagem e,
sobretudo escovar os lindos cabelos, deixando-os brilhantes e bem distribuídos
sobre os santos ombros. Como nos anos anteriores esta pia tarefa era executada
sob atenta observação do Vigário e no mais absoluto e respeitoso silêncio.
Afinal tratava-se da toalete do Senhor.
A
beata da vez, ou seja àquela que por sorteio caberia o escovar dos cabelos,
delicadamente desprendeu a cabeleira da Santa Cabeça e para espanto dos demais
iniciou uma dança selvagem, cabeleira erguida no braço estendido, proferindo
gritos pra lá de profanos. Passado o estupor dos espectadores evidenciou-se a
desgraça: baratas em profusão caiam ao chão. O padre e as duas outras beatas
aderiram à dança sapateando no chão. Só quando terminado o extermínio puderam
se dar conta da extensão da desgraça: as ditas baratas haviam se banqueteado
com a cabeleira que agora exibia um belo corte punk!
Desolados
murmuravam a seu turno expressões adequadas ao cunho santificado do evento:
Virgem Santa! Danou-se! Só pode ser coisa do mardito! E entre choros e ranger
de dentes começaram a dar tratos a bola de como resolver. A procissão sem a
imagem era inimaginável. Tinha que ser reunido o conselho. O conselho era formado
do Padre, do Coronel Raimundo e de D. Arminda, dona do único salão de beleza –
O Corte da Fada Madrinha - e líder social da cidade. As beatas foram
encarregadas da convocação dos membros, não sem antes serem advertidas que,
fora estes, a ninguém, mas ninguém mesmo, poderia ser divulgado o ocorrido.
O
Conselho reuniu-se na sacristia, a portas fechadas e... a pátria foi salva por
D. Arminda que solene declarou: “se me arranjarem cabelos eu faço uma peruca”.
Maravilha! Mas e os cabelos? Onde obtê-los? Voltaram a cair em depressão. O
padre, como sempre ocorria em momentos de aflição, foi até a nave da igreja
acender uma vela, ao pé da imagem de Santa Edvirges. E teve um alumbramento com
a visão das três beatas que, cabeças inclinadas, ajoelhadas, rezavam
fervorosamente por um milagre! E este se fez! Santa Edvirges dada a gravidade
do fato havia agido sem a vela mesmo. Arrebanhando a batina, o Padre retornou
correndo à sacristia, aos gritos: os coques! Os coques! A compreensão dos
demais foi imediata.
Os
coques, há anos cultivados pelas três beatas, forneceriam uma quantidade mais
do que razoável de cobertura capilar. Estava resolvida a matéria prima. O
problema agora era o convencimento das beatas. Este coube ao Padre que, com
argumentos irrefutáveis, transformou a tosa em honraria e em inúmeras
indulgências. Nem bem dito, foi feito. D. Arminda, na calada da noite, procedeu
a tri-mutilação capilar das beatas em lágrimas, e passou horas e horas trancada
no salão (fechado por motivo de doença na família) lavando, pintando e
amaciando os cabelos que, segundo ela estavam imundos! Armada a peruca, D.
Arminda aplicou-lhe enormes bobs coloridos e respeitosamente e piedosamente
ajustou-a à Santa Cabeça. A visão da imagem nesta situação bizarra só foi
revelada ao Padre, que horrorizado, não cessava de benzer-se, e à sua criadora
maravilhada com sua obra. Um secador portátil ventava sobre a cabeça do Senhor,
ao som de uma Ave Maria rezada pelo Vigário, em contrição pelo desconforto a
que estava submetendo o Divino.
E
eis que chega a manhã do dia da procissão. D. Arminda, munida de pente, escova
e laquê trancou-se na alcova e ao sair, revelou aos olhos do Padre e das beatas
(que afinal de contas dado o sacrifício a que foram submetidas mereciam as
primícias da visão) um dos penteados mais em voga na época - o cabelo gatinho:
liso e longo com as pontas voltadas para fora. A procissão ocorreu sem
incidentes embora a visitação da imagem, que acontecia depois, tivesse formado
filas incalculáveis. A ausência do coque das beatas e a possível inconfidência
das próprias, orgulhosas de se haverem tornado parte integrante do Senhor,
haviam provocado uma enorme curiosidade.
Mas
o mais estranho, o que ninguém nunca soube explicar, é que os milagres
continuaram a ocorrer e, pelo que sei, ocorrem até hoje.
2005
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