Jorge
Pontual me enviou um extraordinário arquivo: artigos e reportagens da revista O
Cruzeiro, digitalizados e me fez dar uma cambalhota no tempo. Volto para 1946.
Tinha eu dezesseis anos e me deliciava com Rachel de Queirós, dona da última
página, e com as crônicas de Jean Manzon. E eis que recupero no arquivo uma
destas crônicas em que surge a espantosa declaração do editor que a apresenta.
Nela, num delicioso relato, Manzon descreve uma visita à Mistinguette, misto de
vedete, cantora e bailarina, francesa de belas pernas. Mas, como já disse foi a
apresentação do texto que me perturbou.
Eis
a transcrição, palavra por palavra: “... agora ei-lo, de câmera em punho, descobrindo
outras intimidades da vida da impressionante e quase centenária Mistinguette”. Nada de extraordinário não fosse o
centenário aplicado a uma pessoa que na época tinha setenta e seis anos!
Exatamente a idade que terei daqui a pouco. Quase centenária? Eu?!!! Como é que
hoje acordo com a mesma idade de Mistinguette? Outro dia mesmo ela era uma
velha coroca que eu imitava cantando as músicas de Maurice Chevalier. Por que
eu as cantava. Hoje, vendo daqui, acho que devia ser um tanto fora do esquadro
daquele tempo eu cantar que “Valentine
avait des touts petits petons’. Mas a avó, os pais e os tios não eram lá
muito enquadrados e desde que a pronúncia fosse perfeita sorriam complacentes.
Sou
interrompida em minhas divagações pelo telefonema de um amigo. Antes mesmo de
dizer bom dia, informo: estou quase centenária! Tá maluca, ele exclama do outro
lado! Não! Estou velha. Centenária. Tá no O Cruzeiro. Foi o Manzon quem falou.
Levo algum tempo para esclarecer que não estou bebendo às nove horas da manhã e
nem acordei completamente gagá. O amigo tenta me acalmar: naquela época ter
setenta e seis anos era ser muito velha. E hoje não é, criatura? Ele começa a
gaguejar e sai pela tangente: as coisas mudaram... Desligo irritada comigo
mesma. Como é que ele quase vinte anos mais moço vai entender o que está
acontecendo? Idade nunca foi um problema, penso. Por que isto agora?
Dou-me
conta de que para mim idade até hoje excluía o centenário. Os oitenta e o
noventa são palatáveis, digestíveis, aceitáveis. Por que não os cem? Faço
alguns cálculos. Se eu chegar aos cem vou ter filhos de quase oitenta e ninguém
tem filhos de quase oitenta e muito menos netas de quase sessenta. Elas, as netas, teriam apenas dezesseis anos
menos do que tenho agora! Revolucionando a aritmética e a lógica, sou possuída
de uma certeza absurda: posso ter netas dezesseis anos mais moças do que eu.
Algum resquício de bom senso ainda resta e eu começo a duvidar desta certeza.
Há algo de errado com este raciocínio. Refaço as contas cuidadosamente e
percebo o desvio. Respiro aliviada.
Mas
o “quase centenária” ainda aflige. Não
há como duvidar: está escrito. E as coisas escritas e publicadas têm uma enorme
força. Vou para o número seguinte da revista. Cartas dos Leitores. É isso! Com
certeza reclamaram da afirmação do repórter fotográfico. É óbvio que havia
leitores de setenta e seis anos à época. Só que a seção Cartas dos Leitores não
foi digitalizada. Uma lacuna imperdoável. Não há como tirar esta dúvida. As
pessoas que tinham setenta e seis anos em 1946 com certeza não devem ter ficado
por aqui só para esperar meu telefonema de consulta aos cento e trinta e seis
anos! E mesmo que exista alguém tão
longevo deve ser em algum lugar como a Tanzânia da qual nem sei o DDI. Sempre
desconfio que na Tanzânia ocorrem coisas extraordinárias. Além disto, estas
pessoas certamente não leriam O Cruzeiro.
Me
recrimino: por que é que eu dei um fim na coleção? Nem me lembro quando foi que
as pilhas empoeiradas liberaram espaço no meu quarto. Faz tempo, muito tempo.
Quase cem anos! Que imbecilidade, censuro! De novo o telefone: é uma das netas.
Tomo coragem e pergunto: você me acha centenária? A surpresa se manifesta: por
que isto agora, vó Anna? Penso rápido: ela não negou. Fez outra pergunta. Está
disfarçando. Mas não desisto e explico: está publicado no O Cruzeiro. Ela não
tem a menor idéia do que é O Cruzeiro. Uma crônica do Jean Manzon, explico. Ele
entrevistou a Mistinguette. Ela agora
está em pânico: olha só vó, eu tenho que sair agora. Mamãe quer falar com você.
Uma
longa pausa evidencia que ela relata à mãe o teor da conversa. Mamãe vem ao
telefone: que gente é esta de quem você está falando? Melhor não explicar. Vou
acabar tendo que dizer que ela é filha de uma centenária. Isto seria cruel. Me
perco na informação de uma receita de rocambole de espinafre. Melhor assim. Ela
não insiste. A conversa com a neta vai ficar na crônica familiar como uma de
minhas muitas esquisitices. Mas a divulgação desta é muito mais rápida do que
imaginei.
De
novo o telefone: é o filho. Tudo bem, mãe? A voz tem um tom preocupado e
cauteloso. Afirmo que estou bem. Ele insiste: falou com Dora hoje? Volto ao
rocambole. Ele faz um Ah... e desiste
informando que minha nora precisa falar comigo. De novo a pausa para
repasse das informações. Ela vem ao telefone: tudo bem com você? Falou com
Dora, hoje? Vou ter que falar de novo sobre o rocambole. E é o que faço
acrescentando a receita da picanha ao forno. Por que uma coisa é certa: nem sob
tortura confessarei que estou quase centenária. Vou começar a enganar idade!
2006
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