segunda-feira, novembro 18, 2013

SÓ PODE SER CARMA

Se outras vidas existem devo ter aprontado algumas de peso nas anteriores. Isto explicaria os extraordinários acontecimentos que povoam meu dia-a-dia desde que engoli um grampo aos quatro anos de idade. Sabe-se lá por que minha mãe guardou a radiografia deste evento a qual dei um fim recentemente achando que, quem sabe, a guarda desta documentação era o motivo da continuidade deste carma que me assola. Ledo engano! Numa constância espantosa as coisas acontecem. O mais desagradável é que sempre existem testemunhas que se divertem com minha desgraça encarregando-se de divulgá-la. Pior ainda, dirigem-se a mim fazendo-me lembrar o que eu daria tudo para esquecer, como ontem à noite ocorreu.

Atravesso o piloti, demandando à rua e à Cobal, lançando um rápido “bom dia” ao Porteiro, evitando o contato visual que poderia ensejar um comentário sobre a noite anterior, já que o outro que havia estado de serviço certamente havia feito o relato do ocorrido. Outras pessoas por lá se encontravam e deveria ser evitado a qualquer custo que fossem informadas do que havia acontecido. Inútil. Num tom divertido o Porteiro lança: que noite, heim, D, Anna!  Murmurei sei lá o que e desabalei ladeira abaixo. Mas o “que noite” acompanhou meus passos e, certamente vai me acompanhar durante largo tempo. Mesmo porque vou topar causador do evento, freqüentemente.

Já passava da uma da manhã e eu não me decidia a largar o livro que avidamente lia. Como sempre me recriminava: amanhã tenho que acordar cedo! Deu sede e me levanto demandando a geladeira. Chegando à sala escuto surpresa o som inconfundível de uma chave tentando abrir a porta. Ladrão com chave?! Coisa estranha, mas não impossível. O olho mágico revela um rosto familiar: um vizinho! Resolvo abrir. Muito improvável que tenha se tornado assaltante. Quando abro a porta ele passa por mim demonstrando uma enorme dificuldade em manter a condição de bípede e enrolando a língua, diz: vou pra cama. O que de fato faz dirigindo-se a meu quarto num movimento pendular atingindo, a cada passo, as paredes do corredor. Atira-se em minha cama e imediatamente é acometido de um coma etílico.  

Tento acordá-lo para comunicar o óbvio: bêbado, enganou-se de andar. Ele resmunga num tom belicosamente irritado, muda de posição e coloca o meu travesseiro cobrindo a cabeça. Só tem um jeito: chamar o porteiro noturno para removê-lo e entregá-lo “em domicílio”. Corro para o interfone o convoco para vir retirar o invasor. Desolado ele me informa: ele estava ruizinho mesmo, D. Anna. Tive que botar ele no elevador e apertar o botão. Vai ver eu errei o andar. Mas eu não posso deixar a portaria por que pode chegar alguém e eu tenho que abrir a porta. Penso rápido: este desgraçado não pode ficar dormindo aqui. A única solução é substituir o porteiro. Comunico minha decisão, enfio um roupão e desço deixando a porta aberta.

O Porteiro sobe e lá fico eu na guarita rezando para que ninguém resolva entrar ou sair o que, graças a Deus, era improvável àquela hora da madrugada. Mas para minha desgraça o improvável nunca é impossível e um casal do bloco de trás bate a campainha. Aciono a abertura do portão evitando olhar os dois que param, mirando incrédulos a guarita e dando um “boa noite” em tom cauteloso. Respondo e os vejo partir em direção ao fundo rindo muito. Neste momento começo a ouvir imprecações de baixo calão vindas de meu apartamento (moro no segundo andar). Evito repeti-las aqui e deixo à imaginação de vocês o que é capaz de dizer um bêbado que calmamente dorme sendo obrigado a levantar-se de sua cama pelo porteiro do edifício que indevidamente está em seu quarto. 

Ouço a voz irritada do Porteiro: o senhor não pode ficar a noite toda na cama de D. Anna! Precisava dizer isto? Como conseqüência acende-se a luz do quarto correspondente no primeiro andar e a moradora põe a cabeça na janela e quando me vê de roupão na guarita a retira imediatamente. Pouco depois o interfone toca. É ela, penso, esta porcaria pode arrebentar de tocar que eu não atendo. Realmente a coisa arrebenta de tocar, acompanhada agora pelo interfone do terceiro andar. A campainha do portão toca e eu vejo meu vizinho de andar que felizmente conheço bem. Explico a ele a situação e, rindo muito, ele resolve subir para ajudar o porteiro.

Depois de alguns minutos escuto o barulho do elevador misturado ainda às imprecações agora dirigidas também ao meu gentil vizinho. A demora é longa. Provavelmente os dois estão tendo dificuldade em explicar à senhora do rapaz tudo o que ocorreu. Mas, finalmente, descem os dois e começam a me relatar a remoção do indivíduo e a reação da cônjuge.

Neste momento chega mais um morador que aturdido se depara com o grupo formado por dois moradores (eu de roupão) e o porteiro, numa animada conversa. É evidente que quis inteirar-se da situação que lhe foi explicada às gargalhadas pelo Porteiro e pelo vizinho. Passa ele também a rir muito. Pensando que tudo havia terminado disponho-me a voltar à tranqüilidade de minha casa e de meu livro. Nada mais impossível: o porteiro, num riso idiota, me comunica: sinto muito, D. Anna, mas a senhora vai ter que fazer uma limpeza daquelas. Ele vomitou na cama e no chão também.

Furiosamente, e com imprecações similares às do criminoso, procedo à limpeza de meu quarto e dos lençóis rezando para que a vizinha do andar de baixo, não resolva reclamar do barulho da faxina e da máquina de lavar em pleno funcionamento às duas da manhã.
2008




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