terça-feira, janeiro 28, 2014

A MEUS LEITORES

Os que acompanham este blog, deste o nascedouro, a notícia de que ele chega ao fim não vai surpreender. As crônicas que me propus a divulgar e que haviam sido publicadas no jornal virtual Montbläat criado por Fritz Utzeri, haveriam de se esgotar um dia. Foram 200 as aqui divulgadas. Ainda existe mais de uma centena. Mas estas ou são datadas, o que as tornaria sem sentido nos dias de hoje; ou não resistiram a uma revisão que fiz. Não gostei do que reli. Crítica de mim mesma, nem sempre acerto. Surpresas me foram causadas com o julgamento de vocês: muitas das que eu achava boas pouco foram lidas; muitas das que eu achava apenas razoáveis tiveram um enorme sucesso!   

A insistência de Fritz (uma verdadeira cobrança!) para que eu divulgasse o que escrevia, não foi atendida por mim enquanto ele estava entre nós e isto me causou uma enorme culpa quando ele se foi me deixando órfã de seu brilhantismo, de sua santa fúria, de seu carinho, de sua cultura e de sua inteligência. Um buraco impossível de ser preenchido. A divulgação das crônicas havia sido o único pedido que ele me havia feito. E pedido de amigo é ordem, não é não? E eu não o fiz. E a danada da culpa passou a me assombrar. O blog deveria ter tido este nome: “danada culpa”. Ao invés disto optei pelo “vai daí quem sabe?” que expressava a certeza dele de que fariam sucesso contendo no ponto de interrogação minha dúvida de que isto fosse ocorrer.
  
O que nem eu nem ele imaginávamos foi o que de mais importante aconteceu: adoráveis pessoas me vieram como um presente maravilhoso. A cada uma delas escreverei diretamente não agradecendo o apoio, porque palavras não existem que o possam expressar. Mas para pedir encarecidamente que não desapareçam porque já fazem parte de meu mundo e não quero nem posso admitir perdê-las.

O que nunca vou descobrir é o por que destas crônicas terem sido lidas em 43 países que não o Brasil! Até no Sri Lanka! Deles nunca me veio um só comentário: nem elogioso, nem não. Tenho para mim que os leitores são estudantes de português a cata de pequenos textos escritos em tom coloquial. A estes leitores um alerta: tomo licenças absurdas com este nosso tão lindo idioma, até inventando palavras. É imprudente me seguir, sobretudo tendo em vista minha total incapacidade de colocar vírgulas corretamente!

Segundo fiquei sabendo o blog inativo ainda será mantido por certo tempo. Quem sabe alguém distraidamente ainda passará por aqui? Acredito que pouquíssimos leitores tenham lido todas. Aos que não o fizeram recomendo que leiam A Queda do Ministro em Três Tempos que ilustra de maneira perfeita minha personalidade clumsy sendo o único incidente que mereceu divulgação na mídia, à época.   

A vocês, tão especiais, o agradecimento que eu não consigo expressar por existir dentro de mim como sentimento e não como palavras.  

É isto, minha gente. Dos que não habitam neste Rio de Janeiro espero sempre receber notícias. Aos que aqui habitam fica meu convite: passem para um cafezinho. É só avisar e eu vou adorar conhecê-los. 

segunda-feira, janeiro 27, 2014

JANTAR DE NOIVADO

O marido da Tia Madrinha era o Tio Pediatra, aquele possuído de uma fúria interna e que a troco de nada deblaterava aos céus. Para mim isto era apenas uma característica que o identificava como características outras identificavam os demais tios, todos adorados e adoravelmente loucos. A transmutação do namorado em noivo estava correndo como o esperado e só anos depois este me confessou ter ficado apavorado, com a série de jantares que foi programada pela família para festejar o evento. Os incidentes inusitados a que desde muito havia assistido no sítio da família em Miguel Pereira (nos conhecíamos desde criança) prenunciava a possibilidade de ocorrências nada normais também no Rio de Janeiro. 

E eis que chega o dia das boas vindas ao clã, produzidas pela Tia Madrinha. Estava o noivo longe de imaginar que pudesse ocorrer o que ocorreu embora os jantares precedentes houvessem fornecido indícios de que a probabilidade da ocorrência era significativa. A Tia Madrinha era linda e cercava-se de beleza: a casa, as roupas, o perfume, a sala de jantar que dava para um pátio florido, tudo era deslumbrante. Orgulhosa, percebi admiração nos olhos do noivo que via aquele grandor pela primeira vez.  

Tudo se passou muito bem até que nos sentamos à mesa primorosamente posta e ainda melhor servida. Neste momento o Tio Pediatra iniciou um verdadeiro interrogatório ao noivo buscando  assegurar-se de que à mim –  sobrinha predileta – seria proporcionado um futuro cor-de-rosa e sem dificuldades. No início foram apenas perguntas voltadas para detalhes da vida numa base aérea (ele, o noivo, era aspirante da FAB aguardando a promoção para segundo tenente). Militares não os havia na família e nem mesmo faziam parte do círculo de amigos e conhecidos. Para falar a verdade estes eram um tanto desconsiderados já que para a Avó (que ditava as regras e o tom) só três profissões eram aceitas como desejáveis: médico, engenheiro e advogado. E nesta ordem de importância. 

O noivo, de poucas palavras, estava mais mudo que de costume e respondia com alguma dificuldade. Eu procurava auxiliar demonstrando o entusiasmo de que estava possuída por transferir-me para o nordeste, pela primeira vez deixando aquele clã tão fechado. Uma aventura mesmo.

Tudo ia se passando muito bem até que o Tio perguntou se já havíamos tratado de alugar casa. Ao ouvir do noivo que a FAB fornecia casa aos oficiais notei, pelo tom da próxima pergunta feita  que a resposta iria funcionar como um estopim dando início de um dos acessos de fúria costumeiros: De graça?! Ao ouvir a confirmação desta benesse, o Tio entre dentes formula outra pergunta: E quanto você irá ganhar como segundo tenente?

Incauto sem ideia do que estava por vir o noivo informa quantia que não era lá muito significativa, mas que causou um efeito devastador no Tio que já num tom de voz bem mais alto dirige-se a mulher: veja só, minha mulher, enquanto nós, pessoas de bem, temos que nos esforçar por ganhar a vida, um fedelho que ainda tem cheiro de leite azedo recebe uma fábula para passear de aviãozinho e ainda tem casa de graça. A Tia sorri pouco preocupada com a tempestade que se armava e responde um distraído: ora, meu nego, bom para eles, não é?

Agora aos berros o Tio declara que se era bom para eles era péssimo para os outros mortais que não dispunham das facilidades com que estes vadios se locupletavam ao começar a vida. O noivo, pálido (de raiva) caiu na armadilha e respondeu que oficiais aviadores eram pessoas dignas e que cumpriam tarefas nobres jamais exigidas aos civis, ignorando o ponta-pé de alerta que lhe mandei por baixo da mesa. Apoplético o Tio arremessa os talheres sobre o prato e se levanta para iniciar o discurso em que as forças armadas brasileiras seriam execradas. Iniciou por uma pergunta: se um misero segundo tenente ganha esta fábula quanto não ganhará um brigadeiro?

A esta pergunta ele mesmo responde aos berros declarando uma quantia astronômica com a qual investiu sobre o pobre noivo que a esta altura também se levanta declarando que não estava ali para ser insultado. Uma gargalhada soturna se faz ouvir e o Tio volta-se para mulher: veja só minha mulher, salafrários e ladrões hoje em dia se acham com direito de se sentir insultados quando cidadãos decentes os colocam nos devidos lugares! O noivo procurando se conter dirige-se à Tia pedindo desculpas e informando que vai se retirar.

Não vi outro jeito senão o levantar-me e segui-lo. Somos perseguidos pelo Tio empunhando um pãozinho que maneja como a uma espada aos gritos de: fujão! Covarde! Já na rua escutamos o som de uma janela que se abre com violência emoldurando a figura do Tio aos gritos: parasita da nação! Volte aqui, seja homem! Passados sessenta anos ainda me espanto do casamento não ter sido desfeito ali. Mesmo por que, naquele dia eu acrescentei a ofensa à injuria rindo convulsivamente o invés de aliar-me à indignação do noivo.

A palavra “happening” usada para descrever acontecimentos inesperados surgiu muitos anos depois, mas para mim, e para toda família, estes ataques eram exatamente isto e sempre foram julgados extremamente divertidos. E o noivo, depois de marido, conformou-se. Nunca chegou à perfeição de rir gostosamente, mas até conseguia sorrir quando num tom verdadeiramente carinhoso o Tio Pediatra o saudava: e como vai este meu querido sobrinho parasita? Ainda dilapidando os cofres públicos?
2009




domingo, janeiro 26, 2014

IDENTIFICAÇÃO DE CHAMADA

Depois que contratei o serviço de identificação de chamada, atender à campainha do telefone dá início a um processo mental complicado: se reconheço o número nenhum problema. Mas isto raramente acontece porque tenho uma enorme dificuldade em decorar números de telefone, exceção feita aos de meus filhos: pela constância com que me monitoram fui obrigada a memorizar. Vai daí que quando o número não me diz nada fico presa de uma dúvida cruel: atendo ou não atendo? Pedidos de contribuições, televendas, podem se contrapor aos amigos, ao banco comunicando que meu título de capitalização foi sorteado, à oportunidades de trabalho e outras notícias alvissareiras.

No negativo, aparece como significativo, o golpe do sequestro que comigo não dá certo pelo simples fato de minha voz ser muito grave. Por duas vezes, ao dizer “alô” escutei o apelo desesperado: Pai, pai, me pegaram!. Por favor, me ajude! causando susto nenhum. Embora meus filhos me julguem da maior competência por tê-los criado sozinha, não creio que me confundam com o pai que adoram. Esta gama de possibilidades faz com que haja certa demora ao atender, o que eu acabo fazendo sempre, duvidando do acerto de ter contratado tal serviço.

Hoje, depois dá hesitação habitual, ouço uma voz polida: senhor, eu poderia falar com a dona da casa? O “é ela mesma” provoca um pedido de desculpas e uma espantosa declaração: Minha senhora, o que tenho para lhe dizer é grave! (pausa) Lamento lhe informar que seu marido está tendo um caso com minha mulher! No espanto emudeço.

-     Imagino o choque que estou lhe causando! Lamento muito!
-     O senhor nem pode imaginar o tamanho do choque. Meu marido é     casado com outra mulher.

O estado de mudez transfere-se para ele. E, como sempre me acontece, quando digo absurdos, acrescento outro:

-     Olha só, se isto está mesmo acontecendo, trata-se de um fato            extraordinário e de improváveis conseqüências. Ele tem 79 anos!
-    Minha senhora, eu esperava uma reação sua, mas não poderia           imaginar que fosse fazer graça com este fato gravíssimo. Afinal trata-   se da nossa honra.
-   Meu senhor, minha honra em nada fica abalada com este pouco        provável affair. Quanto a sua não me diz respeito. Mas suponhamos  que o caso exista: o que é que o senhor espera de mim?
-   Podemos unir nossas forças. Quem sabe facilitaria o divórcio a         nosso favor!
-    Mas eu já sou divorciada!
-    Como se explica?
-    Não se explica: é uma longa história e eu certamente não vou relatá-   la ao senhor.
-    A senhora está fugindo do assunto.
-     Tem razão. Sempre fugi deste assunto. Há anos não vem è baila.
-   Compreendo sua reação. Mas é imperioso que conversemos. Vai ser um momento difícil, mas sairemos disto fortalecidos. Acredite!
-   Qualquer acréscimo de fortalecimento a esta altura da vida seria mais que bem vindo, mas não sei como lhe ajudar. Não sou a pessoa que o senhor pensa que sou.
-     A senhora está me dizendo que pouco se lhe dá esta tragédia?
-     Não, de jeito nenhum! Só estou querendo dizer que não devo ser a   mulher do (desculpe!) amante de sua senhora. Olha só: esta com     quer falar mora onde?
-     No Leblon.
-    Eu moro no Humaitá.
-     Prove!
-     Pelo telefone fica difícil. Mas posso lhe dar meu nome  completo e    o senhor procura no Telelistas. (pausa) Mas como é que o senhor   conseguiu meu telefone?

Ignorando minha pergunta ele aceita a sugestão e, polidamente, encerra a conversa. A esta altura sou invadida por uma curiosidade mal sã. Daria muito tudo para conhecer o desenlace desta história. Desonesta, encontro razões válidas para partir a cata de mais informações. Por exemplo, prevenir uma desgraça. Não será muito difícil já que tenho o número dele registrado pelo bendito identificador. Podia falar com a pecadora senhora lá dele, alertando num tom dramático: “Ele sabe de tudo!” E até aconselhar: “Pára com isto! Ele me parece um bom homem!”

Prudente e antes que faça esta barbaridade, corro à cata do manual do aparelho para ver como apago, para todo sempre, o número do sofrido senhor, impossibilitando esta minha pérfida ação. Mas sei que vou me arrepender! 

2007

sábado, janeiro 25, 2014

AINDA QUE NÃO POR ARTES MINHAS...

Ainda que nem sempre por artes minhas as situações em que me vejo rotulada como clumsy se multiplicam em minha vida.

É sempre com emoção que entro hoje em dia nas instalações do SERPRO, no Horto Florestal. Afinal uma grande parte de minha vida por lá se desenrolou. E era assim que me sentia quando entrei no hall dos elevadores para demandar o serviço de pessoal para pegar nova carteira do Plano Médico do qual ainda tenho direito (Graças a Deus!) como aposentada que sou. Mas naquele dia a emoção foi maior: chegado o elevador vejo em seu comando o Valentim!

Pessoa especial que trabalhava subindo e descendo nos elevadores das instalações do SERPRO na Rua da Lapa, sei lá eu há quantos anos. Já estava por lá quando ingressei em 1972. Não o sabia transferido para o Horto e foi com enorme alegria que nos abraçamos. De um bom humor espantoso nos conhecia a todos saudando um por um que entrava em seu veículo sempre com algum comentário pessoal. Ele sorri encantador para mim: este cabelo branco está demais, D. Anna. E se dirigindo para os outros ocupantes do elevador: gosto desta moça (?) há mais de quarenta anos!  Comovida, o  coração dá um salto quando o ouço continuar agora com um ar maroto: e a senhora ainda faz aquele lombinho?

  Não sei e nem quero saber o que os demais ocupantes do elevador imaginaram. Possivelmente que eu, em priscas eras, fui cozinheira no restaurante do Horto antes de me graduar como analista. Olhei em pânico para Valentim e felizmente chegamos ao andar que eu demandava. Mas a memória não me abandonou e até cheiro e o gosto do lombinho passaram a povoar meu dia.

O incidente ocorreu quando eu ainda trabalhava na Rua da Lapa. Lá pelo final dos anos 70. Estávamos, naquela época, num ritmo de trabalho infernal com o desenvolvimento de algum sistema que como sempre tinha um prazo “para ontem”. Trabalhava-se até altas horas e também nos fins de semana. As instalações da Lapa não dispunham de restaurante como as do Horto. Comia-se no Cosmopolita (apelidado de Porta de Bandido, por causa da porta vai-vem), no Nova Capela, no Bar Brasil e quando o tempo era pouco, no restaurante da ACM que, situado no mesmo prédio, era uma bela droga e não servia jantar. Resultado, na correria em que estávamos o jeito era apelar para os sanduíches de salaminho da padaria em frente.

Estávamos ainda na fase de discussão da definição do sistema com base nos levantamentos feitos. Não necessitávamos, portanto, dos terminais que nos ligavam ao grande porte (a era do micro ainda estava longe de surgir). Vai daí que decidi que poderíamos, dois colegas e eu, trabalhar em minha casa onde era possível providenciar um jantar decente. E assim foi feito. Eu mesma me ocupei de fazer o tal lombinho cuja receita eu havia inventado e que ficaria assando enquanto trabalhávamos. Os dois se deliciaram e no dia seguinte se encarregaram de espalhar a quatro ventos a recém descoberta de minha qualidade de chef, numa louvação um tanto exagerada que, acredito, foi motivada pela fome que estavam quando deglutiram o tal lombinho.

A equipe era de cinco pessoas contando comigo e os dois não agraciados com o petisco sentiram-se marginalizados e injustiçados, sobretudo porque voltamos ao salaminho com força total. Certa manhã quando chegamos ao trabalho estes dois entraram comigo no elevador do Valentim junto com mais umas dez pessoas. E eis que um dos dois, sai-se com esta maravilhosa frase: quando é que nós vamos comer o seu lombo? E o outro completa: por que outros podem comer e nós não? E chegamos a nosso andar saindo do elevador eu sentindo o peso dos olhares escandalizados dos demais ocupantes. Quase matei os dois que morriam de rir de sua proeza.

Esperei passar a hora do rush elevatório e no elevador vazio expliquei ao Valentim o que significavam as dúbias frases, perguntando: quais foram os comentários depois que eu sai do elevador? Percebi uma ligeira indecisão na expressão do Valentim que depois de uma pequena pausa, e com um ar de extrema seriedade declara: Fica tranqüila, D. Anna, não tem pessoa neste mundo que tenha coragem de, na minha frente, falar do lombo da senhora!
2010


sexta-feira, janeiro 24, 2014

O ROSTO DA SAUDADE

De raro em raro os vejo. E, quando isto acontece o dia é marcado por uma pedra branca. No mais, são vistos através do cristal da saudade que revela o filme dos dias, meses e anos de um convívio divertido, sério, rico e, sobretudo, bom, muito bom. Hoje são cinco. Eram sete... Dois já se foram absurdamente jovens, mas estão sempre presentes nas conversas que temos nos almoços conseguimos marcar para nos ver. Todos homens. Naquele grupo, que existia dentro do grupo maior, fui a única mulher. Então éramos, na verdade, oito.  

Um observador desavisado os descreveria pelas identidades que guardam entre si: analistas de sistema, inteligentes, bonitos e...  completamente loucos. Mas eu os guardo dentro de mim pelas diferenças. Ricas, tão ricas. Para mim o ingresso no grupo se deu em 1972. Já lá estavam todos: o Chefe, o de cabelos vermelhos, o jovem impetuoso, o sedutor, o bon vivant, o mal humorado e o doublé de pastor e xerife. Não consigo vê-los como avós que hoje são. Em minha memória estão sempre jovens e sorrindo, mesmo o mal humorado. Vai ver para mim sempre sorriam! Vou, a seu tempo, falar de cada um deles. Mas hoje meu dia está povoado pela lembrança do xerife/pastor.   

Ao acordar, demandando a cozinha para o primeiro dos muitos cafezinhos do dia, meus olhos caíram sobre o livro: o dos cavalos.  Sei lá eu quanto tempo faz. Muito com certeza. Naquele tempo apesar do ótimo salário havia três filhos para criar e aquele livro ia ficar somente no desejo. Uma obra de arte. Tão lindo!  Edição reservada; exemplares numerados; fotos deslumbrantes! Voltando do almoço, devorando a vitrine da livraria, confesso ao amigo: ah! se eu pudesse, comprava! No dia seguinte ele aparece com um embrulho de jornal aos gritos: vê só o que encontrei lá em casa! O livro que você gostou! Fica com ele. Não ligo pra cavalos! 

Era também um grande mentiroso o meu amigo! Além de mentiroso e bom, muito, muito bom, era deliciosamente louco. Suas extraordinárias histórias ficaram na crônica da DSR. A Divisão de Sistemas de Informações Rurais do SERPRO, onde trabalhávamos. Uma das melhores ocorreu como conseqüência de uma reunião de cúpula. Naquela o Chefe resolveu, sabe-se lá por que, analisar severamente o comportamento nada ortodoxo de cada um de nós, solicitando correção de desvios e melhor postura. Ao meu amigo xerife foram exigidas três providências: chegar mais cedo; ser mais humilde e vestir-se condignamente. Aqui é necessário dizer que a censura à indumentária devia-se ao cinto com uma fivela de xerife que decorava a calça jeans, não podia mais velha, nem mais desbotada.

No dia seguinte fui, como sempre, a primeira a chegar e encontro nosso personagem sentado no corredor, frente a uma mesinha de datilógrafa e de terno e gravata! Interpelado explicou-me: sou humilde. O mais humilde. Não tenho nem sala, nem mesa. Mas me visto bem. Implorei em vão para que saísse dali. À medida que foram chegando todos tentavam demovê-lo e ele com extrema e muda humildade baixava a cabeça, mas dali não arredava pé. A humildade havia sido exigida, entre outras razões, pelo inexplicável desprezo que demonstrava por um analista de outra divisão. Um dia o Chefe solicitou que ele a este procurasse para discutir a solução de um problema técnico. Ele resistiu bravamente fornecendo argumentos absurdos e descabidos. Mas eis que o Chefe não transige e determina: não importa! Vá trocar umas idéias com ele.  Ao que meu querido amigo responde: Tá legal. Vou trocar, mas vou sair perdendo

Em meio à noite, o horror do telefonema: ele morreu.  Já nos tínhamos separado. A DSR não mais existia na empresa. Só mesmo para sempre e dentro de nós que naquela noite tão triste esperávamos pelo milagre. Com ele tudo era possível. Mesmo ressuscitar. Mas pela primeira vez ele nos falhou. E ninguém poderia entender por que nós desconsolados e abandonados rimos ao invés de chorar quando um lembrou: não acredito que nunca mais o vou ver chegar dando coice e rinchando. Era assim que ele anunciava a chegada, todas as manhãs.

Minha filha lembra-se de outra chegada: eu o havia feito portador de uma encomenda para ela e para meu genro que havia alugado uma casa de verão em Marica, onde ele também passava as férias. Ele não os conhecia e os deixou estarrecidos quando o viram irromper pela sala, tarde da noite, sem se fazer anunciar. Era visível que não se tratava de um malfeitor e meu genro no espanto exclamou: mas os cachorros não lhe morderam?!  E a isto ele respondeu também muito espantado: por que haveriam de me morder?! Eu não os mordi!

É... ele não mordia... Nunca. Talvez por isso gentes e bichos por ele se apaixonavam perdidamente. Como nós!
2008




quinta-feira, janeiro 23, 2014

NUNCA É TARDE

Já lá vão mais de setenta anos! Incrível! Jamais, em meus mais dourados sonhos, imaginei que poderia dizer uma frase como esta. No portal dos oitenta me delicio vendo os álbuns de fotografia primorosamente organizados por minha mãe. E é de lá que me sorri Fräulein Grete. Estranho! Ela, que me lembre, não sorria nunca! Vai ver mamãe exigiu este sorriso. É, deve ter sido isto. Mamãe tentava por todos os meios e modos tornar Fräulein mais palatável para mim. Porque eu, positivamente, não gostava dela que se contrapunha, com enorme desvantagem, à Babá. Esta sim, grande paixão. Que saudade daquele colo e do “minha nega” quando me acordava.

Cabia à Babá o meu acordar para enfrentar o dragão Fräulein e o banho gelado que me era imposto no inverno. Sabe-se lá porque tínhamos, meu irmão e eu, uma babá e uma governanta. Nunca perguntei a razão disto à mamãe. Vai ver percebeu que sem o carinho de Babá eu não resistiria à autoridade germânica de Fräulein Grete. Além disto, era moda ter governanta alemã. Isto foi antes da guerra. 

Quando a Alemanha invadiu a Áustria, eu, informada pelas conversas à mesa do jantar passei de um estado de resistência passiva a atos de beligerância explícita. De nada adiantou papai me explicar que não deveria confundir a pessoa com o país conduzido por Hitler. Eu chegava a ver o ridículo bigodinho naquele rosto louro de olhos azuis. A frase “ein gebildetes mädchen biltet nicht dieses“ (uma menina educada não faz isto) passou a ter uma freqüência espantosa. E a menina mal educada que já não gostava da governanta passou a odiá-la.

As aulas de boas maneiras que já eram problemáticas tornaram-se um caos. Elas consistiam num espetáculo teatral que simulava situações sociais onde ocorriam jantares, conversas, dança e que mais sei eu. Ainda havia as aulas de costura, de bordado e – pasmem – de francês ensinado por uma alemã! A estas se somavam as de cozinha onde eu me tornei uma emérita fazedora de rotegriff, marzipan e apfelstrudel. O diabo da mulher ocupava meus dias e até as noites quando antes de dormir eu rezava em alemão! Olho de novo a foto. O espanto me vem: era bonita a Fräulein? Como é que pode?! Não resisto. Ligo para minha prima, dois anos mais velha do que eu, único vivente que ainda deve lembra-se dela:

-        Minha Fräulein era bonita?
-        Era. Muito.
-        Era nada! Tinha um queixo enorme.
-        Não tinha!
-        Mas os cabelos eram feios.
-        Nada disso. Eram louros! Lindos!

Desligo e penso: ela deve estar enganada. Está fantasiando para me irritar. Penso em perguntar a meu irmão, mas quando Fräulein partiu, num navio cargueiro, antes do Brasil entrar em guerra, ele tinha só 5 anos. Não vai lembrar mesmo. Folheio o álbum furiosamente. Devem existir outras fotos. E não é que existem? Um sobressalto: numa delas eu estou no colo de Fräulein que me olha com carinho. Pareço bem à vontade retribuindo o olhar. Da memória o espanto: escuto numa voz doce: liebes Mädchen. Querida? Eu? E desaba sobre mim um enorme sentimento de culpa com um atraso de mais de setenta anos. Esta é uma culpa que vai durar até o fim de meus dias. Como vão durar todos os ensinamentos dela.

Deles me sirvo todos os dias sem me dar conta. Em cada “bouquet garni” que junto às minhas receitas, enrolado num pequeno pedaço de filó, ela está presente. Em cada bainha que faço; em cada echarpe que tricoto; em cada observação de alguém que se espanta de minha postura não curvada pela idade! Esta postura devo a um cabo de vassoura que me era colocado nas costas preso pelos cotovelos com os braços flexionados e à voz que alertava a cada momento: endireite-se!. Richten sie! Imediatamente ponho os ombros para traz e humilde, murmuro: Ich bin ein sehr bösartiges Mädchen. Fui uma menina muito, muito má. Por favor, Fräulein, perdoe-me! Sei que é tarde, mas fazer o quê? Só hoje percebo.

Perdemos contato com você. Apenas uma carta depois da partida. Depois mais nada. Numa Berlim destruída você não deve ter sobrevivido. Tenho certeza de que teríamos tido notícia se isto houvesse ocorrido. Lembro-me de que papai e mamãe procuraram durante muito tempo e nada. Sinto agora o que não senti na época. E dói. Num enorme mapa na parede papai anotava com alfinetes coloridos o avanço das tropas aliadas. Da Normandia a Berlim as acompanhei entusiasmada também com os bombardeios da RAF tendo no vestido pregado o broche da Ordem do Fole que era a dado aos que contribuíam com a RAF, pagando por cada avião abatido. E nunca pensei que você era alvo, Fräulein. Penso agora.

Será que você reconheceria nesta velha senhora aquela menina tão encapetada? Acho que não. Faço os cálculos. Você era apenas 16 anos mais velha do que eu. Poderia estar viva. Seria bom se estivesse porque eu falaria o que não sei falar aos céus, que mesmo sem acreditar, é onde eu desejo que você esteja. Mas sabe de uma coisa? Hoje, botando em foco a imagem distorcida pela menina, me vem a sensação que você sempre soube que um dia eu lhe falaria assim. Esta certeza me vem conduzida pelo som doce e carinhoso do querida dito àquela menina tão má.

2006

quarta-feira, janeiro 22, 2014

FORA DE ESQUADRO

A declaração do pedreiro vem como uma bomba: as paredes de sua casa são fora de esquadro. A obra sonhada há anos e que tornaria minha casa perfeita está em pleno vapor. Várias vezes por dia, nesta última semana, pensei seriamente em atear fogo às vestes. Andava pela casa como um zumbi, envolta numa nuvem de poeira, sem paradeiro certo. Não havia como nem para onde fugir. Tropeçava em caixas e caixotes, procurando em vão coisas absolutamente indispensáveis à vida que misteriosamente sumiam e reapareciam em lugares absurdos; enlouquecia com o barulho de parede vindo a baixo enquanto a serra que corta ladrilhos me fazia sentir habitante de um mundo sonorizado por uma monumental broca de dentista.

Qualidade de vida virou coisa do passado e a sensação era a de nunca mais recuperar a paz. E agora, para coroar, as paredes estão fora de esquadro. Estão, não! São fora de esquadro. Pela expressão de Seu Marcelo este fato é grave. Gravíssimo. E terá, provavelmente, conseqüências funestas. Atrás de Seu Marcelo os dois ajudantes que espantosamente chamam-se também Marcelo, têm um ar desolado. Em pânico procuro informar-me sobre o desastre. Seu Marcelo é categórico: a senhora tem que tomar uma decisão: para que lado vai ficar a fileira de azulejos e de pisos que vai ficar torta? O tom não deixa dúvidas: uma fileira no chão e outra na parede vão ficar tortas. O semblantes de Marcelo 1 e dos Marcelo 2 e 3 mostram desolação que aumenta exponencialmente face a minha covarde resposta: o senhor decide. Sinto que perdi pontos. Não era isto que se esperava de mim. Fazer o que? Firme repito: o senhor decide e eu não quero falar mais nisto.

Marcelo 1, profundamente decepcionado acompanhado dos Marcelos 2 e 3, dirige-se para o que será um dia uma cozinha e em meio a destroços confabulam baixo. É evidente que não me consideram digna de sequer ouvir a discussão que decidirá o lado torto. Humilhada dirijo-me para onde um dia localizou-se meu quarto onde ainda funciona um aparelho de televisão. Mesmo imunda e tendo como fundo musical a sinfonia de serras e marretas disponho-me a assistir o jogo da decisão do campeonato europeu entre o Real Madrid e o Liverpool.  Aumento o som ao máximo tendo a certeza de que, à noite, receberei um telefonema do síndico portador da reclamação dos muitos vizinhos (1 do lado, dois em baixo e 2 em cima) que desde o início das obras me infernizam a vida.

Jogo já começado uma batida discreta na porta. Fico em pânico: e agora? Vai ver todas as fileiras vão ficar tortas! Do outro lado da porta Marcelo 1 pergunta tímido: quanto está o jogo? E me dou conta de que aqueles Marcelos não devem ter em casa televisão a cabo e que, como eu, adorariam ver o jogo. Esqueço o aborrecimento que me deram e convido: venham ver o jogo. Depois vocês continuam. Dois coelhos mortos com uma só cajadada: uma boa ação e eliminação do barulho. Tímidos, os Marcelos ajeitam-se no chão (não existem mais cadeiras). Na verdade não existe nem cama.

De inicio permanecem em silêncio. Aos poucos, alguns comentários em voz baixa revelam três desagradáveis torcedores do Liverpool. Para evitar maiores conflitos declaro minha condição de torcedora do Real Madrid. Espero com isto eliminar dali por diante qualquer manifestação a favor do Liverpool e, sobretudo, qualquer observação depreciativa sobre a atuação do Real Madrid. Em vão: Marcelo 1 comenta a gordura do Ronaldo Fenômeno. Profundamente irritada solto um “selvagem!” acusando a falta de Traoré em Ronaldo que é retrucado por Marcelo 1 com: o gordo se jogou. Catimbeiro! O quase gol de escanteio provoca entusiásticos gritos Marcelenses.

Esquecidos da cerimônia inicial os três se perdem em comentários desairosos sobre o Real, ponteados de gritos de incentivo aos atacantes do Liverpool. Foi aí que explodi: vocês estão no meu quarto, vendo a minha televisão, a meu convite e eu não vou admitir ninguém aqui torcendo pelo Liverpool. E tem mais: não quero fileira nenhuma torta. Nem de ladrilho, nem de piso. Os Marcelos não se intimidam e continuam a vociferar estímulos a seu time e imprecações desairosas ao meu que esquecida do absurdo da situação começo a comportar-me do mesmo modo. A cada pênalti chutado estabelecemos um pandemônio.

Findo o jogo, com a vitória do Liverpool, um silêncio pesado toma conta do ambiente. Os Marcelos levantam-se mudos e tímidos como entraram e dirigem-se para os escombros. Já no corredor, Marcelo principal volta-se, num sorriso que é acompanhado por sorrisos dos outros: nunca a gente viu um jogo desses inteiro. Foi maneiro. Sabe, dona, a senhora é que é fora de esquadro.
2005


terça-feira, janeiro 21, 2014

ASSÉDIO MAL SUCEDIDO

Mal sucedido e internacional! Eram os idos de 1959. Jovens senhoras, Elsie e eu, partimos com os maridos para os Estados Unidos. Eles, os maridos, iam buscar aviões recém adquiridos pelo Governo Brasileiro para a FAB e nós os deveríamos acompanhar somente até Miami. De lá eles partiriam para a Califórnia e nós duas para Nova York, via Washington.

O dinheiro era pouco e a viagem havia sido planejada de maneira a que nos sobrasse o valor da passagem de volta que a FAB não fornecia. A ida já havia sido uma carona num Douglas bi-motor que levava as equipes de pilotos e mecânicos. Vai daí que qualquer economia era importantíssima. Nunca andei tanto a pé em minha vida. Não me lembro de ter tomado um único taxi. Por sorte ambas falávamos um inglês impecável. Elsie, filha de noruegueses, dominava este idioma como a maioria destes, desde muito pequena. Além disto, ambas havíamos cursado o Colégio Bennett numa época em que era obrigatório falar inglês até no recreio. Isto nos valeu de muito já que as dicas do “onde é mais barato” eram assimiladas e compreendidas.

E foi assim que numa bela manhã aportamos em Nova York, transportadas de Washington para lá num ônibus da Greyhound. A primeira providência que tomamos no momento em que pusemos o pé no hotel foi a de telefonar para um casal amigo de meus pais que por lá morava. Havíamos trazido uma encomenda para eles, mas a urgência, a bem da verdade, era a esperança de que nos convidassem para qualquer programa grátis que, fosse qual fosse, seria bem vindo. E não deu outra: convidaram-nos para um café da manhã em sua casa no dia seguinte “para que pudéssemos planejar nossa estadia”. A coisa prometia mesmo porque o marido era alto funcionário da ONU o que por nós foi traduzido como “ganha milhares de dólares”.

No dia seguinte o deslocamento por subway, além de barato, prenunciava um ótimo investimento. A realidade demonstrou o acerto de nossas previsões e de uma forma muito mais completa do que imaginávamos. A mulher do casal nos pediu um grande favor: acompanhar os passeios de um seu sobrinho que deveria chegar do Brasil naquela noite e não falava bem inglês. Estes passeios, que incluíam um show da Broadway, seriam por eles financiados. Maravilha. Convidaram-nos para um almoço no dia seguinte num restaurante no qual jamais teríamos cacife para por os pés (melhor dizendo as bocas) para que nos fosse apresentado este individuo que regulava conosco em idade e era medico.

Até o momento do encontro bendizíamos a sorte que havíamos tido e que revelou não ser tanta depois que conhecemos o tal medico. Era um chato de galocha. Já no restaurante (que era caríssimo como imaginávamos) deu-se um primeiro desencanto para Elsie. Prudentemente eu havia escolhido o honesto e velho conhecido filé com fritas. O médico convenceu Elsie a pedir um prato misterioso, impossível de ser identificado pelo nome, mas me lembro bem, era qualquer coisa do Arizona. Quando os pratos chegaram revelou-se para Elsie uma monumental batata que fumegava envolta num papel laminado e sobre a qual deveria ser jogado um muito sem graça molho de manteiga. Desolada Elsie, em frente à batatona, me via mastigar com gosto o delicioso filé que faria as vezes de almoço e jantar.

Durante o almoço a tia do médico mostrou o “programa” que havia elaborado para nós três. Iniciava-se naquele mesmo dia com uma ida ao Metropolitan à tarde e um show da Broadway à noite. Findo o almoço partimos os três em direção ao museu. Já no subway revelou-se o assédio do médico em direção à Elsie. Ele estava positivamente encantado com ela e untuoso desfilava frases dúbias e do mais profundo mau gosto. Elsie parecia não se tocar e o desgraçado nem ao banheiro foi impedindo que eu alertasse minha amiga para o perigo de não dar um fora, gentil, mas firme e que pusesse um fim aquele cerco.

Na seção egípcia o infeliz, diante das múmias e com olhares languidos para Elsie, nos brindou com uma descrição pormenorizada das autópsias de que havia participado como estudante que segundo parecia a ele eram muito mais interessantes que o faraó ali embalsamado. No foyer do show da Broadway Elsie resolve ir ao banheiro no mesmo momento que o infeliz, mais uma vez me impedindo de ter uma conversa séria com ela. Terminado o show fomos convidadas para jantar pelo energúmeno. Por mim eu teria recusado, mesmo porque o filé ainda mantinha meu estômago, mas Elsie aceitou com  entusiasmo gerado pela fome que havia lhe provocado o batatão.

Na mesa não entendi o que estava se passando. Elsie olhava o sujeito, fixamente com uma expressão indefinida e enigmática que preocupou a mim e encantou o rapaz. Sorridente e terno formulou a pergunta: porque olha tão fixamente para mim?  Agora sorridente Elsie defere a espantosa declaração que faria com que qualquer D, Juan cometesse suicídio: Você é a cara de minha tia avó Gudrum! Chocado o rapaz declarou que estava cansado e queria ir embora. Não mais soubemos dele que no dia seguinte telefonou dizendo que havia encontrado uns amigos brasileiros. Pudera! Qualquer pretendente que se preze, mesmo um idiota como aquele, sofreria uma enorme humilhação em se saber parecido com uma tia avó do objeto cobiçado e pior, chamada Gudrum!

2010

segunda-feira, janeiro 20, 2014

PARA SEMPRE "SERIAL CLUMSY"

Inútil tentar apagar de minha vida os episódios de “serial clumsy”. Impossível! Além da minha extraordinária competência para produzir novos, os passados ficam gravados na memória dos que os presenciaram. Quando me reencontram, as testemunhas desse passado, já vêem em minha direção às gargalhadas. Puxa vida! Tanta coisa para lembrarem sobre mim e o que ficou gravado foram minhas desventuras. Pior é que sempre me relatam o ocorrido como se não houvesse sido eu a protagonista das comédias de pastelão que produzo.

Em vão procurei durante anos uma explicação para este meu carma. Recentemente ao ler o espantoso livro Tabula Rasa do não menos espantoso Steven Pinker senti certo alívio. São os genes. Não é minha culpa. Nasci assim. Quem sabe descendente de um longínquo chipanzé trapalhão. De qualquer modo procuro esquecer e às vezes por longos anos alguns destes históricos incidentes me saem da memória. Foi assim com o caso do dentista. Havia ocorrido há mais de quarenta anos e até a semana passada eu havia conseguido escamoteá-lo.

Estava eu num shopping a procura de um tênis de rodinha. Shopping tem o estranho poder de me desorientar e para piorar o tal tênis parecia ser o único objeto desejado por toda aquela multidão que atravancava os corredores: a encomenda do Dia da Criança feita por minha pequena neta mineira havia se esgotado em todas as lojas. Eis que se dirige a mim um casal idoso. Não os reconheci de pronto e esclarecido o setor de origem espantei-me que me houvessem reconhecido. Era oriundo do setor FAB, setor este não mais frequentado desde 1967.

Um parêntese para esclarecer: minha vida é povoada por pessoas classificadas em setores com siglas: FAB, SERPRO, DSR, IBRA, INCRA, NEAD, PCF e por aí vai.  Desconfiei do que ia ocorrer: o casal ria muito ao se identificar. E lá veio a frase fatal: lembra? Quase morremos de rir! Você continua assim? E o incidente volta em toda sua crua tragédia.

Era o ano de 1959. Tinha eu vinte e nove anos e a cena se passava em Salvador, mais precisamente na Avenida Sete de Setembro em frente a uma farmácia. Antes do relato a que me obrigo para exorcizar esta dolorosa lembrança é necessário que eu esclareça detalhes que, se não desculpam, pelo menos explicam em parte meu extraordinário comportamento: meu então marido à época, Capitão Aviador, era (e é ainda, benza-o Deus!) uma das pessoas mais finas e educadas que conheci. Filho de franceses tinha dupla cidadania e optou pela brasileira para ingressar na FAB. Um de seus maiores sofrimentos (e também de minha sogra) era a minha não conformidade com os cerimoniosos rapapés ainda em voga naquele tempo. Perdidas no tempo eu ainda me insurgia contra as aulas de boas maneiras de Fräulein e teimava em não agir como era requerido, desobedecendo, ignorando ou me atrapalhando com algumas regras da etiqueta vigente.

Como dizia mamãe eu não era mal educada; era mal aprendida. Uma destas regras, quase sempre, causava sérios transtornos: o beija mão. Esta determinava que os senhores (estou falando de gente bem jovem!) deviam beijar a mão de senhoras casadas. Eu parecia ter algum problema com isto porque sempre que um deles se adiantava para fazê-lo eu, ao invés de estender graciosamente a mão para receber o ósculo, me apoderava daquela que me era estendida e a sacudia furiosamente num vigoroso aperto. Para evitar tal impropriedade, sempre que um deles ia se aproximando, meu marido sem movimentar os lábios, como um ventríloquo, murmurava: vai beijar a mão. A intenção era que executasse, com graça e a tempo, o gesto de estendê-la na altura certa. Infelizmente nem sempre funcionava.  Na maioria das vezes meu ímpeto era tal que provocava um choque contundente entre a minha mão que subia e a gentil boca de descia. Mas por vezes dava certo e isto, tenho certeza, garantiu mais alguns anos de duração ao nosso casamento.

É necessário que se esclareça que esta beijação só se dava intramuros, ou seja, não se beijava a mão de uma senhora na rua, a céu aberto. Isto posto posso passar ao relato do que fui forçada a recordar pelo risonho casal. Íamos nós (o casal, meu marido e eu) subindo a Avenida Sete em demanda de um cinema. Eis que vem em nossa direção o Dr. Bustani, nosso dentista: um homem extremamente fino e um emérito beijador de mãos. Estávamos em plena rua e portanto o murmúrio de alerta e advertência de meu marido não se fez ouvir. Para minha desgraça meu cérebro que registrara a imagem do dentista ligada à habitual e ventriloquista mensagem conjugal, entrou em curto. Ao nos defrontarmos, ele e eu, num gesto gracioso adiantei-me... e beijei a mão dele!!! Só me dei conta do horror quando vi, a milímetros de meu nariz, a mão que tentava se livrar da minha. Levanto o rosto, desolada, ainda a tempo de ver a expressão de horror e pânico de Dr. Bustani que engatou uma primeira afastando-se sem dizer palavra. Voltei-me para meu marido buscando apoio, mas ele havia sumido bem como o casal. Com aquela sensação de total solidão que sempre me acomete depois de uma dessas, o percebo escondido na farmácia em companhia do casal às gargalhadas. Devastado, com uma expressão de cortar o coração, ele conseguiu murmurar em francês, na intenção de que o casal não fosse informado de seu péssimo juízo a meu respeito: ça a été dégoutant!

2006


domingo, janeiro 19, 2014

CHURRASCO DE POMBOS E MICOS

No prédio em frente ao meu foi colocado recentemente um aparato que provavelmente vai reduzir a torresmo pombos e micos que nestas paragens habitam. Mas não é este o alvo. A intenção foi fritar assaltantes que tenham a audácia de atacar a fortaleza. A cerca eletrificada, no entanto, demonstra que seus habitantes não lêem jornais, não assistem televisão e nem conversam com nós outros não eletrificados que estamos carecas de saber que há anos foram extintos os assaltantes puladores de muros. Eram estes ladrões de galinhas que já não existem (nem existem as galinhas que hoje jazem congeladas nos supermercados).

Hoje os assaltantes entram pela porta da frente ou da garagem com a maior competência. E se ingressarem neste eletrificado prédio vão agradecer muito a existência da cerca que impedirá a entrada da polícia enquanto agem, servindo ainda de eficiente barreira até que desapareçam na mata dos fundos.

Percebo que a paranóia de segurança que vem atacando a população (e que é plenamente justificada) tem também o efeito de embotar a inteligência. Do ponto de vista de assaltantes os inúmeros cartazes ameaçadores que adornam a cerca e que informam seu efeito letal devem fornecer uma preciosa informação: aqui vocês encontram o que procuram! Deve ter custado caro a torradeira que nesta ultima noite de chuva funcionou acordando a vizinhança porque um saco plástico levado pelo vento acionou o tal artefato disparando um alarme, nos acordando a todos. De minha janela pude observar o desespero das figuras desgrenhadas em suas janelas e varandas que, não vendo o possível meliante colado à grade soltando fumacinha, provavelmente imaginaram o mesmo, apenas chamuscado (e, portanto enraivecido), vagando ameaçador pelos corredores do prédio. Gritos e ranger dentes se faziam ouvir.

Da minha parte um enorme alívio. Os micos estavam a salvo. E mesmo os pombos com os quais mantenho péssimas relações.  Perdido o sono me vi presa da sensação de estar sendo agredida. A mesma que já havia me invadido no dia em que me deparei com a tal cerca e com seus ameaçadores cartazes. Perguntei-me por que. Afinal a agressão não devia ser a mim dirigida. Não seria razoável pensar que aquela coisa se destinasse a me eletrocutar. Mesmo porque na minha idade não é provável que me imaginem pulando grades, cercas e outros que tais. Não de menos eu me sentia agredida. Talvez porque a instalação da cerca signifique: queremos eletrocutar alguém. Por que é isto que querem, não é?

Vai ver são defensores da pena de morte. Deve ser isto. Tudo bem: cada um tem o direito de defender o que lhes parece certo. Mas têm o direito de partir para a execução? Procurei me informar. E não é que lei permite, sim, a tal cerca! A restrição é a de que deve ser colocada a três metros de altura da calçada. E isto, justiça seja feita, foi respeitado. De qualquer modo me aflige como me afligiram as grades quando se tornaram uma constante nos prédios e as praças enfeando a cidade. Fazer o quê? Não importa se estas não impedem a entrada de assaltantes como a cerca eletrificada não o fará.

Vai ver provocam uma ilusória sensação da segurança. E disto carecemos todos. O grande problema é que a maioria dos assaltos ocorre em prédios cercados. Ou seja, as cercas são inócuas, de nada servem. Ainda assim se tornaram quase obrigatórias. Será que as cercas eletrificadas dentro de pouco tempo também o serão? A tudo isto a população desta cidade está sendo levada por puro desespero. Esta eletrificação é uma das muitas manifestações da doença grave que nos ameaça a todos porque estamos todos expostos à sua contaminação. Os sintomas de termos sido infectados vêem insidiosos, de mansinho.

Começa por não se transitar em determinados lugares. Depois vem a limitação dos horários em que se sai de casa. Fechaduras e portas de segurança são instaladas. Carros, para quem pode, são blindados. Alarmes de todo tipo são instalados. Seguranças são contratados para acompanhar crianças nas idas a escolas e a festas. Desconfia-se de tudo e de todos ao andar na rua. Entra-se num caixa eletrônico com medo. No banco idem.

Até agora os estudos, pesquisas e providências para eliminar o mal não parecem ter apresentado resultados. Ao contrário, o tratamento traz graves efeitos colaterais como o que ocorreu outro dia em Copacabana: um tiroteio em plena manhã em que a maior vítima foi uma senhora que passava. E a razão desta morte foi esclarecida pelas autoridades: as medidas contra o tráfego estão dando certo (!) obrigando os traficantes a partirem para o assalto. Quer dizer que quanto menor o tráfego maior e mais freqüente será a ameaça nas ruas? É isto?

E me vejo presa da desagradável sensação de que é apenas uma questão de tempo para que também eu seja infectada por esta terrível doença. Quem sabe comprarei até uma arma para garantir minha própria segurança passando a ser violenta para enfrentar a violência. E, desafiando a lógica e o bom senso, me sentirei protegida providenciando engenhos que só servirão para eletrocutar micos e pombos. Tudo isto por pura impotência. E este medo de ter medo é hoje minha grande preocupação!  

2007

sábado, janeiro 18, 2014

ESPERANDO O FIM DE SEMANA

Quando era ainda adolescente este bendito fim de semana prometia o encontro do namorado perfeito que, segundo os pais lhe haviam incutido por vezes de maneira óbvia e muito de forma subliminar, se apaixonaria perdidamente por ela. Com ele se casaria e viveriam felizes para sempre. Afinal esta era a finalidade da vida de uma mulher. Mas ele não aparecia. O que surgia no final da noite de domingo era a tristeza. Nos primeiros anos de pouca monta porque na segunda feira já recomeçava o embalo criativo para o romance que se revelaria em todo seu esplendor no próximo fim de semana.

O tempo foi passando e ela ainda esperando o fim de semana em que encontraria o sapo que se transformaria em príncipe. Sapos existiram, é verdade, mas permaneceram irremediavelmente sapos enquanto duraram. Até casou com um que, meses depois, começou a traí-la com a vizinha do décimo andar. Feia a coisa. Para suportar a ascensão ao andar mais alto ela reinventou o motivo da separação. Ficou sendo uma decisão sua. Escamoteou o desespero das noites em que implorou para que ele não a deixasse e inventou o fim do amor que havia sentido nos relatos que fazia. Não era mentira, não. Era o que podia aguentar humilhada e envergonhada por ter sido traída!

E a espera pelos fins de semana foi retomada, até com entusiasmo. Mas tempo passou e instalou-se a depressão aliada à tristeza, ultrapassando o fim de noite no domingo. Tudo isto invadia a segunda feira e ela começou a se perguntar: o que há comigo? Não percebia, nunca percebeu que havia se tornado uma ameaça para os possíveis candidatos. A ansiedade que lhe atacava evidenciada por gestos aflitos e declarações extemporâneas, os punha a correr. Pior é que estes eram identificados em qualquer homem que, distraído, lhe lançasse um olhar. Situações constrangedoras eram criadas e ela nem as percebia. Mas o efeito! Ah, este se mostrava em toda sua crueza. Estava cada vez mais só.

Foi então que começou a meter os pés pelas mãos. Resolveu ser uma mulher “livre”! Sem ter muita clareza do que isto significava esta liberdade se resumiu na entrega a qualquer um que buscava o momento, mas não ela. O pior é que esta “liberdade” se misturava ao romantismo de todo um passado de sonhos e ela descrevia estes homens baldios como perdidamente apaixonados. Era o jeito. Isto até o momento em que desapareciam, alguns sem dar explicação e outros as fornecendo em demasia. Por alguns dias caia na real, mas voltava, já a caminho dos sessenta, a esperar o fim de semana.

Passou a evidenciar na estética o patético do que lhe ia por dentro. Havia sido uma mulher bonita e agora esta beleza que certamente ainda poderia existir era escondida pela cor de um amarelo duvidoso nos cabelos mal tingidos, por um batom escandalosamente vermelho, por decotes absurdos e por roupas que até mesmo uma adolescente teria problemas em usar. Na vida não havia acumulado outros prazeres que não fossem os ligados à figura de um homem e estes, mesmo os baldios, já não apareciam com a mesma freqüência. Os poucos que se aproximavam sumiam de repente constrangidos pelas desesperadas caras e bocas cuidadosamente ensaiadas para conquistá-los.

Vai daí que o prazer sumiu. A espera do fim-de-semana continuava ainda. Sem ela a vida não seria possível. Só que durava pouco. Algumas horas apenas na sexta à noite. Enquanto o sono não vinha imaginava acasos que fariam com que o Homem cruzasse seu caminho. Foi ai que começou a construir uma biografia que contava a quantos se dispusessem a escutar. Uma ficção espantosa. E, como era impossível libertar-se do fim-de-semana, era neles que aparecia vivendo romances tórridos de uma sedutora mulher assediada por um desfilar de homens extraordinários, perdidamente apaixonados. Assumiu o personagem que lhe garantia sobreviver.

Foi aí que se deu o milagre. Ou melhor, o tombo! Os extraordinários saltos da sandália vermelha não suportaram o buraco na calçada e ela se estatelou frente à loja do turco. A dor das contusões impedia a atuação de costume e ela apenas chorava, borrando a pintura, sandália com salto quebrado e em total desalinho. O turco se condoeu. Carinhosamente levou-a para o fundo da loja e entre as ferragens secou suas lágrimas. Levou-a para casa no velho carro.

No dia seguinte veio saber notícias e entrou para um cafezinho. E os cafezinhos transformaram-se em longas conversas de início difíceis porque os longos anos de atuação da personagem impediam o falar de verdades. Por isto falava pouco e passou a ouvir. E foi se dando conta de que o turco não era um sapo, nem príncipe. Longe disso. Aquele homem triste, viúvo sem filhos e feio era apenas um homem bom. E maravilha das maravilhas parecia gostar dela. Tão longe do modelo sonhado fazia com que se sentisse bem. Bem demais.

Ele vinha todos os dias após fechar a loja e o fim de semana deixou de ter sentido. A espera, tão boa, acontecia de segunda à sexta. Mas casaram-se num sábado! E, segundo me contam, são felizes para sempre.
2006


sexta-feira, janeiro 17, 2014

DA BOCA DAS CRIANÇAS

Diz-se que delas sai a verdade! Provérbios, quase sempre acertam, e este acertou em mim, vitima inocente desta verdade que saiu da boca de meus dois filhos mais velhos, quando crianças. São quatro episódios que certamente concorreram para piorar a já péssima avaliação que de mim faziam muitas das senhoras de oficiais da FAB, colegas de meu então marido. Esta avaliação piorou consideravelmente depois que eles abriram esta boca da verdade acrescendo ao já condenáveis fatos de que eu fumava, jogava pôquer, usava duas peças (avô do biquíni) e, horror dos horrores: conversava animadamente no cassino de oficiais da base aérea com os oficiais solteiros quando meu marido estava viajando!!!

Estas impropriedades, nos remotos anos 50, denunciavam a possibilidade de graves desvios. Vai daí que se somaram às informações fornecidas por meus filhos, gerando certeza. Pelo primeiro foi responsável meu filho: era eu possuidora de um belo prato da Companhia das Índias que, por desgraça, havia rachado. Desobedecendo aos apelos de meu marido para que o jogasse fora eu o utilizava para colocar bolos que escondiam o rachado. É evidente que quando o bolo começava a ser comido a jaça ia perigosamente aparecendo ainda que eu deslocasse o que dele restava para cobrir a evidência. Numa tarde em que estávamos apenas nós, comido o bolo, o rachado revelou-se em todo seu esplendor. As crianças se torceram de rir quando o “olha só o que papai vai fazer com mamãe porque ela não obedece” com que meu marido simulou a destruição do prato partindo-o em minha cabeça.

Dia depois fui com meu filho tomar um lanche em casa de uma das vizinhas. Quando esta me serviu o café imediatamente recolheu a xícara com horror dizendo: Meu Deus! Esta xícara está rachada. Desculpe-me. Vou trocar.  Desolada escuto a voz de meu filho: Papai, quando tem uma coisa rachada quebra da cabeça de mamãe!

O segundo episódio ocorreu com minha filha. Eu havia comprado, para presentear meu marido, um fonógrafo de rolo antigo, lindo de morrer, que ainda funcionava. Maravilhados escutávamos a tremula voz de Caruso que saia de um rolo ainda intacto. E eis que a senhora do Comandante da Base passa de carro por nossa porta para fazer alguma comunicação rápida e recusa-se a descer para um cafezinho. E foi ai que a pestinha sai-se com esta: Vem, sim, D, Claudia! Vem ver só o aparelho “pornográfico” que mamãe deu a papai.

Os outros dois episódios foram bem mais graves e se deveram a minha constante preocupação em responder aos dois, sem mentir, aquelas perguntas de muito difícil resposta. A primeira foi formulada por minha filha que, à época, era espevitadíssima: Criança pode se apaixonar? Divertida perdi-me no relato de minha paixão pré-adolescente por Heitor Alimonda, pianista já famoso, e que me levava às lágrimas. Sublinhei o absurdo, mas também a verdade daquela paixão. A amante da música transmudara-se nos seus doze anos numa sonhada amante do intérprete. Ela adorou a história que foi ilustrada por discos e fotos.

Dias depois um casal nos convidou para um concerto beneficente que haveria na cidade. Eu mal os conhecia já que faziam parte daqueles que me julgavam capaz das piores devassidões. Eis que a jovem senhora me pergunta se eu conhecia Heitor Alimonda. Estarrecidos, meu marido e eu, escutamos a voz de minha filha animadíssima: ela conhece demais. Foi até amante dele! Claro que explicações foram dadas, creio eu, sem o menor sucesso, face ao constrangimento visível em que ficamos meu marido e eu.

Mas isto não foi nada perto do que sucedeu pouco depois com meu filho. A gravidez de meu terceiro filho gerou a inevitável pergunta: como é que o nenê foi parar na sua barriga. Perdi-me numa explicação em que a beleza do surgimento de uma vida era a tônica. Esta beleza aliava-se ao amor que, sabe-se lá porque, insisti numa figura de retórica, havia até nos bichos que ele já havia visto cruzar. Coisa mais que bonita, meu filho. Daí foi fácil prosseguir com o desenvolvimento no útero, proteção necessária até que o filhote pudesse enfrentar o mundo. Dias depois era o aniversário dele e a festa costumeira se fez. Na sala os adultos conversavam enquanto as crianças no jardim provocavam uma enorme algazarra.

Eis que de repente gritos histéricos se fazem ouvir. Corremos para a janela. Um casal de cachorros estava cruzando na calçada em frente e os meninos atiravam pedras nos coitados enquanto meu filho apoplético da varanda gritava: não pode jogar pedra! Isto é muito bonito! Papai e mamãe fazem isto sempre.  

2008

quinta-feira, janeiro 16, 2014

CRIANÇAS EM PERIGO

          Maria Clara me chama: olha só, vovó, o que eu estou desenhando.  Chamado de neta é ordem e lá está a menina, olhos brilhantes, grudados na tela do monitor.  Observo preocupada: o verbo “desenhar” não se aplica. Na verdade ela apenas movimenta o mouse sobre uma infinidade de opções oferecidas para montar uma Barbie: cabelos, olhos, boca, roupa, sapatos e mais uma infinidade de detalhes.         

Sei que Maria Clara espera uma apreciação elogiosa e tenho dificuldade em fazê-la. Saio pela tangente: gosto mais dos desenhos que você faz no papel com seus lápis de cor.  Ela se espanta: esse é muito mais bonito. vó. A Tia me mostrou como é que faz no computador. Vai dar pé explicar: esse ai todo mundo faz igual no computador. Não é seu desenho. Não é desenho de ninguém. O seu, aquele que você faz e que me dá de presente, só você é capaz de fazer. É mil vezes mais bonito.

Inútil. Ela continua a “desenhar” encantada e eu me remeto há 1955, quando microcomputador pessoal era um sonho tipo Julio Verne, e matriculei meu filho mais velho no então maternal. Um dia voltou triste para casa: a Tia havia “corrigido” um desenho que havia feito. Tratava-se de um menino: duas bolas, uma grande e uma pequena com retas no lugar de braços, pernas e dedos. Mais acima um barco. Aquele típico desenhado por crianças. A bola menor, representando o rosto, exibia um traço para boca, duas bolas menores para as orelhas e um traço para o nariz. O menino não tinha olhos. E não os tinha porque estes estavam colocados no costado do barco. Em cima dos olhos o “x” vermelho da Tia que não se deu conta de que ele havia representado, lindamente, o menino olhando o barco! De que outro jeito podia uma criança de quatro anos direcionar o olhar do menino para o barco? Elogiei, elogie muito e expliquei: vai ver a Tia não prestou atenção: Sabe de uma coisa, Rogério? Desenhos que a gente faz nunca estão errados.

Decidi que ele não voltaria para esta escola. Outra deveria haver com uma Tia que soubesse das coisas. Fui ao colégio explicar. Sei lá se me entenderam. Creio que não pela reação da Tia que provavelmente continuou a “corrigir” desenhos a torto e a direito. Isto foi meu primeiro incidente em colégios de meus filhos. Muitos outros ocorreram, sendo o mais grave o de uma professora de matemática, também de Rogério. Ela o fez decorar a forma de extrair o Máximo Divisor Comum.

Nós estávamos na Bahia e para Rogério este cálculo intitulava-se ME-DE-CÊ. E eis que diante de minha reclamação de que ele não tinha a menor ideia do que estava fazendo, a professora responde: não tem importância! ME-DE-CÊ não serve para nada mesmo! E nova troca de colégio se deu.

Ao longo do primário de meus filhos os incidentes se multiplicaram. Vejo com tristeza, pelas últimas notícias, que a qualidade do ensino público não melhorou. Ao contrário parece pior. Possivelmente os professores são os que menor culpa tem, também vitimas que são do ensino que lhes foi dado. Além disto, ganham mal e alguns até arriscam a vida para dar aula. As escolas são mal aparelhadas e pouca ou nenhuma ajuda vem dos pais, também despreparados e atormentados por um dia-a-dia terrível.

De 1937 a 1941 cursei uma excelente escola pública. Nunca decorei tabuada. O método usado por D. Luiza (não era “tia” naquele tempo) me fez entendê-la e, mais que isto, “visualizá-la” tornando concreto o abstrato dos números. Consistia num saquinho cheio de bolas de gude, daquelas mínimas que chamávamos “olhinhos”. A gente punha a mão dentro do saco uma vez e tirava duas bolas que deixava em cima da mesa, juntas. E então ela perguntava: quantas vezes vocês puseram a mão dentro do saco? E a classe respondia: uma! E quantas bolas tiraram? E vinha o coro: duas. E vinha a voz de D, Luiza: olhem as duas bolas na juntinhas na mesa. Isto que dizer que uma vez duas bolas é igual a duas bolas. Vamos ver o que acontece quando a gente põe duas vezes a mão no saco e tira duas bolas de cada vez. E em cima da mesa ia surgindo, sólido, o resultado da tabuada de dois, arrumado em grupos de duas bolinhas. Lembro-me que dias depois a turma foi capaz de construir, sem ajuda, a tabuada de cinco. Foram moles as restantes.

Noções de conjunto ficaram evidentes na coleção de xícaras, pires e colheres (de galalite!) em quantidades diferentes. Estes mesmos objetos já nos haviam dado, no primeiro ano, noção de quantidade. Mais, menos e igual, como dizíamos. Há poucos dias foi divulgado que alunos, no Brasil inteiro, não compreendem o texto que lêem e têm um péssimo desempenho em matemática.

De novo a memória acorda com D. Luiza nos fazendo contar, uns para os outros, a pequena história que havíamos lido como dever de casa primorosamente escrita numa única folha na letra caprichada de D. Luiza. O texto era diferente para cada um e estimulada por D. Luiza a classe metralhava de perguntas o contador do dia. Deslindávamos assim personagens e enredo. Ao final cada um tinha que se manifestar dizendo o que havia achado da história e do comportamento dos personagens e em críticos nos tornávamos.

Hoje, as Tias incluídas digitalmente, preferem a Barbie e vai ver também corrigem meninos sem olhos e nunca, nunca mesmo, dividem um teto em quadrados perfeitos com bandeirinhas de São João usando o MÊ-DÊ-CÊ.  Caramba! Nossas crianças estão em perigo!

2008