Se outras vidas existem devo ter aprontado algumas de peso nas
anteriores. Isto explicaria os extraordinários acontecimentos que povoam meu
dia-a-dia desde que engoli um grampo aos quatro anos de idade. Sabe-se lá por
que minha mãe guardou a radiografia deste evento a qual dei um fim recentemente
achando que, quem sabe, a guarda desta documentação era o motivo da
continuidade deste carma que me assola. Ledo engano! Numa constância espantosa
as coisas acontecem. O mais desagradável é que sempre existem testemunhas que
se divertem com minha desgraça encarregando-se de divulgá-la. Pior ainda, dirigem-se a mim fazendo-me
lembrar o que eu daria tudo para esquecer, como ontem à noite ocorreu.
Atravesso o piloti, demandando à rua e à Cobal, lançando um
rápido “bom dia” ao Porteiro, evitando o contato visual que poderia ensejar um
comentário sobre a noite anterior, já que o outro que havia estado de serviço
certamente havia feito o relato do ocorrido. Outras pessoas por lá se
encontravam e deveria ser evitado a qualquer custo que fossem informadas do que
havia acontecido. Inútil. Num tom divertido o Porteiro lança: que noite, heim, D, Anna! Murmurei sei lá o que e desabalei ladeira
abaixo. Mas o “que noite” acompanhou meus passos e, certamente vai me
acompanhar durante largo tempo. Mesmo porque vou topar causador do evento,
freqüentemente.
Já passava da uma da manhã e eu não me decidia a largar o
livro que avidamente lia. Como sempre me recriminava: amanhã tenho que acordar
cedo! Deu sede e me levanto demandando a geladeira. Chegando à sala escuto
surpresa o som inconfundível de uma chave tentando abrir a porta. Ladrão com
chave?! Coisa estranha, mas não impossível. O olho mágico revela um rosto
familiar: um vizinho! Resolvo abrir. Muito improvável que tenha se tornado
assaltante. Quando abro a porta ele passa por mim demonstrando uma enorme
dificuldade em manter a condição de bípede e enrolando a língua, diz: vou pra cama. O que de fato faz
dirigindo-se a meu quarto num
movimento pendular atingindo, a cada passo, as paredes do corredor. Atira-se em
minha cama e imediatamente é
acometido de um coma etílico.
Tento acordá-lo para comunicar o óbvio: bêbado, enganou-se de
andar. Ele resmunga num tom belicosamente irritado, muda de posição e coloca o meu travesseiro cobrindo a cabeça. Só
tem um jeito: chamar o porteiro noturno para removê-lo e entregá-lo “em
domicílio”. Corro para o interfone o convoco para vir retirar o invasor. Desolado
ele me informa: ele estava ruizinho
mesmo, D. Anna. Tive que botar ele no elevador e apertar o botão. Vai ver eu
errei o andar. Mas eu não posso deixar a portaria por que pode chegar alguém e
eu tenho que abrir a porta. Penso rápido: este desgraçado não pode ficar
dormindo aqui. A única solução é substituir o porteiro. Comunico minha decisão,
enfio um roupão e desço deixando a porta aberta.
O Porteiro sobe e lá fico eu na guarita rezando para que
ninguém resolva entrar ou sair o que, graças a Deus, era improvável àquela hora
da madrugada. Mas para minha desgraça o improvável nunca é impossível e um
casal do bloco de trás bate a campainha. Aciono a abertura do portão evitando
olhar os dois que param, mirando incrédulos a guarita e dando um “boa noite” em
tom cauteloso. Respondo e os vejo partir em direção ao fundo rindo muito. Neste
momento começo a ouvir imprecações de baixo calão vindas de meu apartamento
(moro no segundo andar). Evito repeti-las aqui e deixo à imaginação de vocês o
que é capaz de dizer um bêbado que calmamente dorme sendo obrigado a
levantar-se de sua cama pelo
porteiro do edifício que indevidamente está em seu quarto.
Ouço a voz irritada do Porteiro: o senhor não pode ficar a
noite toda na cama de D. Anna! Precisava dizer isto? Como conseqüência
acende-se a luz do quarto correspondente no primeiro andar e a moradora põe a
cabeça na janela e quando me vê de roupão na guarita a retira imediatamente.
Pouco depois o interfone toca. É ela, penso, esta porcaria pode arrebentar de
tocar que eu não atendo. Realmente a coisa arrebenta de tocar, acompanhada
agora pelo interfone do terceiro andar. A campainha do portão toca e eu vejo
meu vizinho de andar que felizmente conheço bem. Explico a ele a situação e,
rindo muito, ele resolve subir para ajudar o porteiro.
Depois de alguns minutos escuto o barulho do elevador
misturado ainda às imprecações agora dirigidas também ao meu gentil vizinho. A
demora é longa. Provavelmente os dois estão tendo dificuldade em explicar à
senhora do rapaz tudo o que ocorreu. Mas, finalmente, descem os dois e começam
a me relatar a remoção do indivíduo e a reação da cônjuge.
Neste momento chega mais um morador que aturdido se depara
com o grupo formado por dois moradores (eu de roupão) e o porteiro, numa
animada conversa. É evidente que quis inteirar-se da situação que lhe foi
explicada às gargalhadas pelo Porteiro e pelo vizinho. Passa ele também a rir
muito. Pensando que tudo havia terminado disponho-me a voltar à tranqüilidade
de minha casa e de meu livro. Nada mais impossível: o porteiro, num riso idiota,
me comunica: sinto muito, D. Anna, mas a
senhora vai ter que fazer uma limpeza daquelas. Ele vomitou na cama e no chão
também.
Furiosamente, e com imprecações similares às do criminoso,
procedo à limpeza de meu quarto e dos lençóis rezando para que a vizinha do
andar de baixo, não resolva reclamar do barulho da faxina e da máquina de lavar
em pleno funcionamento às duas da manhã.
2008
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