Discordo muito de mim mesma. Mesmo sabendo que a relação
eu/comigo será indissolúvel até o fim dos meus dias, não faço o menor esforço
para ter um convívio mais tranqüilo. Algumas decisões são responsáveis por
noites mal dormidas povoadas de discussões, por vezes acaloradas, nas quais meu
comportamento é execrável. Culpo-me, sem dó nem piedade, por resultados
funestos e meu eu, irônico e maldoso, não perdoa o insucesso. Cobro e cobro
feio. Deselegante, mesmo. E sempre termino com a abjeta frase: se tivesse me ouvido... seguida do
terrível eu não disse?!
E eis que agora chego a um impasse. Este “chego” não é figura
de retórica, não. Aportei, ancorei, empaquei. Isto feito, aqui me encontro e
para onde vou? Por que este “vou” é o motivo da séria discordância e está
criando um clima bem desagradável. Dizem-me que é necessário adotar outro
estilo de vida. Morar sozinha (parece) não é coisa prudente em minha idade.
Pessoas insuspeitas começaram a alertar para o perigo que isto significa. Até o
porteiro balançando a cabeça: a gente
fica preocupada! Quem é esta
“gente”? A síndica, os outros moradores? Mas se
mal os conheço!
Verdade que os vizinhos andam me olhando com estranheza. “Et
pour cause”! Vai ver estão
preocupados com periódicos incidentes que ocorrem aqui em casa e para os quais
não devem encontrar explicação. Ou melhor, certamente têm alguma que imagino
terrível para minha reputação. São os ensaios para leituras de minhas peças
teatrais, que ocorrem sempre à noite. A projetada voz dos atores atinge – creio
- alguns apartamentos. E o teor dos diálogos certamente causa espanto e
indignação, já que provavelmente os imaginam reais. Para piorar, no último
ensaio, um dos personagens chamava-se Ana e demonstrava um comportamento pra
lá de condenável que era evidenciado pelos termos nada elegantes com que se
dirigiam a ela os demais.
Mas voltando ao ponto de discordância a que cheguei: morar ou
não morar sozinha? É preciso esclarecer que adoro esta condição. Dona e senhora
de meus horários e de entradas e saídas, me regalo. Verdade que sempre
monitorada via celular por filhos e até netas dotados de uma
espantosa capacidade de descobrir que em casa não estou. Vozes severas e cobertas
de censura repetem a frase de um texto ensaiado: onde é que você está? Pelo
tom percebe-se que me acham capaz de aportar a lugares proibidos e até mesmo inconfessáveis.
Provavelmente isto se
deve ao fato de ter eu um dia comentado que gostaria de ir a um baile funk.
Creio que é por lá que me imaginam, velha fogueteira, saracoteando adoidada!
Pode?! Mas inquietações sobre meus paradeiros a parte, a discordância se
estabeleceu furiosamente. Devo ou não morar sozinha? Várias pessoas já vaticinaram
que se eu tiver um “treco” por aqui e sozinha não seria socorrida a tempo.
Analisar prós e contras de nada vai me servir. Só consigo pensar nos contras!
Parto para a discussão de alternativas como, por exemplo, tomar medidas que
tornem o “morar sozinha” mais seguro: uma empregada e que durma no emprego,
quem sabe? Imediatamente vem o “contra”: esta jamais acordaria se o “treco” se
fizesse presente noite alta. Instalar uma campainha que soe direto na portaria
para ser acionada em caso ocorrência de “treco”. Ouço a voz severa de amigos: e se o “treco” ocorrer fora do alcance da
campainha? Colocar vários botões em espaços regulares em todos os cômodos e
alturas. Perigosíssimo. Vou ficar conhecida como a Doida das Campainhas.
Mesmo por que o “treco” pode ser daqueles que impede qualquer
movimento ou até mesmo lembrança de que campainha existe. Treinar os gatos para
que se atirem pela janela em busca de socorro no momento em que seus
desesperados miados solicitando carne moída não surtam o efeito desejado. Sei
não! Acho que mais fácil seria convencê-los a procurar carne moída com o
porteiro que também teria que ser treinado para partir em meu socorro tão logo
alvo de miados desesperados e dramáticos. Mas esta é uma total impossibilidade.
Gatos já nascem treinados para ações que só interessam a eles próprios e são
impermeáveis a qualquer outro aprendizado. Agora mesmo Pandareco se encontra
entre o teclado e a tela, inamovível, o que vai me valer mais um dos muitos
torcicolos que causa.
Começo a entrar no delírio: imagino andar pela casa dia e
noite portando à cintura uma pistola sinalizadora daquelas utilizadas pelos
náufragos e que me permitirá sinalizar ao porteiro, à rua e ao bairro que um
“treco” está em curso. Vai daí quem sabe? Tudo é válido para que retorne eu à
paz sem culpa do morar sozinha. Por hoje, exausta, paro de discutir e
preparo-me para gozar a liberdade de ir à Cobal para comprar o raio da carne
moída de Pandareco e Marta.
De repente, faz-se a luz ao me lembrar de uma declaração de
minha mãe quando a exortei sobre a necessidade de contratar uma acompanhante que
a atendesse, além do fiel staff há anos presente: Você está certa. Assim que eu ficar velha vou pensar nisto! E ela tinha mais de noventa anos! Encantada, vejo
dissolver-se a cruel discordância: ainda tenho algum tempo! E, com certeza,
quem sai aos seus não degenera.
2008
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