quinta-feira, outubro 31, 2013

VERÃO DE 45

Malandramente tomo o título do belo filme emprestado mesmo porque nenhum outro serviria para sintetizar a delícia da memória que me ataca ao atravessar a rua Siqueira Campos na esquina da Av. Nossa Senhora de Copacabana. Fico parada com o peso da memória arriscando-me e ser confundida com uma velha desorientada que não se dá conta de onde está nem para onde quer ir. E, de certa forma não estou me dando conta mesmo. Porque, nítida, na esquina, surge a visão d’A Americana.

Vejo-me entrando em meio ao bando de adolescentes vindo da sessão das quatro do Metro Copacabana, do filme do sábado. Não importa qual. Eram todos maravilhosos e obrigatórios. A gente nem consultava jornal para saber qual seria. Pra quê? Esther Williams nadando, Veronica Lake cobrindo metade do rosto com os cabelos ou Tyronne Power nos fazendo suspirar eram todos extraordinariamente sedutores. Além disto, a garantia da mão quente do namorado, a possibilidade de um beijo (discreto) fazia com que nos transportássemos para tela muito antes de Woody Allen ter feito isto.

Nós, as meninas, nos seus quinze anos radiosos; os rapazes pouco mais velhos. Na verdade era nosso segundo encontro do dia. De manhã nos havíamos visto na praia (posto cinco e meio). E nos veríamos uma terceira vez na festa daquele sábado (em casa de quem?). Mas a delícia era “A Americana” onde podíamos exercer o nosso recente e conquistado direito de falar inglês pedindo invariavelmente um sundae de butterscotch e waffles com maple. O garçom se desesperava porque jamais nos ocorreu fazer o pedido coletivo informando apenas a quantidade. Cada um repetia exatamente o mesmo, a seu turno.

A guerra havia banido o francês de nossas vidas. O inglês, os marinheiros americanos e a coca-cola haviam invadido Copacabana. Na verdade detestávamos coca-cola, criados que havíamos sido à base de suco de frutas e guaraná. Mas não se podia pedir guaraná com a pronuncia impecável que exercíamos ao pedir “coke, please”. Vai daí que o jeito era engolir até habituar ou abandonar este vício assim que a idade nos aconselhasse melhor (que foi o que acabou me acontecendo). Os marinheiros americanos não eram considerados de “bom tom”. Ficavam “faladas” as meninas que deles se aproximavam. Mas sua presença maciça, o som das vozes e o mascar dos chicletes concorriam para criar o clima de estarmos em Hollywood.

Juro que parada ali na esquina cheguei a ver entrar o Aluízio com seu casaco de pelo de camelo, em pleno verão.  O casaco lhe havia sido dado por um tio recém chegado dos Estados Unidos e era cópia de um usado por Errol Flynn. Como deixar de usá-lo mesmo no verão? Morríamos de inveja embora não de calor, como ele. 

A guerra estava quase terminada e o clima de euforia nos contagiava embora os rapazes, amargurados, tivessem que abandonar a ideia de um heroico alistamento na RAF. Esta decisão que haviam tomado motivou, durante pelo menos um ano, lágrimas de nós namoradas apavoradas com o que certamente se tornaria um fato assim que completassem dezoito anos. Para eles foi decepcionante este fim de guerra antes que pudessem se tornar heróis.

Esta decisão nos havia sido comunicada justamente n’A Americana. Aliás, tudo era comunicado por lá. Conversas profundas eram a tônica. Sobretudo sobre o futuro. Claro que nos casaríamos com os namorados (dos quais a maioria de nós – hoje - nem lembra mais o nome) e viveríamos uma vida muito mais interessante que a de nossos pais.  Muitas de nós iríamos para Hollywood tentar (e certamente conseguir) uma carreira vitoriosa nas telas. Não sei o que faríamos dos que então seriam maridos e nem me lembro se estes prometidos apoiavam nosso projeto. Para tanto já treinávamos com afinco.

Eu, nadadora do Fluminense, fui mais de uma vez execrada pelo Cachimbáu (meu treinador) ao tentar imitar as evoluções de Esther Wiliams em momentos absurdamente impróprios do treinamento e recusando-me a usar a toca impossível de ser colocada sobre a escultura capilar caprichosamente armada com Gumex.  Meu encanto por cavalos e o importante papel que tinham em minha vida faziam com que fosse extremamente fácil transformar-me em Elizabeth Taylor em National Velvet, embora Mickey Rooney não fosse o tipo de galã ideal. Mas o meu belo e puro sangue inglês Dream Boy não ficava nada a dever ao Velvet. Vi o filme duas vezes para conferir a tosa da crina buscando torná-lo igual ao modelo. Até hoje tenho uma foto dele (comigo em cima) embaixo do vidro da mesa ao lado do micro.

Me dou conta de poucos dos que me leem saberão do que estou falando. Mas se A Americana não mais existe e Dream Boy há muito já se foi, ainda resto eu, velha tonta, parada na esquina, e muito, muito feliz por ter vivido o Verão de 45.
2006


quarta-feira, outubro 30, 2013

TERROR NOTURNO

Por mais de uma vez estas crônicas falaram de Fräulein Grete. Até mesmo num pedido de desculpas pelo ódio infantil que lhe tinha, já que na provecta idade em que me encontro entendi que sua intenção era das melhores ao tentar me educar com rigidez militar.
Tinha eu apenas quatro anos e uma de minhas queixas era a diferença que havia entre o trato dispensado a mim e aquele de que era alvo meu irmão de dois anos. Ele, entregue aos exclusivos e ternos cuidados de Babá, maravilhoso ser humano de quem tenho até hoje enorme saudade. Até mesmo de Fräulein ele recebia carinhoso tratamento: meine schöne (meu lindo) enquanto eu ouvia um ríspido: richten sie (endireite-se!) destinado a garantir um futuro saudável para minha coluna. O que, diga-se de passagem, não aconteceu ou porque eu não obedecia ou porque a postura correta na infância em nada garante a higidez na velhice.
Outra queixa, mais que justificada, era a confusão que se estabelecia para o ato de falar. Morávamos em São Paulo, numa chácara linda e, sei lá por que razões Mamãe decidiu que além da Governanta alemã eu deveria ir para o colégio francês L’Assomption. Isto misturado ao linguajar do choffeur italiano (não se dizia motorista naquela época) complicou muito a forma de me expressar. Eu era acordada em português por Babá, tomava café em alemão com Fräulein, ia para o colégio ouvindo Seu Anselmo cantar a plenos pulmões em italiano antes de ingressar num mundo francês!
Inexplicável também era o fato de que, acordada por Babá, eu era posta para dormir por Fraulein. E é ai que entra o terror noturno. Fräulein me fazia rezar em alemão, ajoelhada ao lado da cama, uma oração que para mim tinha um significado muito desagradável. Hoje, totalmente esquecida deste idioma, sou capaz de como um papagaio repeti-la sem entender o que estou dizendoIch bin kein, soll niemand drin wohnen als Jesus allein. Amen. Fui conferir no Google a grafia e se a tradução correspondia à exortação marcada para sempre em minha memória: unicamente Jesus deveria habitar meu coração! E meu irmão, e meu cachorro, e meus pais, e minha irmã recém-nascida? Que droga, eu pensava! Tudo bem que Jesus também lá estivesse, mas só Ele?! Tentei discutir isto com Fräulein. De nada adiantou. Ou melhor, ela me fez alguma reprimenda pelo que julgou ser uma blasfêmia. Não deve ter usado esta palavra, mas pelo enfático tom do qual me lembro devia significar isto ou coisa pior.
Mas o terror vinha depois desta afirmação de exclusiva moradia cardíaca. Já eu na cama, Fräulein sentava-se ao lado e começava a cantar! A intenção devia ser, é claro, dar-me o carinho de uma canção de ninar. Mas o fato é que a cantoria soava como uma terrível ameaça que se repetia noite após noite. E as palavras que também papagueio agora sem ter ideia do que significam (também transcritas e traduzidas com auxilio do Google) eram, naquela época, por mim compreendidas e vaticinavam algo terrível:
Guten Abend, gut' Nacht!
Mit Rosen bedacht,
mit Näglein besteckt,
schlupf unter die Deck'!
rgen früh, wenn Gott will,
wirst du wieder geweckt.

A última frase significa: amanhã se Deus quiser você vai acordar! E se Deus não quisesse? Eu podia morrer durante a noite! Um horror! Pior é que esta possibilidade me parecia bem provável como castigo por minha recusa de manter somente Jesus no coração teimando em povoá-lo com seres humanos!  Noite após noite esta ameaça se renovava e ao ser acordada a cada manhã por um anjo terreno (Babá) eu respirava aliviada. O mais apavorante é que esta mesma canção em português era cantada por Babá para meu irmão tendo na última frase o desejo de que uma bela musica embalasse seu sono. Ou seja, a ameaça era mesmo só a mim dirigida.
Não mais podendo agüentar o horror perguntei a Papai se de fato eu poderia não acordar. Ele riu e disse que era maluquice e que eu não deveria me impressionar com isto. Estabeleceu-se então uma discussão teológica, totalmente incompreensível para mim, entre Mamãe (muito devota) e Papai (nem tanto) que longe de me esclarecer provocou duvidas muito serias. Reivindiquei então ser posta na cama por Babá.
Era uma solução e me foi concedida esta benção, com uma condição: Fräulein se encarregaria do preparar para cama e Babá me garantiria bons sonhos! Vai daí que eu continuaria a ouvir a voz de comando dada sempre à mesma hora e da mesma forma: zähne putzen (escovar os dentes). Esta é uma das raras frases que ainda digo em alemão sabendo o que estou falando. E certamente a que me credenciará como idiota se algum dia me for necessário mostrar proficiência neste idioma!
2012


terça-feira, outubro 29, 2013

PIRANTE NATAL DE PAPAI NOEL

Pouco ou nada disto se fala.  O mundo atual, de crise em crise, ocupa todo noticiário não dando espaço para a notícia da falência da fábrica de brinquedos de Papai Noel. Pois é: faliu! Hoje é apenas um pequeno barracão onde são fabricados poucos brinquedos destinados as crianças de até dois anos de idade.

O desemprego foi enorme entre os duendes operários. Uma tragédia! Só os mais jovens e atilados foram selecionados para montar os novos departamentos: o tecnológico, o de compras e o de expedição e entrega. Fabricar, não mais. Seria impossível adquirir o conhecimento necessário para criar os objetos de desejo que deslumbram os que ultrapassam a barreira dois anos: IPODs, IPADs, Video Games, Smartphones, Tablets e que mais haja.

A disputa entre Microsoft, Apple, Samsung, Hewlett Packard, Motorola, Nokia tornou a compra dos presentes um belo inferno (com o perdão da má palavra em se tratando da região celeste). A menos que completas especificações sejam feitas no pedido (feito por e-mail e não carta), como decidir? Convenho que não seja de bom tom para uma santidade privilegiar um fabricante ainda que os poucos duendes especialistas tenham adquirido conhecimentos suficientes para fazer uma análise comparativa, por exemplo, entre os sistemas operacionais Ubuntu e Android. 

Com uma lista monumental de pedidos de gadgets, Papai Noel, desconsolado, sente-se pressionado pelas duas facções que se formaram dividindo os duendes numa apaixonada disputa: Apple ou Microsoft? O bom velhinho preocupou-se, sim, com a formação tecnológica de duendes especialistas. Mas descuidou-se de sua própria. Confuso meio aos argumentos de grupos que se digladiam apaixonadamente se vê incapaz de decidir. A maior proximidade que conseguiu deste setor é o manejo um kindle, do qual não se desgruda: sua provecta idade agradece a comodidade de ler livros enormes sem lhes sentir o peso. E ele adora isto e suspira desanimado de não poder fazê-lo naquele momento em que uma discussão apaixonada envolve os duendes sobre a escolha de tablets a serem enviados. Humildemente pergunta o que é Wi Fi. Consegue uma unanimidade: todos os duendes riem dele. Este ato de desrespeito nunca houve e Papai Noel percebe a dura realidade: é um excluído digital. Está perdendo o controle de seu reino, o respeito de seus duendes. Vai ver até as renas estão mais capacitadas.

Para piorar os duendes encarregados do setor de distribuição e entrega resolveram equipar o trenó com um potente GPS. Argumentaram que irá agilizar as entregas. Desconsolado Papai Noel vai ter que se adaptar digitando as enormes especificações de endereços que sempre soube localizar com perfeição, de memória. Um terror!

A coisa ainda se torna ainda mais complicada quando o pedido se refere a um celular. A quantidade de marcas e especificações é espantosa. Pior ainda é que, depois do advento destes, os duendes se recusam a comunicar-se com ele pessoalmente. Mais uma vez o verbo agilizar entrou em ação. Equipado com um Smartphone Papai Noel desliza os dedos pela telinha numa tentativa desesperada de conseguir falar, mas só consegue tirar fotos, baixar e-mails, acionar o GPS, ouvir música e acessar lembretes e ver, pela enésima vez o vídeo da Galinha Pintadinha. Antes era só abrir a porta e gritar: Rupert! E lá vinha Rupert, humilde e risonho como sempre. Agora nem sabe mais se é mesmo o Rupert que responde da seção de embalagens com a qual conseguiu se conectar quando de fato queria ligar para a seção de compras.

Mas a tragédia maior está por vir. A IBM anuncia para daqui a cinco anos uma nova possibilidade: o envio de ordens mentais a um computador que as executará!! Ou seja, o sujeito pensa e este pensamento é transferido para a maquina que transforma o desejo em realidade!! Papai Noel se apavora. Agora não mais pelo efeito que isto terá em seu já decadente reino. Mas no mundo dos adultos: pais, tios e avós de seus clientes. Tragédias acontecerão certamente. Até lá (cinco anos!) não se descobrirá uma forma de controlar pensamentos. Vai daí que, como é normal, pensamentos inconfessáveis que ocorrem a todos serão transformados em ações! Cruz Credo!

Pensamentos sem controle que ocorrem a qualquer mortal serão serão executados! O “gostaria de dar um tiro neste sujeito”, "Tia Maroquinhas bem que podia bem cair doente e não vir à ceia de Natal”, “esta mulher chatíssima devia sumir”, “se esta mulher (ou homem) continuar a me tentar agarro ela (ou ele) aqui mesmo” vão ocorrer automaticamente. Uma estranha e nova instrução fará parte da educação das crianças: “não se esqueça de desligar o computador antes de pensar”. Vai ver um chip será implantado nas renas fazendo com que o GPS transmita diretamente a seus cérebros os endereços de entrega. E foi aí que Papai Noel deslumbrado se dá conta de que o ganho será enorme: não mais precisará digitar os endereços. É só pensar! E sorrindo decide chamar Steve Jobs para um cafezinho sugerir que se antecipe à IBM na implantação desta nova maravilha. Não se trata de um favorecimento da Apple. É que ele está mais a mão.                    

2011

segunda-feira, outubro 28, 2013

A MENINA TANGARELA E O AMOR

        Não minha gente. Não errei a grafia. Foi criada por um estudante ao responder uma questão formulada num vestibular! E sabe-se lá por que razão achei que o som da palavra assim grafada reflete mais o sentido. Ao tomar conhecimento desta nova forma apareceu viva a imagem de uma menina “tangarela” com quem mantive um extraordinário diálogo. O ano era 1969; o local um avião; o percurso Rio/Brasília. Eu estava intranquila. Na verdade estava mesmo era com medo. Minha casa funcionava, naquela época, como refugio ocasional de pessoas procuradas pela ditadura. Em viagem o medo piorava porque a qualquer momento poderia ser um destino sem volta. Aeroporto era um lugar perigoso, naquela época. Foi com alívio que observei a menina que se sentava a meu lado.

Uns 18 anos, tipo hippie de fim de semana e muito bonita. O medo voltou ao ver sentar-se ao lado dela um empertigado senhor que vestia o terno como quem veste uma farda.  A menina não parava de falar. Ia visitar o namorado e dele fiquei sabendo tudo. A desaprovação do senhor sobre o que ouvia era visível em seu rosto. Quase chegando a Brasília ela pediu um copo d’água para tomar um remédio. O olhar do senhor disse tudo: remédio, coisa nenhuma! Olhou ameaçador a inofensiva pastilha de dramamina sendo ingerida. O olhar deve ter assustado a menina que derrubou o copo soltando um sonoro “Merda!”. O terrível olhar transformou-se em uma terrível censura. Ela voltou-se para mim.

-   Molhou a senhora?
-   Graças a Deus, não! Vou direto para uma reunião. Não ia dar para trocar de roupa.
-   E não podia ir molhada?
-   Claro que não!
-  É porque a senhora é formal. Eu não sou. Sou contra qualquer formalidade. Todas têm que acabar. Liberdade não existe quando existe formalidade.

O senhor inclinou-se para frente, olhar duro, exigindo de mim uma resposta à altura.

-   Mas pelo menos uma formalidade você segue.
-   Eu?! Imagina!
-   Você só me chama de senhora. Isto é uma formalidade.

A menina me olhou com assombro.

-   Ora, isso é...
-  ... formalidade. Eu não chamei você de senhorita!

O terreno estava se revelando perigoso e ela partiu para marcar território numa tentativa de me chocar. Vai daí que declarou num tom agressivo.

-  Sou pelo amor livre. O que é que a sen... você acha disto?
-  Acho que não pode ser de outro jeito. Quem é que pode ser a favor de um amor não livre? Todo amor é livre. Tem que ser.
-   Não é nada disso. Eu estou dizendo que ... que... vou pra cama com qualquer um que me dê vontade.

Olhei para o apopléctico general (devia ser um). Este homem vai enfartar, pensei. Voltei-me para a menina.

-  Ah! É isso! Mas me diz uma coisa: o que é tem isto a ver com amor? 
-  Acho que a sen..,. que você não entendeu nada. Eu vou explicar. A gente...
-  Precisa explicar não. Eu entendi perfeitamente. Você vai para cama com qualquer um que lhe dê na telha. Tudo bem.

A menina se assombra e o general bufa em minha direção.

-   Tudo bem como?!!!
-  Tudo bem, se é isto que você quer e gosta. A minha discordância é que isto seja amor. É inviável. Não dá tempo.
-   Não dá tempo de que?!!!
-   De amar, ora. Precisa um mínimo de tempo pra isso, você não acha?  É a mesma coisa que você olhar um prato de comida que nunca comeu e dizer: como isto é gostoso!

A menina me olhou insegura e o general com horror.

-   Vai dizer que eu não posso olhar o prato e pensar que é gostoso.
-  Claro que pode. E até deve, sabe? Mas não pode ter certeza de que é. Isto que você faz não é amor. É atração. É desejo. Mas vocês dizem tesão, não é?

O General estrebuchou na cadeira, acompanhado da pela trilha musical do grito da menina.

-   Caramba! Você tem filhos?
-   Tenho. A mais velha deve ter sua idade.  
-   E você é capaz de dizer uma coisa destas para ela?
-   Se ela achar que amor é isto vou dizer uma coisa destas, sim.

A “tangarela” emudeceu, rosto bonito refletindo confusão enquanto o rosto crispado do General procurava furiosamente um motivo para me enquadrar como uma ameaça à segurança nacional. Vai ver era um “legalista” porque naquela época motivo não era necessário. Para sorte minha, não encontrou. 

As rodas do avião tocaram o solo e a menina “tangarela” sorriu. Um sorriso doce, bonito de se ver.

-  Sabe? Com meu namorado... a gente teve tempo. Então      do jeito que você falou é amor, né? 

E foi sorrindo que eu respondi:

-  E livre, meu bem! 
 2006


domingo, outubro 27, 2013

REVEILLON COM OS MEUS

Olho incrédula para o convite: Reveillon da Terceira Idade! Eu, heim?! Até pra convite sou assim, rotulada! Irritada, rasgo o cartão. Mas ficam martelando em minha cabeça, o valor do ingresso e a programação anunciada: cem reais para ouvir orquestra do “nosso tempo”. Engraçado! Não falaram em dançar... Vai ver acham que seria demasiado esforço ou mesmo uma impossibilidade. Penso maldosa: no caso o ouvir a “orquestra do nosso tempo” pode ser também uma impossibilidade!

Pior é o alerta: você estará entre os seus! Que meus, cara pálida?! Coisa mais maluca. Sabem eles lá quem são os meus? Pra falar a verdade nem mesmo eu conseguiria relacionar todos os "meus" que povoaram minha já tão longa vida.  “Meus” que já partiram, “meus” que sempre o foram e permanecem sendo, “meus” novos que chegam sem aviso numa surpresa gostosa. E, certamente, novos ainda “meus” surgirão. Jamais imaginei classificá-los por idade. Este nunca foi um dado determinante de minhas inclusões na categoria “meus”.

Outro dia mesmo um novo “meu” surgiu trazendo solução para um grande problema: o filho de seu Álvaro. Seu Álvaro era um “meu” há mais de 40 anos. Um encanto de pessoa que manteve viva e ativa a jurássica máquina de lavar que eu teimo em conservar. Mas seu Álvaro se foi. Doeu. Seu Álvaro fez falta. Era um “meu” de respeito. Mas eis que o filho de seu Álvaro – Alvinho – que já conhecia pelas histórias do pai na hora do cafezinho, veio em meu socorro. O mesmo jeito, o mesmo sorriso, a mesma tranqüilidade de resolver qualquer enguiço. Tornou-se um “meu”. Não vou passar o reveillon com ele, mas isto acontecesse teria o maior sentido.

A Jô, faxineira, também não vai passar o reveillon comigo. Não tenho a menor ideia de onde estará ela nesta hora festejada. Provavelmente com o namorado, cego de um olho, um negão pra lá de simpático e a filha, mulata linda de morrer. Jô é um dos melhores “meus” que tenho. Com ela nunca passei o reveillon, mas passo a vida, desde sei lá quando, no diário do macio das roupas lavadas e da casa mais que limpa, onde ela deixa sua presença perfumada quando se vai.

E o Zé porteiro? Com este até que passei um reveillon. Havia decidido que não decidiria por qualquer dos lugares possíveis em companhia de “meus” viventes. Queria mais era ficar em casa sozinha, mas não solitária, com meus livros, com meus discos e com os “meus” que já se foram, sempre presentes e atuais e com os quais mantenho, esquizofrênica, longas e deliciosas conversas. Quase à meia noite lembrei que o Zé estava de serviço na portaria. Atraquei-me a uma garrafa de champagne e a duas taças e precipitei-me elevador abaixo. Ficamos conversando tomando champagne e ouvindo o barulho dos fogos. Ele já era um “meu”, desde que tinha vindo morar ali e vigiava meu filho mais moço, um pequeno demônio. Nesta noite Zé ficou sendo mais “meu” ainda de tanto que conversamos sobre os respectivos “nossos”.

Um pensamento ataca: tenho meus da minha idade? Sorrio na lembrança das “primas”. A mais moça nos recém sessenta e a mais velha regulando comigo. São sete ao todo. Vez por outra nos reunimos para um chá. O último foi até de madrugada. Em cada um destes chás (nos quais toma-se tudo menos chá) revelações estarrecedoras se fazem. Segredos da adolescência e da infância que foram assim classificados porque na época sua revelação teria efeitos devastadores. Você também namorou Roberto?! A descoberta de que o belo primo conquistou de forma sequencial três de nós, sem que ninguém jamais houvesse desconfiado, provoca gargalhadas. Positivamente as primas são “meus”.

Mas a maioria, a grande maioria dos “meus” é jovem, muito mais jovem do que eu. O mais moço é Ricardinho que está com uns cinco anos e que continua a tentar atropelar-me nos pilotis, agora com uma bicicleta ao invés de velocípede. Ricardinho provavelmente estará dormindo na hora da virada e não seria razoável convidá-lo para um reveillon. Ele é um “meu” matinal. Lá isto é.

E os “meus” de carteirinha? Amigos daqueles que aceitam a gente pelo conjunto da obra seja esta obra boa ou não. São poucos, mas são “meus” pra valer, para o que der e vier. E tem os “meus” cadeira cativa, atávicos. Os filhos, o irmão, a cunhada, os sobrinhos, as netas, seus namorados, o genro e a nora. Esta última é recente. Um meu surgido na surpresa que me deixou sem fala ao anúncio do filho (aquele que era um demônio!): vou me casar na semana que vem! E não é que a menina tornou-se um meu! Nunca os reuni a todos num reveillon. E precisa? Sempre que estão juntos, a visão do que foram e do que – imagino – serão, se faz presente. É só pousar o olhar em cada um deles e os vejo com a nitidez e a beleza de um filme de época, desde que surgiram e se instalaram como “meus”. O sonho e o desejo fabricam a visão do pra frente lá deles, num ano novo que se anuncia todos os dias. 

Dou-me conta que ainda não decidi sobre o reveillon deste ano. Mas uma coisa é certa, esteja onde estiver, estarão nele presentes, na realidade ou na lembrança, todos os “meus” de minha vida. Como sempre.
2005




sábado, outubro 26, 2013

FILA DOS IDOSOS III

Desoladamente, desço a Rua Voluntária da Pátria demandando a agência do BANERJ. Hoje é o IPTU de um terreno que tenho em Miguel Pereira. Só pode pagar lá. Para piorar, fecharam a agência do Humaitá.  A Voluntários, na altura de D. Mariana, é um perto-longe. Não tem sentido tomar ônibus, táxi ou pedir uma carona à minha filha. O jeito é ir a pé, sol a pino, aproveitando para resolver pendências, no caminho: a pilha do telefone sem fio, a tomada do abajur da cabeceira, a borracha da fazedora de café italiana, que em vão procuro, aquele botão que caiu e nunca será encontrado deixando aquele buraco entre os demais que teimam a se agarrar à blusa azul, o cartucho de tinta da impressora e outros itens daquela lista que organizo com perfeição e que jamais se esgota. As soluções insistem em ser sempre em menor quantidade que os acréscimos.

Mais eis que chego ao BANERJ e, passada a porta giratória, empenho-me na execução da operação que desenvolvi com perfeição desde os benditos 60 anos que me valeram o privilégio, entre outros nem tanto, da “fila dos idosos”. Passo 1: peço à última ou ao último colocado dos idosos que me guarde o lugar; passo 2: memorizo os traços dele ou dela; passo 3, repito os passos 1 e 2 na fila dos não idosos; garantidas as colocações nas duas filas, inicio o passo 4: percorro a fila dos idosos contando as pessoas, até a boca do caixa; passo 5: verifico quantos caixas estão atendendo esta fila; passo 6: divido a quantidade de pessoas pela quantidade de caixas e encontro o resultado “x”  (só executado quanto há mais de um caixa, o que é raríssimo); passo 7: repito os passos 4 a 6 para a fila dos não idosos e encontro o resultado “y”; passo 8: comparo o resultado “x” com o resultado “y”; passo 9: opto pela fila que probabilisticamente andará mais depressa. Quase sempre há um empate o que faz com que sempre duvide da eficácia do método.

Neste dia, no entanto, a fila dos idosos evidencia uma sensível vantagem sobre a outra. Volto à pessoa que era a última da fila não idosa (que, evidentemente, não é mais última), agradeço e dispenso a guarda do lugar. Sabe-se Deus por que, parto numa carreira desabalada para ocupar meu lugar na fila vencedora. O senhor empertigado e sério que me guardou o lugar está ainda no mesmo lugar.

Agradeço sorrindo. O senhor, solene, fala num leve tom de censura: eu sei o que a senhora fez e posso lhe garantir, minha senhora, não adianta! e termina num tom definitivo: pelos meus cálculos, qualquer que seja a fila, vamos ficar aqui uma hora e meia. Sufoco a curiosidade de perguntar como é o sistema de cálculo dele. Um tanto irritada afirmo: não creio. Existem 16 pessoas na minha frente. Numa média de 3 minutos por pessoa vai dar cerca de 48 minutos. Com uma margem de segurança para os que demoram um pouco mais vai dar, no máximo, uma hora. Um sorriso irônico surge no rosto do senhor: a média vai ser, no mínimo, de 6 minutos, e continua com um ar de desdém, a maioria tem contas a pagar. A senhora não considerou este dado no cálculo da sua média

Furiosa e num arroubo juvenil (e imbecil), pergunto: quer apostar? A resposta vem com escândalo: claro que não! O “claro que não” soa como um insulto. Velho cretino! Deve ser um chato em casa. Vai ver inferniza a vida de todo mundo. Ufa! A senhora gorda que estava no caixa está se mandando. Discretamente, para que o desagradável vizinho não perceba, consulto o relógio para marcar o tempo da senhora magra que avança ávida para a portinhola, bramindo ameaçadora um calhamaço de papeis. Raios! Ela vai pagar contas. Tem um carnê de INSS. Deus! Faça com que não tenha que ser calculada multa! Esquecida do velho observo hipnotizada o ponteiro dos segundos que roda inexorável contrapondo-se à imobilidade das costas da velha magra, em frente ao caixa. 

A voz do velho vem carregada de ironia: ela já está lá ha 4 minutos. Vai ficar mais de cinco. Até agora só recebeu dois comprovantes autenticados e tem no mínimo umas cinco contas na mão. Isto se não for pedir saldo e retirar dinheiro. Acredite, minha senhora, de uma hora e meia a duas horas! Vai dar o que eu afirmei – e num riso mau – ou mais! Finjo não ouvir.

Finalmente as esquálidas costas abandonam o caixa. Agora é a vez dos cabelos de um amarelo duvidoso, um capacete de laquê! Ainda se usa isso, gente?! Vitória! Fica apenas um minuto. Intrépidas e másculas avançam as calças jeans de um velho esportivo que dando uma pirueta, num tempo recorde e num andar lépido, passam, céleres, demandando a saída, enquanto lentos chinelos avançam para o caixa. Coitada, deve ser joanete. Diz que dói pra burro. Numa rapidez incrível a mulher avança. É... não são joanetes. É desleixo mesmo! Os chinelos somem na porta giratória.

Não me contenho e cutuco as costas do velho. Falo num tom de desafio: foram três em menos de cinco minutos. Seis minutos daquela primeira e mais quatro minutos dos três últimos, dá dez minutos que divididos por 4 dá... (quase grita) dois minutos e meio!  E agora só faltam 12. Mantenho minha média! Vamos ficar aqui mais 36 minutos que somados aos 10 que já passaram dá 46 que é, praticamente, o que eu calculei! Seis minutos é um desvio desprezível, estatisticamente. O velho aponta para o caixa um dedo acusador, carregado de péssimas intenções, que se faz acompanhar de um arfar rouco, macabro. Uma senhora avança amparada por uma acompanhante que tem nas mãos uma mixórdia de papeis de todos os feitios e tamanhos. Agora, minha senhora, sua média, vai para o beleléu! Esse cretino falou beleléu! Não tem nada a ver com ele esta palavra. Este personagem jamais diria isto! É inverossímil! Decido: este homem não existe!

Ostensivamente, com grosseria, volto às costas ao velho e à fila e puxo conversa com a senhora portuguesa que, atrás de mim, parece tão simpática e otimista. A senhora sorri com bondade: está demorando, pois não? Acho que vamos cá ficar mais de uma hora! Humilhada e vencida, concordo: e pois

2004

sexta-feira, outubro 25, 2013

SABER E SENTIR

O grande e extraordinário poeta italiano Giacomo Leopardi (uma de minhas grandes paixões) respondendo ao irmão Carlo, que lhe que lhe pedira que falasse das maravilhas que via em Roma, escreveu:

 "delle gran cose che io vedo non provo il menomo piacere,   perchè conosco che sono maravigliose, ma'non lo sento" (*)

Ao reler esta frase, já muitas vezes lida por mim, pela primeira vez me dei conta da enorme distância que existe entre os verbos “saber” e “sentir”. Existem coisas que “sei” maravilhosas, mas que não me provocam qualquer deleite ou encantamento. Outras que jamais poderiam ser rotuladas de maravilha me causam uma emoção inexplicável. Isto acontece também em relação a pessoas que conheço ou conheci.

Vai daí que comecei a matutar sobre o único milagre que admito como tal e que tenho testemunhado por vezes na vida. Este se revela num fato que todos já tivemos oportunidade observar: a paixão duradoura e avassaladora que certos casais demonstram, desde o momento em que se viram pela primeira vez, e que dura até que um deles se vá deste mundo. Observando-os eu, e muita gente que os conhece, faz interiormente a pergunta: mas o que é que ele (ou ela) vê nela (ou nele)? São pessoas pra lá de comuns, sem dotes físicos, mentais ou financeiros que poderiam explicar esta paixão desmedida. E, no entanto ela existe sólida, invejável e linda de morrer. Os dois “sentem”! O inverso também é verdadeiro: mulheres e homens belíssimos, ricos e bem sucedidos são sabidos como tal sem que provoquem na maioria das pessoas qualquer sentimento.

Começo a fazer um balanço de pessoas, edificações, paisagens, animais, e que mais sei eu, que me fazem “sentir” e percebo que, provavelmente, esta relação poderá até chocar alguns dos leitores. Um exemplo disto são as cobras que acho lindas (até já tive uma jiboia que se chamava Julia). Emocionam-me com seu movimento sinuoso, pelo silêncio com que se movimentam, pela elegância e beleza das cores. Cavalos nem se fala. Adoro todo e qualquer um. Mas não sei explicar porque Dream Boy, meu puro sangue inglês, me emocionava muito mais do que outros que tive bem mais bonitos e melhores saltadores. Por outro lado tenho uma especial antipatia por galinhas que nunca me fizeram qualquer mal. Uma das pessoas que mais me encantou durante os muitos anos que trabalhei no SERPRO foi o Valentim, de quem sinto grande saudade. Ascensorista era ele. Não me perguntem por que me encantava. Sei lá eu por que. 

  Frequentemente recebo pela WEB uma enorme quantidade de fotos de suntuosas, modernas e extraordinárias edificações de Dubai, Mas, como Leopardi, diante das maravilhas de Roma, "conosco che sono maravigliose, ma'non lo sento!"

 Não sinto nada.  Absolutamente nada ao vê-las. Apenas sei que são belas. O mesmo acontece com alguns textos que reconheço bem escritos, com conteúdo mais que correto, pertinentes, mas que nada, nada mesmo me fazem sentir. No entanto eu ia quase às lágrimas com os versos de Tio Quirino, um velho escravo, muito velho mesmo, que vivia em Miguel Pereira em minha infância e que percorria os sítios recitando. Alguns me ficaram na memória: 

Dentro do peito tenho
Duas rolinha cantando
Uma já se foi embora
A outra ficou chorando
Mandei fazer uma casa
Com vinte e cinco janela
Pra casa com uma moça
Que eu tenho sentido nela.

Lembro de muitos outros. Mas por que deixá-los aqui registrados se provavelmente só em mim provocam este milagre do “sentir”? E os fícus de minha infância onde me escondia de Fraulein, a governanta alemã? Era tanto sentir que nem sei sei. Durante o ano letivo que me impedia de ir ao sitio, sentia saudades deles, dos fícus como se humanos fossem.. Vai ver eram mesmo. Diante das sequoias americanas que “sei” maravilhosas nada senti de parecido com o que sinto olhando a mangueira que vejo de minha janela, há anos. 

O gato Pandareco, ao lado do monitor, me lança um olhar penetrante e maroto causando certa aflição. Percebo que ele, que sempre lê tudo que escrevo, percebeu o sentido do que estou declarando e “sentiu” que o prazer que me causa é infinitamente superior ao causado por sua irmã Marta. Devolvo o olhar implorando para que não cometa a cruel inconfidência de comunicar isto a ela. Se isto acontecer nosso convívio, que já não é dos melhores, vai se tornar um tormento.  

(*) Pelas importantes coisas que vejo não experimento o menor deleite  porque sei que são maravilhosas, mas não sinto isto.        

2012

quinta-feira, outubro 24, 2013

DANE-SE O POLVO!

Nos idos de 1974 estávamos todos empenhados na implantação de um sistema de âmbito nacional. E, como sempre acontecia quando a abrangência era esta, teria que ser implantado nos diversos estados centralizadores da operação. Implantação é atividade não aconselhável para um único analista. A Lei de Brook funciona sempre e até que se obtenha sucesso total (estranhamente sempre obtido no prazo previsto), são noites sem dormir, aflições, urgências e padeceres inimagináveis que se tornam insuperáveis, se solitários. Vai daí que nove pares de analistas deveriam se deslocar nas todas as direções da Rosa dos Ventos.

Tratava-se de uma empresa democrática, embora a época em que isto se passava não o fosse. A postura democrática exigia a realização de uma reunião para que os viajantes escolhessem seus pares e destinos. Isto sempre provocava discussões apaixonadas nas quais a linguagem nem sempre primava pela elegância.

Na véspera da tal reunião fui chamada pelo Chefe. Grave, ele declarou: você é a única mulher. Surpreendi-me. Este fato nunca havido sido objeto de censura. A frase que se seguiu evidenciou que, fosse o que fosse, não se tratava de um agravo a minha  condição feminina e nem um repudio às minhas convicções feministas: o Gustavo estava numa situação dificílima. Completamente sem dinheiro. Embora penalizada, dei tratos a bola para estabelecer um link entre esta situação lamentável à minha recém percebida condição de mulher. Não era crível que isto pudesse ser a causa de estar o Gustavo – tão simpático e bom colega – sem um tostão. O cachorro quente que ele me havia oferecido na véspera, dificilmente teria dilapidado sua fortuna.

Fiquei aliviada com a explicação que veio logo a seguir: quando se formarem os pares, por favor, nem pense em ir com Gustavo. Ele, não podendo compartilhar o quarto de hotel com você, pagará uma diária mais cara e vai acabar não sobrando nada do que vai receber para viagem. Repita comigo cem vezes: posso viajar com quem quiser desde que não seja com o Gustavo. Entendeu bem?  O “entendeu bem”, ao contrário do que possa parecer, não era motivado por uma dificuldade minha em perceber o sentido de tão clara recomendação. Devia-se ao histórico de inúmeras distrações e trapalhadas que me acometem, relatadas em prosa e verso por toda empresa. Obediente repeti (apenas uma vez, é claro, embora mentalmente o tenha feito várias vezes até a bendita reunião): entendi! Posso ir com qualquer um que não seja o Gustavo. Fica tranqüilo. A expressão do chefe não estava lá muito tranquila, mas resignado ele resolveu entregar a Deus e à probabilidade: seria improvável que entre dezessete homens eu, mesmo esquecida da recomendação, fosse escolher o único que não devia ser escolhido.

No dia seguinte armou-se a reunião: como sempre a confusão democrática se estabeleceu iniciando pela formação das duplas. Todos se davam muito bem entre si, mas existiam situações particulares que motivavam preferências e recusas: um preferia a companhia de alguém que, como ele, era enlouquecido pelo delicioso polvo que se comia naquele restaurante à beira da praia e que eu detestava; outro se recusava a ir com alguém que fumasse (coisa que a maioria fazia); os que roncavam eram rechaçados; a companhia dos casados fiéis (acreditem! Muitos eram!) não era desejada pelos que programavam um bordejo, na madrugada, pelas zonas menos comportadas das cidades e, aquele que tinha medo de avião, era banido por todos porque era constrangedora a necessidade que tinha de ficar de mãos dadas com o vizinho, na decolagem, além das Ave Maria, murmuradas durante todo trajeto cujo texto ia ficando incompreensível dado o alto teor etílico necessário para enfrentar o suplício do voo.

A duração da discussão já estava ultrapassando o aceitável quando o chefe, numa tentativa de formar pelo menos um par, declarou, apontando para mim: ela é a única mulher. Esta declaração espantou a platéia, da mesma forma que me havia espantado na véspera. Todos estavam perfeitamente cientes desta diferença de gênero. Mas a esta afirmação, seguiu-se: por esta razão ela tem direito a escolher com quem vai. O olhar do chefe atingiu-me significando: olha lá o que você vai dizer. Retribui com um olhar de anjo significando: deixa comigo! Abri um sorriso e disparei firme: posso ir com qualquer um desde que não seja com o Gustavo!

Só percebi o que havia dito pelo silêncio que se seguiu e pelo tom magoado do Gustavo: mas por quê? O que foi que eu lhe fiz? Esquecida de que nunca é aconselhável tentar melhorar uma gafe retornei, gentil, com o que me parecia o argumento adequado e elucidativo: porque não posso dormir com você. Isto claramente atestava a possibilidade de dormir com qualquer dos outros, além de deixar claro que não considerava Gustavo digno de meus favores. Ele ficou realmente arrasado. Não que houvesse um dia acalentado este desejo. Mas a rejeição pública era, sem dúvida, humilhante.

Sem outra saída, um furioso chefe foi obrigado a esclarecer o real motivo, fazendo com que Gustavo se sentisse ainda pior do que eu o havia deixado. Mas antes que isto fosse feito, no silêncio que se seguiu a minha infeliz declaração, ouviu-se uma voz enfática e entusiasmada: oba! Dane-se o polvo! Vou com ela!

2005


quarta-feira, outubro 23, 2013

ACORDEMOS

Dizia-se “merci”... Seja honesta, Anna Maria: você ainda diz “merci”. Escapole no sem querer, revelando o que nunca me afligiu revelar: estou velha e só os velhos e os franceses, é claro, dizem assim. Minha mãe dizia “chauffeur”, ao invés de motorista; “restaurant” ao invés de restaurante; e Leblon, pronunciado por ela podia ser um bairro de Paris.

Os Estados Unidos não tinham vez, naquela pré-guerra. Mas a França!  No dia em que caiu subjugada pelo exército alemão eu, uma menina de 9 anos, fui levada à frente do Teatro Municipal para cantar a Marselhesa. Todos choravam e eu também chorei por imitação – é verdade – porque era aniversário de uma amiga e eu não iria. Esta lembrança me veio ao acordar em francês no primeiro dia deste ano: nunca tinha me dado conta! Reveillon significa Acordemos! Para que? Para um novo ano, para novos desafios, para novas empreitadas e sei lá eu mais o que.

Fazem-se planos, promessas, tomam-se decisões seriíssimas como perder 10 quilos, deixar de fumar, procurar o amor perdido caindo de joelhos, pedindo desculpas, implorando por uma nova chance. O engraçado é que se está, quase sempre, em meio a muita gente e as decisões tomadas são sempre individuais. Beija-se a pessoa que está ao lado, marido, namorado ou, hoje em dia, um ficante, pensando-se: este ano “eu”... 

No entanto acordar é necessário no todo dia. Acordar mesmo. Literalmente. Tirar os pés da cama e andar em frente. Ficar parada é que não dá pé. Isto não parece ser um grande problema mas... o problema não é o “andar”. É o “em frente”, significando um rumo certo para chegar a algum lugar. Agora – penso - danou-se! O “certo” pesa pra valer, tornando o problema imenso. O que é certo? Nem estou pensando no “certo” com um viés moral. Não! É o certo para cada um. Aquela opção que vai nos fazer bem. A gente passa a vida escolhendo entre opções, né? E nem sempre as certas.

Fica-se adulto no momento em que se percebe que ao fazê-las – as opções – se ganha alguma coisa e se perde outra. E fica-se velho, numa boa, quando não se culpa o mundo, a má sorte, alguém ou “alguéns”, pelo que deu errado. Fácil? Quem falou?! Não é, não. Nem um pouco. Mas faz parte do “réveillon”. Está nele embutido com todos os “fff e rrr” mesmo que “réveillon” não os tenha grafados. Ao pensar “fica-se velho”, surpreendo-me: não “acordei” para isto antes que ocorresse! 

É claro que pensava, nos idos da mocidade – e põe idos nisto - em aposentadoria, por exemplo. Discutia valores e fazia projeções (bem mais otimistas do que se revelou a realidade), mas, nestas projeções, estranhamente, nunca me vi velha. E um dia - pareceu-me que repentinamente - fiquei! E até que dei sorte: sem que houvesse planejado, meus maiores prazeres eram permitidos para a mais avançada idade desde que e enquanto a cabeça ajudasse: ler, ouvir música e conversar.

Para o desempenho deste último verbo as substantivas leitura e música irão garantir assunto, no momento em que dificuldades de locomoção não mais permitirem colecioná-los no mundo dos seres circulantes. No “réveillon” de todos os dias a grande “trouvaille” (penso em francês, imitando mamãe) é acordar para acumular prazeres, garantindo uma velhice que me permitirá, pedindo licença ao poeta, “chegar humana ao mar da morte”. 

2005

terça-feira, outubro 22, 2013

SABEDORIA EMERGENTE

Já lá vão, sei lá eu, quantos anos!  Eu trabalhava furiosamente para dar conta do sustento de três filhos e fui convidada por uma prima, bem mais abonada que eu, a passar quinze dias em sua casa de praia, para um justo descaso. “Noblesse oblige” que eu evite identificar local e época e, muito menos, a protagonista da história que ainda deve andar por aí. Mesmo sabendo que dificilmente leria o que quer que seja! De qualquer modo sua história é extraordinária demais para que eu a mantenha em segredo.

No cenário tipo “côte d’azur”, também estava hospedado um casal riquíssimo. Ela incrivelmente bonita e, se não abrisse a boca, seria a maior perfeição humana que eu já havia visto. Pelo casamento a moça humilde havia se transformado numa vicejante e riquíssima jovem senhora. O primeiro episódio ocorreu no momento de minha chegada num Volkswagen. Feitas as apresentações me foi perguntado pelo marido se estava muito calor no Rio.

Descrevi minha noite anterior passada quase em claro entre dois ventiladores e um balde de gelo. O rapaz comentou: sem ar refrigerado no Rio não dá! A beldade, num tom de estranha censura, revidou: que absurdo, meu bem! A resposta do marido veio irritada: absurdo por que?! E ela: vai dizer que você não percebeu?! O tom do rapaz tornou-se exasperado: você está maluca? O que há para perceber?  E ela triunfante: eu quis ser discreta e você está me forçando a explicar. Você não viu o carro dela? Não viu que ela é pobre e não pode comprar um ar refrigerado? O desconcertado rapaz imediatamente puxou outro assunto deixando para esganá-la numa situação mais reservada.

No almoço, talvez em penitência, a moça só se dirigiu a mim demonstrando um enorme interesse por minha vida agora sabida miserável. E veio a pergunta: no Rio onde é que você mora?  A informação do Humaitá, provocou a catástrofe. Penalizada e gentil, até carinhosa, ela sai-se com esta: não fica triste não! Existe muita gente bem que mora no Humaitá. Até em Botafogo! O marido apopléctico, lançando olhares furibundos à mulher, começou a demonstrar um enorme interesse por minha profissão. Buscando desesperado uma compensação para o meu estado de extrema penúria declarou enfático que só pessoas muito inteligentes podem ser analistas de sistemas! Resolvi que sendo inteligente, miseravelmente, morando no Humaitá e diante da possibilidade excepcional de ser gente bem, deveria me comportar e apenas relaxar.

Era apenas o primeiro dia e visto o prólogo era mais que provável que outras características minhas viessem a ser reveladas com igual acuidade. Mas para meu sossego fui deixada de lado. Quem sabe o marido proibiu que a mim se voltassem as baterias. Mas se não mais fui objeto de seus extraordinários comentários, ela não se furtou em fazê-los sobre assuntos outros tornando minha estadia muito divertida. Na praia - da moda e certamente “bem” - onde se situava a casa, pululavam personalidades importantíssimas seja pela riqueza, seja por serem expressivas no cenário político-econômico-cultural-social da época. E foi assim que num jantar oferecido por minha prima, dois senhores se destacavam. Ambos baianos: um grande plantador de cacau e o outro ligado à área econômica, conhecido especialista nesta cultura.

Conversavam animadamente sobre o dito cacau quando ela se aproximou. Tomados por aquela expressão de aceitação e de “venha a mim” que homens adotam quando mulheres belíssimas se aproximam os dois escutaram a pergunta que deu lugar à formulação de uma espantosa teoria econômica: os senhores sabem qual o efeito do cacau? O tom indignado em que foi formulada a pergunta a tão notórios especialistas provocou a atenção dos que estavam por perto, já conhecedores das maravilhosas intervenções da moça. Sorrindo os dois pedem que ela os esclareça. E vem a espantosa formulação: na Bahia, os homens ricos pegam o cacau, plantam o cacau, colhem o cacau, vendem o cacau e suas mulheres pegam o dinheiro do cacau e vão para a França e compram todos os lançamentos de Dior! Um horror! Quando a gente vai comprar não tem mais nada!

Como das outras vezes imediatamente alguém imprime outro rumo à conversa, desta vez comentando um quadro de Aldemir Martins. E o assunto volta-se para criatividade. Horror! A bela, desta vez para toda a platéia, descreve um bloqueio de criatividade do qual foi vítima num momento crucial de sua vida. Haveria um almoço de negócios ao qual ela deveria comparecer com o marido. Era no Bife de Ouro e exigia um vestido perfeito para a ocasião. Senhoras de empresários franceses estariam presentes e ela tinha que brilhar. Dior, nem pensar: o cacau impedia! Desesperada, frente ao seu costureiro, deu branco e ela sentia-se incapaz de descrever o vestido que deveria ser criado para a ocasião. Uma tragédia! Nenhuma ideia. Crise de criação total. Tal como Aldemir Martins frente a uma tela branca, impotente. E eis que, como um milagre, baixa a inspiração que a salvou de um desastre inimaginável. A criatividade que sempre demonstrou neste segmento de arte não a abandonara! E, segundo ela, o costureiro maravilhou-se diante de seu extraordinário poder criativo, ao dizer triunfante: um vestido do tipo que seria perfeito para eu ir ao meu joalheiro!
 2006

segunda-feira, outubro 21, 2013

MÍMICA EQUIVOCADA

Inexplicavelmente Ely não falava inglês como era exigido a todos os oficiais aviadores. Sabe-se lá como havia conseguido passar nas provas, nada fáceis, nos anos em que cursara a escola de cadetes da Força Aérea Brasileira. Por sorte, ou propositalmente, não era um piloto de caça. Num bombardeiro sempre haveria outro piloto para quebrar o galho na falação radiofônica no idioma obrigatório da aviação internacional. No entanto nem sempre deu certo. Uma vez, pelo menos, este socorro lhe foi negado resultando numa divertida composição linguística que até hoje deve estar na memória dos controladores de voo da torre do aeroporto de Ciampino, em Roma.

Meu marido, tendo Ely como co-piloto, estava decolando de Roma e já infernizado de ter sido o único, durante toda viagem, a manter conversações pelo rádio, exigiu: pelo menos uma vez vê se consegue articular alguma coisa em inglês e pergunte à torre a hora da decolagem. Ely sorrindo com superioridade declarou: Deixa comigo! Com expressão e tom de galã cinematográfico saiu-se com uma extraordinária locução: Ciampino Tower! Ciampino Tower! What time o’clock? Tudo isto pronunciado como em português e segundo ele significando “que horas são?”! 

Pouco tempo depois deste incidente deslocaram-se meu marido e mais outros sete oficiais, entre eles Ely, para os Estados Unidos em busca de aviões Netuno recém adquiridos pela FAB. No avião que os levava tomamos carona Elsie (senhora de um dos oficiais) e eu. Eles destinavam-se à Califórnia onde se localizava a fábrica dos aviões e nós a Washington e Nova York. Antes de nos separarmos estava prevista uma estadia de quatro dias em Miami. Todos os oficiais, já vacinados contra o auxilio necessário a Ely para que ele desse conta da lista de compras que sempre trazia, exigiram que Elsie e eu o acompanhássemos fazendo as vezes de interpretes. 

A lista era enorme já que o infeliz tinha mulher, três filhos, pai, mãe, irmãos e mais uma quantidade espantosa de amigos que haviam feito encomendas. A solução era tentar uma Department Store. Com sorte encontraríamos a maior parte dos itens da lista num só lugar. Era o ano de 1959 e no Brasil estas lojas eram pouquíssimas. De fato, ao final de algumas horas havíamos eliminado uma enorme quantidade de itens que foram se acumulando em cada uma das seções para posterior pagamento e embalagem. Tudo parecia correr da melhor maneira e Eli até que não dava muito trabalho aceitando nossos palpites sem discutir.

 Mas a tragédia ocorreu quanto terminamos. Naquele tempo, estrangeiros que fizessem compras nos Estados Unidos e as mandassem entregar no aeroporto de saída poderiam ser isentados de pagar os impostos embutidos nos preços das mercadorias adquiridas desde que apresentassem o passaporte informando data, hora e o aeroporto onde deveriam ser entregues. Dirigímo-nos para a primeira seção em que havíamos comprado, escrevemos num papel as informações sobre o dia e voo da partida e treinamos Ely na apresentação do passaporte e na frase mais que simples: “no taxese na conseqüente entrega do documento. Assim que terminasse deveria se encaminhar para a seção seguinte para onde nos dirigimos para agilizar a embalagem das compras e onde se repetiria o desempenho lingüístico do no taxes, e assim por diante até que tivéssemos terminado todas as seções.

Localizadas as compras nada de Ely. Preocupadas retornamos e nos deparamos com uma cena extraordinária: acuado contra uma parede o vendedor com uma expressão apavorada tentava se defender de Ely que agitando o passaporte no ar como uma arma e gritava: I strange! I strange! Segundo nos explicou depois que acalmamos o pobre vendedor, ele havia esquecido o “no taxes” e tentava informar que era estrangeiro e o “estúpido” homem não entendia. O  “strange” aos gritos provavelmente significou algo que, convenhamos, deve ter sido mesmo assustador.

Mas a mais extraordinária façanha de Ely ocorreu na véspera de nossa partida. Havíamos saído à tarde em pequenos grupos com destinos diversos e ao nos encontrarmos todos para jantar demos por falta de Ely. Segundo seu companheiro de quarto ele não havia saído esperando um telefonema da mulher. Naquela época os telefonemas internacionais eram complicadíssimos e demoravam para ser completados. Um dos rapazes vai a busca de Ely e retorna surpreso dizendo que no quarto ele não estava. Quando já estávamos providenciando a formação de uma equipe de busca aparece o herói, com pequeno embrulho nas mãos.

Radiante nos conta que a mulher pediu que ele comprasse uma cera depilatória que não existia no Brasil e ele resolveu, num ato de extrema coragem, ir sozinho. E havia conseguido! Maravilhados perguntamos como e ele explicou: fazendo mímica e dizendo uma única palavra. Fui à drug-store farmácia e disse “my wife” e comecei a fazer gestos de arrancar os cabelos. O homenzinho entendeu logo e me deu a cera! Muito simpático ele me deu até umas batidinhas no ombro. Acho que gostou de minha performance. Incrível, não?

Elsie curiosa e já interessada em igual aquisição pediu para ver a tal cera. Leu o rótulo e deu uma gostosa gargalhada: Ely havia adquirido um tônico contra calvície! Pudera que o homenzinho deu umas batidinhas no ombro. Solidário deve ter ficado extremamente penalizado com a careca de “my wife”.


2010