Malandramente
tomo o título do belo filme emprestado mesmo porque nenhum outro serviria para
sintetizar a delícia da memória que me ataca ao atravessar a rua Siqueira
Campos na esquina da Av. Nossa Senhora de Copacabana. Fico parada com o peso da
memória arriscando-me e ser confundida com uma velha desorientada que não se dá
conta de onde está nem para onde quer ir. E, de certa forma não estou me dando
conta mesmo. Porque, nítida, na esquina, surge a visão d’A Americana.
Vejo-me
entrando em meio ao bando de adolescentes vindo da sessão das quatro do Metro
Copacabana, do filme do sábado. Não importa qual. Eram todos maravilhosos e
obrigatórios. A gente nem consultava jornal para saber qual seria. Pra quê?
Esther Williams nadando, Veronica Lake cobrindo metade do rosto com os cabelos
ou Tyronne Power nos fazendo suspirar eram todos extraordinariamente sedutores.
Além disto, a garantia da mão quente do namorado, a possibilidade de um beijo
(discreto) fazia com que nos transportássemos para tela muito antes de Woody
Allen ter feito isto.
Nós,
as meninas, nos seus quinze anos radiosos; os rapazes pouco mais velhos. Na
verdade era nosso segundo encontro do dia. De manhã nos havíamos visto na praia
(posto cinco e meio). E nos veríamos uma terceira vez na festa daquele sábado
(em casa de quem?). Mas a delícia era “A Americana” onde podíamos exercer o
nosso recente e conquistado direito de falar inglês pedindo invariavelmente um
sundae de butterscotch e waffles com maple. O garçom se desesperava porque
jamais nos ocorreu fazer o pedido coletivo informando apenas a quantidade. Cada
um repetia exatamente o mesmo, a seu turno.
A
guerra havia banido o francês de nossas vidas. O inglês, os marinheiros
americanos e a coca-cola haviam invadido Copacabana. Na verdade detestávamos
coca-cola, criados que havíamos sido à base de suco de frutas e guaraná. Mas
não se podia pedir guaraná com a pronuncia impecável que exercíamos ao pedir
“coke, please”. Vai daí que o jeito era engolir até habituar ou abandonar este
vício assim que a idade nos aconselhasse melhor (que foi o que acabou me
acontecendo). Os marinheiros americanos não eram considerados de “bom tom”.
Ficavam “faladas” as meninas que deles se aproximavam. Mas sua presença maciça,
o som das vozes e o mascar dos chicletes concorriam para criar o clima de
estarmos em Hollywood.
Juro
que parada ali na esquina cheguei a ver entrar o Aluízio com seu casaco de pelo
de camelo, em pleno verão. O casaco lhe
havia sido dado por um tio recém chegado dos Estados Unidos e era cópia de um
usado por Errol Flynn. Como deixar de usá-lo mesmo no verão? Morríamos de
inveja embora não de calor, como ele.
A
guerra estava quase terminada e o clima de euforia nos contagiava embora os
rapazes, amargurados, tivessem que abandonar a ideia de um heroico
alistamento na RAF. Esta decisão que haviam tomado motivou, durante pelo menos um ano, lágrimas de nós
namoradas apavoradas com o que certamente se tornaria um fato assim
que completassem dezoito anos. Para eles foi decepcionante este fim de guerra
antes que pudessem se tornar heróis.
Esta
decisão nos havia sido comunicada justamente n’A Americana. Aliás, tudo era
comunicado por lá. Conversas profundas eram a tônica. Sobretudo sobre o futuro.
Claro que nos casaríamos com os namorados (dos quais a maioria de nós – hoje -
nem lembra mais o nome) e viveríamos uma vida muito mais interessante que a de
nossos pais. Muitas de nós iríamos para
Hollywood tentar (e certamente conseguir) uma carreira vitoriosa nas telas. Não
sei o que faríamos dos que então seriam maridos e nem me lembro se estes prometidos
apoiavam nosso projeto. Para tanto já treinávamos com afinco.
Eu,
nadadora do Fluminense, fui mais de uma vez execrada pelo Cachimbáu (meu
treinador) ao tentar imitar as evoluções de Esther Wiliams em momentos
absurdamente impróprios do treinamento e recusando-me a usar a toca impossível
de ser colocada sobre a escultura capilar caprichosamente armada com Gumex. Meu encanto por cavalos e o
importante papel que tinham em minha vida faziam com que fosse extremamente
fácil transformar-me em Elizabeth Taylor em National Velvet, embora Mickey
Rooney não fosse o tipo de galã ideal. Mas o meu belo e puro sangue inglês
Dream Boy não ficava nada a dever ao Velvet. Vi o filme duas vezes para
conferir a tosa da crina buscando torná-lo igual ao modelo. Até hoje tenho uma
foto dele (comigo em cima) embaixo do vidro da mesa ao lado do micro.
Me
dou conta de poucos dos que me leem saberão do que estou falando. Mas se A
Americana não mais existe e Dream Boy há muito já se foi, ainda resto eu, velha
tonta, parada na esquina, e muito, muito feliz por ter vivido o Verão de 45.
2006