sexta-feira, novembro 29, 2013

É LEGAL DEMAIS!


O menino levanta o rosto sorridente e me informa: estou estudando conjuntos. É legal demais! Você sabe conjuntos? Curiosa eu havia me debruçado sobre ele e seu caderno. O “você sabe conjuntos” me faz entrar na máquina do tempo.


Tenho 15 anos e escuto emocionada a história do jovem matemático Èvariste Galois, narrada pelo velho professor Sodré da Gama.  Apaixono-me no ato. Por ele, por Galois. A Teoria dos Conjuntos deixa de ser um “ponto” da matéria. Galois, morto num duelo aos 20 anos, se faz presente em cada uma das notações da equação no quadro negro. E este se transforma nas páginas e páginas da carta que Galois escreveu horas antes da morte certa, legando ao mundo a descoberta da solução das inequações irredutíveis por radicais. Vou às lágrimas ao escutar, na voz de Sodré da Gama, suas últimas palavras ao irmão que chorava ao lado do leito de hospital para onde o levaram ferido de morte: não chore Alfredo, eu preciso de muita coragem para morrer aos 20 anos!
 
Volto da viagem à minha adolescência e o menino ainda sorri olhando para mim. Sorrio também para ele ao afirmar que sei, sei sim, sobre conjuntos. Ele volta para o caderno e eu para Galois. Engraçado! A emoção daquele dia em que o conheci volta agora. Mais forte. O rosto do menino funde-se ao rosto de Galois do qual nunca me esqueci, mostrado num desenho a bico de pena, por Sodré da Gama. A imagem entra comigo no elevador e me acompanha ao entrar em casa. O que quer me dizer? O que significa? O que tem a ver esta criança com Galois?

De repente me dou conta: quer coisa mais emocionante do que ver um menino no século XXI ser ajudado por um quase outro do século XVIII? À margem da carta que escreveu horas antes de morrer e na qual desenvolveu seu genial raciocínio várias vezes a anotação: não tenho mais tempo.  Pena. Pena que ao preocupar-se com o genial desenvolvimento não tenha podido parar para pensar que o que estava legando ao morrer levaria a que mais de duzentos anos depois, milhões de meninos do mundo inteiro teriam seu estudo de matemática simplificado e tornado emocionante. Aquele tempo que julgava faltar ampliou-se numa progressão espantosa depois de sua morte.

Quantos Galois existirão hoje? A preocupação com o futuro das gentes não importa nem mesmo aos que hoje se julgam imortais quanto mais a aqueles que se encontram a beira da morte como Galois. As pessoas andam vivendo como se não tivessem qualquer compromisso com o futuro que virá depois de sua morte. Com honrosas exceções o que se vê é o imediatismo, o “deixa pra lá”. Talvez tenhamos chegado a isto porque calou mais fundo o “aprés moi le déluge” de Luis XV do que o “não tenho mais tempo” de Galois.  Pena. Pena mesmo.

Tomada de uma urgência irresistível precipito-me para o elevador torcendo para que o menino ainda esteja no pátio às voltas com os conjuntos. Respiro aliviada ao ver a cabeça ainda inclinada sobre o caderno.  Ele não se espanta quando eu, aflita, peço: pára um pouco, preciso te contar uma história. Crianças são bem mais intuitivas do que nós e muito mais receptivas ao inesperado. Que bom que seja assim. E atento e interessado o menino escuta a história de vida de outro menino. Às vezes sério, muito sério e por vezes rindo como ocorreu com as opiniões dos professores do primário sobre Galois. Ele comenta: se deram mal, né? O cara era cabeça! Revolta-se com os absurdos cometidos para impedir que Galois ingresse na Escola Politécnica ou apresente seus estudos: que sacanagem! Caraca! Esse tal de Fourier tinha mais é que ser preso.  Animada por perguntas e exclamações chego até a véspera da morte e à  carta. O menino triste se revolta: ele não devia de ter lutado, não. Foi mal! Foi mal! E curioso: tem um filme dele? Devia de ter. To sacando porque conjunto é legal demais. O cara era fera, né?  

Esteja onde estiver agradeço a Galois por mim e por todas as crianças do mundo: você era mesmo fera, cara!
2010

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