sexta-feira, novembro 08, 2013

AQUELE OLHAR

A leitura de um  belo texto de Mário Chimanivicth - O Lamento de um Dinossauro – me trouxe à memória “aquele olhar”... Não me recordo da primeira vez que foi a mim dirigido. Mas naquela tarde de verão do ano 2000 o reconheci no momento em que entrei na sala onde faria a apresentação de um novo sistema destinado a controlar empréstimos concedidos a associações de trabalhadores sem terra para compra de propriedade rural.

A emissora do olhar era uma dos jovens analistas de sistemas da empresa que se encarregaria do desenvolvimento. Melhor que emissora seria dizer atiradora já que o olhar era mortal e carregado de significado. Era bem jovem a moça, no máximo uns 25 anos; era bem velha eu, no mínimo 70! E o motivo da agressão visual era justamente estes no mínimo 45 anos de diferença. A frase formulada com os olhos soava nítida: “o que esta velha está fazendo aqui?”.

Não julguei prudente responder com olhar adequado, mas bem que deu vontade de dar uma de Napoleão: “do alto destes setenta, mais de quarenta anos de experiência te contemplam”. A partir daí e por cerca de uma hora, fui “sabatinada” por ela e pelos demais. Todos pareciam muito mais interessados em verificar se eu sofria ou não de caquexia do que sobre as definições do sistema. Munida de uma paciência que não é muito de meu feitio consegui passar na “prova”, aparentemente até com louvor, tomando de novo as rédeas da reunião. O olhar da moça transformou-se em espanto e incredulidade.

Passaram-se meses até que a pobre conseguisse olhar-me como uma colega de trabalho! Para que isto acontecesse foi necessário que tivéssemos uma conversa que beirava o nonsense. Tudo indicava que madrugaríamos, ela e eu, atoladas nos testes da versão Beta do sistema. Vai daí que, já perto de meia noite, resolvemos dar uma parada para comer alguma coisa. Instaladas no único restaurante que encontramos ainda aberto, desenvolveu-se o diálogo do qual me lembro como se houvesse ocorrido ontem:

-  Posso te fazer uma pergunta?
-  Claro.
-  Como é que é ser assim?
-  Assim como?
-  Ora, você é ve... quer dizer, idosa.
-  Pode dizer velha mesmo. Afinal eu sou. Mas antes me diz como é que é ser jovem.
- Ora... é imaginar a vida que vou ter pela frente; é pensar qual será o meu próximo trabalho; é me divertir; é imaginar se vou ter filhos; sei lá! Um monte de coisas que virão pela frente.  
- Incrível. É exatamente igual comigo. A não ser pelos filhos. Agora imagino se vou ter bisnetos! E um monte de outras coisas que virão frente também.
-  Qual é! Você pode mor...
-  Morrer? Posso sim, claro. Mas você não?
-  !!!
A partir daí a distância encurtou. Passei a ser “colega”. Em  2005 deixei a assessoria que prestava aos projetos e não mais a vi. Vez por outra dela recebo um mail. No último me informava: fiz 31 anos! E por que já tenho filho penso agora nos netos. E você já tem bisneto! Você tinha razão: é tudo igual mesmo.

Agora ela sabe. Mas é uma exceção. A maioria dos velhos e dos moços ainda não sabe disto. Os primeiros perdem um tempo precioso chorando pelo acham ter perdido com a idade (como se perdas não ocorressem desde o nascimento) e os segundos com medo, não da velhice (porque esta lhes parece irreal), mas dos próprios velhos!

O olhar continua a me ser dirigido. Eventualmente sou agraciada com o que é considerado um elogio: você não parece a idade que tem! Pena, porque faço muita questão de que se reflitam em mim todos os anos vividos. Afinal trata-se de uma conquista conseguida às minhas próprias custas. Não gostaria de abrir mão de um só destes anos passados.

Aprendo muito com os mais jovens (e mais jovem para mim é qualquer pessoa que tenha menos de oitenta dois anos). Aprendo muito com o tempo que passa e que me trás novos pontos de vista, novas possibilidades. Não tenho uma saudade sofrida “do meu tempo” quando, por exemplo, frequentava fila de banco. Hoje não mais o faço graças à possibilidade de acessá-lo no cibernético espaço.

Impossibilidade que dói só mesmo não ter mais cavalos. Agora tenho gatos! Uma mudança significativa. Mas até eles, os gatos, me ensinam. Como sabem ser zen! Possivelmente nunca atingirei o grau de perfeição com que conseguem assim se comportar, mas já melhorei muito neste aspecto. Pelo menos já consigo sorrir quando me lançam (e isto acontece com freqüência) aquele olhar... Cavalos jamais me ensinariam isto. E nem teria o menor sentido ser zen naqueles tempos eqüestres! Vai daí que embora usada para saudar a diversidade entre os sexos tomo emprestada a frase para saudar a que existe entre idades: et vive la differénce!

2012

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