segunda-feira, dezembro 30, 2013

ME CONTA UMA HISTÓRIA

Ela fecha a porta de casa atrás de si e pensa: agora vai passar! A entrada em casa sempre foi o alívio para todos os males. Mas o porto seguro desta vez não está funcionando. Sabe-se lá por que. Coisa esquisita! Será que finalmente a velhice ataca? Não o ficar velha: isto ela o é, desde muito. Mas não haviam aparecido até agora os efeitos desagradáveis da coisa. Mas hoje aquela sensação de tristeza e desamparo se instalou desde cedo.

Depressão senil. Sempre ouviu falar disto. É... vai ver atacou. Quando, como um autômato, foi ao caixa eletrônico tirar dinheiro nem olhou as frutas na Cobal. Tão bonitas sempre, hoje murchas; e as verduras nem verdejavam. Vai ver é isto: na depressão as cores somem substituídas por um cinza feio e sem graça. Fica ali parada sem achar o destino certo dentro de casa. Falta alguma coisa, pensa. É isto! Falta! O que é que falta ela não sabe. Mas a sensação de não estar lá “a coisa que falta”, é verdadeira, é sólida! O que poderá ser? Se falta deve ter um buraco, um vazio em algum lugar. Seus olhos percorrem cada canto, cada objeto.

Ao passar pela foto do pai se detém e se assusta. Não é uma “coisa” que falta. É o pai. Ele mesmo. Pessoa. Mas isto não tem sentido. A falta dele existe sempre e já não dói tanto, faz tempo. Ao contrário, é bom lembrar. Mas é ele. Ela tem certeza. É ele que falta hoje. Deixa-se ficar ali, agora no sofá, olhando a foto. Que estranho! No prédio ao lado uma criança chora... ... e o Pai sorri. Aninha-se no colo dele e pede:

-  Pai, conta uma história. Uma história daquelas que muda tudo.
-  Muda? O que é que você quer mudar?
-  Eu. Muda eu.
-  Pra quê?
-  Tô triste.
-  Ah!
-  Conta!
-  Tristeza não é ruim. Sabe?
-  É, sim. Muito. A história, pai. A história.

A história vem, perfumada pela loção de barba que conduz à calma e ao peso das pálpebras que não têm mais medo de fechar. A história que muda tudo invade o sono. Alça voo nos braços do Pai e faz um pouso suave nos lençóis de linho. Já está dormindo. Mas mesmo assim sente o beijo e o ajeitar das cobertas.

Percebe quando ele sai do quarto ao mesmo tempo permanecendo ao lado da cama na mágica de sua sempre onipresença. Ela ainda murmura: Pai... no prédio ao lado a criança parou de chorar. Da foto o Pai ainda sorri observando a samambaia. É para lá também que vai o olhar dela. Meu Deus! Como está verde! Tão verde! E a volta da cor, conduz o sono.

2005


domingo, dezembro 29, 2013

MISONEÍSTAS E NEÓFABOS

 Que me perdoem meus pares! Mas muitos de nós da terceira idade somos isto aí que está no título. Alguns odeiam com todas as nossas forças (as que ainda lhes restam...) tudo que é novo. O invariável “no nosso tempo era melhor” investe contra qualquer novidade. Isto não é (sempre) uma verdade. A transformação de descobertas “do bem” em ferramentas “do mal” deve ocorrer – creio - desde o dia em que um homem das cavernas rachou com o recém descoberto machado de pedra o crânio de quem lhe roubou a esposa. O problema não foi o machado, foi o homem. Continua a ser o homem quando isto ocorre hoje com um calibre 38.

Todos os dias agradeço a Babbage a invenção daquela geringonça idealizada há mais de 100 anos e que resultou no microcomputador que torna possível, entre outras maravilhas, o supermercado on-line. Mas enumerar o mau ou bom uso de maravilhosas descobertas não é minha intenção nesta manhã,  tão bela, em que escrevo observada pelos micos encarrapitados na mangueira. É triste mas tenho uma confissão a fazer: descobri-me também misoneista e neófaba.

Trata-se da cada vez mais difundida cyber linguagem. Ouvi dizer que surgiu, não dos adolescentes que são seus melhores e maiores divulgadores e adeptos, mas do advento do telefone celular. O custo das ligações é alto e a abreviatura das palavras e a eliminação de acentuação significou uma considerável redução de tempo na transmissão de mensagens. Mas não importa muito onde ou porque surgiu. O fato é que se alastrou como uma epidemia que agora – receio - já se torna endêmica. 

Há um aspecto curioso que certamente já deve ter sido comentado por alguém, mas me passou despercebido: o que vai ocorrer, por exemplo, com os sistemas de busca na Internet se esta coisa continuar a crescer de forma exponencial? E com o Hipertexto, para mim uma dos mais extraordinários avanços da informática? O que foi criado para reduzir o custo das mensagens via celular vai provocar uma complicação dos diabos e um conseqüente e significativo aumento de custos.  Mas o que mais me intriga não é a grafia. É o estranho efeito que esta linguagem produz em quem a utiliza. Sei lá eu porque todo e qualquer comentário nela escrito provoca uma sensação de euforia em seu autor que a comunica ao endereçado com uma profusão de “rs” presentes no final das frases significando que estão rindo. Riem muito, os cyber escritores e, justiça seja feita, são muito carinhosos ao distribuir, em profusão, bjs e abs, naum é?

Gentil, uma senhora já cinquentona, desejou-me um ótimo fds. Confesso que imaginei o pior! Ofendida fiquei, e muito, até me ser esclarecido que se tratava de fim-de-semana. Ainda não tive coragem de ver o Cyber Movie com legendas idem. Não é mesmo prudente que o faça. A leitura das legendas poderá me levar à exaustão ao final de duas horas. Já bastam as infelizes traduções que percebo em algumas legendas como uma que outro dia li com espanto. Um personagem fez menção de outro do qual não havia indício da existência na trama, tudo isto porque general manager (gerente geral) havia sido traduzido como um General Manager! 

Não sei se entre meus leitores existe um neurologista. Não os imagino em grande quantidade portando é probabilisticamente improvável que exista. Mas se houver gostaria de ser informada se esta minimalista linguagem pode provocar, no decorrer do tempo, igual reducionismo no cérebro. Se isto acontecer que estranhos comportamentos poderão começar a ocorrer? Quantos neurônios deixarão de funcionar? Procuro alguma vantagem nisto: vai daí, quem sabe, a evolução desta linguagem poderá ultrapassar as barreiras da escrita permitindo a verbalização.

Já me imagino na janela, frente à mangueira, mantendo um estimulante diálogo com os micos já que teremos o cérebro do mesmo tamanho. Um diálogo sem vogais é claro. Sabe-se lá. Os homens das cavernas talvez não as utilizassem. Até lá espero que os criativos inventores resolvam problemas que me parecem insolúveis. Por exemplo, a grafia pt, que até hoje significava ponto, poderá significar pote, pito, pitu, pata, peta, poti, piti, parando por aí para não descer o nível que se impõe a alguém de minha idade.

Frases podem ficar inteiramente sem sentido caso isto não se resolva. Lembro-me que quando surgiram os programas tradutores nos demos conta de que seria um grande avanço, mas em alguns casos nunca se tornaria possível traduzir frases que teriam outro sentido que não o aparente, dependendo do contexto. O exemplo clássico era: “esta galinha pode ser comida”. Este problema ainda permanece sem solução.

Confesso-me pois misoneista e neófaba coisa que me desagrada porque estas duas palavras são muito feias e serão ainda mais se escritas com a nova grafia: msnst e nfb. Vai ver estou me tornando uma velha intolerante. Se assim for peço perdão por não conseguir me adaptar, neste caso específico, aos novos tempos. Numa tentativa de lançar uma ponte de mim para os que adotam, entusiasmados, esta forma de comunicação, e num esforço de reportagem, me despeço enviando a tds vcs abs, bjs e desejos de um ot fds (rs).
2007

sábado, dezembro 28, 2013

O ÚLTIMO CARNAVAL DA ADOLESCÊNCIA





O “ficar” ainda não existia. Mas hoje me dou conta que naquele já tão distante 1948 havíamos criado precursor deste processo, sem saber, sem nomear. O plural deve-se aos jovens que desde o nascimento tornaram-se uma entidade indestrutível, inseparável: os Amaral, os Bittencourt, os Delamare, os Freire, os Durão, o Brito Cavalcanti, os Darke de Matos, os Costa Pinto e nós, os primos Miguel Pereira, éramos O Grupo. A este se agregava, destoando um pouco, o “Pequeno Príncipe”, como apelidávamos Jean Noël: meio francês e afilhado de Ginette e Alphonse,  donos do Ermitage, o único hotel existente na ainda não cidade. 


          Tínhamos, nós sitiantes de carteirinha, o maior desprezo pelos “veranistas” frequentadores do hotel que, desde alguns anos, haviam começado a surgir naquelas paragens. Crescemos juntos e juntos passávamos uma grande parte do ano: as grandes férias, as férias de julho, feriados e fins de semana. Como não podia deixar de ser, quando atingimos a adolescência começaram os namoros intra-grupo e, como todos os namoros naquela idade, começavam e logo acabavam. Sobretudo porque só valiam para as férias. No Rio pouco nos víamos. Com uma quantidade finita de candidatos o jeito foi estabelecer um rodízio já que “veranistas” não eram admitidos. O troca-troca nunca deu problema. Uma coisa era sagrada: no carnaval todos tinham que estar namorando.

E eis que o carnaval de 48 se anunciou trágico para mim. Um gravíssimo incidente havia ocorrido: o cavalo de Domingos Olimpio (meu namorado no momento), mordeu meu cavalo por pura maldade e, mais grave, ele nada fez para impedir a até se vangloriou da agressão desmedida daquele pangaré idiota e desbotado. A ofensa era grave demais para manter o namoro que se desfez com palavras extremamente desagradáveis de parte a parte. Resultado: eu estava no mato sem cachorro mesmo porque Domingos numa atitude vergonhosamente desleal começou a namorar fora do grupo! Uma menina (linda) que conhecíamos, mas não era sitiante. Também não era hóspede de hotel. A família  tinha uma casa de veraneio. Ou seja, um meio termo aceitável. E foi assim que eu entrei bem!

No encontro na estação para esperar o trem das onze, naquele sábado de carnaval, as meninas me rodeavam com palavras de conforto: “vai ver o Jean chega no trem. Ele não está namorando ninguém”. Fiquei indignada: “este nem vestido de ouro!”. Minha rejeição dava-se pelo fato de que desde muito pequenos eu morria de inveja dele, dono que era de um pônei que o padrinho lhe havia dado aos 6 anos e, ainda por cima, volta e meia ia à França! Imperdoável. Mas eis que o trem chega e com ele, Jean, que no último ano da Escola da Aeronáutica tinha um período de férias bem menor que o nosso. No Bar do Nagib, nas mesas que se formaram depois da chegada no trem para acertar os detalhes da ida ao baile daquela noite, Jean foi informado de minha disponibilidade. Anos depois fiquei sabendo que o comentário foi: “vou ter que fazer como o Domingos. Ela, de jeito nenhum.”

Às oito da noite encontramo-nos na estação para formar a caravana do baile. Ai mais uma humilhação. Cada casal ocupava uma charrete. Eu me recusei a ir sozinha em uma e optei pelo cavalo o que também ocorreu com Jean. A caravana partiu e, por um tempo, tentamos cavalgar separados. Mas Dream Boy, meu cavalo, tinha uma estranha mania: recusava-se a andar desacompanhado caso houvesse outro cavalo por perto e estava me dando o maior trabalho para contê-lo. Sobretudo porque sem botas, chicote ou esporas era difícil dominá-lo e eu estava vestida com um sarong! O resultado é que lá pela altura do Buraco dos Burros a havaiana e o pirata passaram a cavalgar juntos, inicialmente em silêncio. De repente Jean começa a rir e diz: isto está ridículo. Ri também e começamos a conversar. Contei a ele a falseta de Domingos e de seu pangaré e fiquei grata com o comentário de assim não dá mesmo. E me veio a grande idéia: “e se nós fingíssemos. Só durante o carnaval?” Ele, que nunca foi de muitas palavras apenas disse bacana esta idéia! Entramos de mãos dadas no salão para espanto de todos. E eu tive o enorme prazer de ver nos olhos de Domingos a incredulidade e até uma certa raiva.  

Divertimo-nos muito durante o carnaval com a sensação de estarmos enganando a todos. Exageramos em ternuras e afagos, num desempenho teatral impecável. Na quarta feira e cinzas, acordei mal. Não fui à estação para a espera do trem das onze. Alguma coisa de muito desagradável estava acontecendo.  Avó, tios e pais afligiram-se: o que é que você tem? Eu só soube dizer: me deixem em paz e me tranquei no quarto. Como sempre a família respeitou, mas do quarto eu escutava as frases especulativas e preocupadas.  De repente uma batida na porta e a voz maviosa de um dos tios: Jean está aqui querendo falar com você.

A vida voltou a ser bela. Ele ali estava e ficou por mais de 18 anos e três maravilhosos filhos. No dia em que nos casamos, um ano e meio depois, ao entrar na igreja ao som da marcha nupcial nos braços de papai, cada ponta de banco estava ocupada por um da turma que dizia para espanto dos convidados: nem vestido de ouro, heim?!

Aquele carnaval certamente aconteceu algo de diferente. Domingos também se casou com a bela meio veranista e ficaram casados até sua morte poucos anos atrás. Minha prima casou-se com um Costa Pinto. Só hoje me dou conta de que com o carnaval de 48 terminou a mais bela, divertida e maravilhosa adolescência que alguém pode ter.

             2009

sexta-feira, dezembro 27, 2013

FALSA INDEPENDÊNCIA

Desde muito jovem aprendi a conhecer as pessoas pelo que fazem e não pelo que falam. Não que a maioria seja mentirosa. Longe disto. O que ocorre é que um grande número delas se auto-engana e quando falam refletem o que queriam ou acham que deveriam ser e não o que são realmente “são”. Já quando na trajetória da vida a história é outra. Esta ambigüidade é muito presente nas que se dizem enfaticamente independentes: sou totalmente independente. Caramba! Fosse isto possível esta pessoa seria provida até de um sistema de coleta e eliminação de lixo! Porque é inegável a dependência de todos da existência de lixeiros e garis.

Este é apenas um mínimo exemplo de milhares de seres dos quais dependemos. Isto no campo material. No campo dos sentimentos a dependência, em alguns casos, é indispensável. Amigos, cônjuges, filhos, artistas, escritores, músicos e que mais sei eu, tornam a vida mais bela por existirem e deles dependemos para poder viver em toda sua plenitude o amor, a amizade, a alegria e o encantamento do belo.

Mas o que chama atenção é que estes “independentes” confessos muito freqüentemente de independentes têm apenas o discurso. No mais, para existirem, são dependentes das mais diversas circunstâncias. Na verdade são pessoas que seriam inexistentes caso “coisas” exteriores não existissem. Ou seja, vivem vida de outros ou então de fatores externos e não do que valem em si mesmos. Se lhes forem tirados estes fatores ou estas pessoas tornar-se-iam um nada. Porque nada construíram de seu.

Pessoas verdadeiramente independentes não só tem consciência de que não o são totalmente como tem a de ser, em si, alguém. Podem lhes ser retirados todos os atributos externos e continuam ser. Jamais farão das tripas coração para agradar aqueles de quem “dependem” (mas negam depender) ou para permanecer na situação ou circunstância que lhes fazem “ser”. Têm-se um exemplo primoroso disto naqueles que proferem indignados: você sabe com quem está falando? Eles não poderiam dizer isto se lhes fosse tirado o título ou o cargo. Mas eu, e espero que você que me lê, podemos dizer isto em qualquer circunstância porque “somos”. Mas não dizemos porque não precisamos deste escudo falso e de má qualidade para atestar que “somos”.

Um dos meus ídolos da juventude (e ainda!) foi Humphrey Bogart. Personagem real de um episódio que ilustra este “ser”. Sid Luft, então marido de Judy Garland era vizinho de Bogart e havia comprado um Rolls-Royce. Além disto, lhe conferiam importância a mansão em que morava, um mordomo inglês, sapatos idem e mais um monte de coisas exteriores. Numa festa, em Hollywod, Sid perorava sobre a “classe” que lhe era conferida por estes acessórios. E Bogart, impiedoso, comentou: classe não pode se comprada ou adquirida como um bronzeamento perfeito. Eu posso afirmar que você não a tem, nem nunca terá. Eu sei do que estou falando porque nasci com ela. Conservei-a a vida toda e posso até passar sem. Bogart nascido em berço de ouro (seu pai era um médico famoso e sua mãe uma artista plástica de sucesso, ambos de famílias tradicionais) sabia que nada disso conferia a ele, ou a quem quer que seja, alguma importância. O que importava era o que de fato era, como pessoa. E isto em qualquer circunstância nunca lhe poderia ser tirado.

Pode-se e se deve ter encantamento, por exemplo, de pertencer a uma família ilustre em que membros se distinguiram por alguma razão, mas a verdade é que isto não confere a alguém qualquer importância se este alguém não tiver uma sensação interior de sucesso (este não precisa ser atestado por outros) conseguida por seus atos e feitos durante a vida. Comparação com quem quer que seja nunca tem sentido. A única comparação válida é consigo mesmo: quanto eu andei; quanto eu fiz, quanto eu consegui em “ser”. E é isto que nos torna independente. É isto que nos torna alguém capaz de admirar a si mesmo.
2011       


quinta-feira, dezembro 26, 2013

PAPAI NOEL ICONOCLASTA

-    Olá! Por aqui de novo? Logo hoje!
-    Preciso de ânimo! No ano passado aquela ceia de fim de noite que você me proporcionou, foi tão legal! Vai daí que pensei em passar para uma conversinha.  Como sempre você deixou a janela aberta! Uma imprudência. 
-   Você tem razão, mas esta trancação a que hoje nos obrigam é tão desagradável, né? Por lá vocês não têm este problema, não é?
-   Pensa você! A fábrica de brinquedos vive trancada. Depois que acabaram com o limbo as criancinhas invadem e fazem uma bagunça que só vendo. Mas sem violência, é claro.  É só uma travessura. Como vão as coisas por aqui?
-     Vão como Deus é servido. Mas Ele não tem se servido muito bem, ultimamente.
-      Tô sabendo. Dá um desconto, filha. Você não imagina o trabalho que dá esta humanidade. Mesmo sendo onipresente e onisciente é uma tarefa hercúlea dar conta de tudo.
-      Hercúlea?! Hércules é um semi-deus pagão! Você não devia aplicar este adjetivo a Ele! 
-      Mas Hércules era um homem do bem!
-      Mesmo assim! ... Você conhece?
-      Quem?
-      Hércules. Vai me dizer que ele anda por lá!
-     Ah! Conheço, sim. È um bom sujeito. Um tanto bronco, mas bem intencionado. Foram feitas algumas concessões para os que viveram na época AC. Afinal eles não tinham como saber da Verdade. Mas não sai contando isto por ai. Pode dar uma confusão do diabo! Perdão! O “diabo” escapuliu!
-     Imagina! Conto não. Fica tranqüilo. Mas quer dizer que todos aqueles gregos estão por lá? Mesmo os Deuses?
-      Você está querendo saber demais.
-   Desculpa! Mas a ideia é fascinante. Fico imaginando como...
-      Pois pára com isto!  Imaginação demais faz mal.
-     É que quando eu era criança - eles - os deuses gregos, eram meus ídolos.
-      E não são mais?
-   Acho que não! Nestes últimos tempos meus ídolos andam sendo destruídos.
-     Os meus também.
-    Você tem ídolos?! Como é que pode?! Você é santo! Ou melhor, seu alter ego é: São Nicolau, não é?
-   Esta minha dupla personalidade permite. Como Papai Noel posso me dar ao luxo de algumas derrapagens. Ídolos estão cada vez mais raros. Veja só o Ronaldinho! Não está jogando nada. Eu mesmo estou sendo destruído por aí afora. Poucos acreditam. De certo modo têm razão. Fiz por isto. Ou melhor, não fiz. Nesta de dar brinquedos deixei de lado coisas mais importantes. Vai daí que estou me tornando um iconoclasta de mim mesmo.  É pirante, não é?
-     Se é! Mas eu ainda acredito em você. É um dos poucos que sobraram. Preciso acreditar para que Maria Clara não se decepcione tão cedo.
-     Sua neta menor, não é?
-     Ela mesmo.  Preciso que você exista para ela.
-     E para você, não?
-   Claro que sim. Mas seria esperar demais. Ando me contentado com pouco. Se tiver para ela já é de bom tamanho.
-     Ah! Além dos deuses gregos, ao longo da vida, quem eram os outros?
-      Muitos. E foram sendo destruídos um a um, ingressando numa categoria a qual você me apresentou quando eu tinha seis anos.
-      Eu?! Não me lembro. Do que se trata?
-      Um livro. No Natal de 1936. Max und Moritz. Eu adorava a história daqueles meninos terríveis. Você me deu no original alemão, o que foi uma grande sujeira. Acho que você quis agradar a Fräulein.  
-    Lembro-me agora! Foi para agradar a Fräulein, sim. Você atormentava a vida dela. Era um pequeno demônio. Ai,ai,ai! Escapuliu de novo! Mas o que este livro tem a ver com este negócio de categoria?
-  Uma frase da qual nunca me esqueci. Um dos personagens descrevia os meninos assim: “por fora bela viola; por dentro pão bolorento”. Os meus ídolos andam se transformando em pães bolorentos.
-     Que horror! Mas é verdade! Vai daí quem sabe a gente consegue reverter isso. O por fora não tem muita importância; mas o por dentro pode virar pão doce. Preciso começar a trabalhar neste sentido.
-      Deus te ouça!
-      É verdade! Tá na hora Dele fazer isto!
2006




terça-feira, dezembro 24, 2013

ATÉ QUE NO NATAL...

Um desconserto na coluna me fez aportar na ABBR.  Aparte o fato de que colunas não deveriam se desconcertar nesta época impedindo toda e qualquer providência relativa ao Natal, este me proporcionou momentos bem divertidos. Estava eu sentada aguardando a chamada para consulta quando entra na sala uma senhora que, creio, regulava comigo em idade, acompanhada de outra mais jovem. Senta-se ela a meu lado no momento em que meu celular provoca um terremoto dentro da bolsa. Aqui é necessário esclarecer que nunca deixo a campainha ligada. Dela tenho um santo horror.

Era minha filha indignada pela minha, segundo ela, desconsideração de não ter pedido que “me levasse ao médico”. Outro esclarecimento: depois de certa idade somos “levados”. Procuro falar baixo enquanto sinto o olhar da senhora insistente sobre mim.  Desligo e de imediato escuto a voz que denota espanto:

-          Como é que a senhora consegue se livrar “deles”?
-          Deles quem?
-          Filhos. Essa praga!

A outra senhora, que sei agora filha, indignada corta:

-          Mamãe! Por favor!

E ela nem se toca:

-          Não me deixam fazer nada. Absolutamente nada. E são cinco! Tem sempre um escondido atrás da porta. Um terror. A senhora nem imagina!

A filha dirige-se a mim:

-          A senhora desculpe. “Ela” anda irritada com muita dor nas costas.
-          Irritada é sua avó! E eu não sou “ela”. Estou aqui presente de carne e osso!

Procuro melhorar o clima comungando com a irritação causada pela dor nas costas.

-           Imagina! Dor é mesmo muito irritante.  Não se preocupe!
-        A senhora sabe muito bem que não é isto! Ouvi sua conversa com sua filha. A senhora fugiu dela! Eu bem que ouvi. (voltando-se para a filha) Você não ouviu? Ela fugiu da filha!  Era o que eu deveria ter feito!
-          Mamãe!!!
-       Mamãe coisa nenhuma. Vai ver que ela vai até ao cinema sozinha. (voltando-se para mim) A senhora vai ao cinema sozinha?
-          As vezes, quando...
-      Viu! Viu só! (para  mim) Onde é mais que a senhora vai sozinha?
-         Ora, eu...
-         Vai ver vai ao supermercado. Ao cabeleireiro também?
-         Eu...
-         Agora me diz, como é que a senhora faz para fugir?
-         Eu moro sozinha!

Um silêncio se estabelece e o olhar dela é de puro espanto enquanto a filha agora me parece bem irritada.

-       E mais esta! E nunca deixou o gás ligado?

A filha atalha belicosa:

-     Morar sozinha nesta idade é um perigo! Seus filhos não deviam deixar.

Agora a irritação passa para mim:

-          Não me parece que eles tenham que “deixar”. Alem disto...
-          (interrompendo) Tá vendo! Tá vendo só! Tá se metendo até com a senhora. Doida! É doida varrida!

A intervenção da senhora consegue impedir minha agressividade e numa voz que procuro doce tento melhorar as coisas:

-          Ela se preocupa com a senhora. É natural!
-          Se a senhora acha natural porque é que reclamou com “sua filha”?
-          Na verdade ela estava só zangada por eu ter vindo de táxi. E não de eu ter vindo sozinha. Recentemente vendi o carro...

E ela dá um berro:

-          Carro!!! A senhora dirigia um carro!

Isto foi demais para ela que se fecha num silencio trágico. Trato de ficar em silêncio também. Sabe-se lá em que isto vai dar se continuar. De repente ela volta falar. Não está se dirigindo nem a mim, nem à filha. O olhar está distante numa reflexão que adoça sua fisionomia. O nascer de um sorriso traz a beleza camuflando as rugas:

-          Filhos... até que no Natal...

E ela dá umas pancadinhas carinhosas na mão da filha que olha pra ela com carinho. E eu penso: devia ter vindo com minha filha!  

2007

segunda-feira, dezembro 23, 2013

EXPECTATIVA DE VIDA

Se atendidas as instruções de uma grande parte dos e-mails que me enviam, quem sabe, estaria eu rica, com uma saúde de dar inveja a um cavalo inglês e teria todos os meus desejos e anseios atendidos. E tudo isto com dia e hora e até minutos marcados para acontecer. Infelizmente não encontro em mim a disposição para reenviar estes e-mails a sete, nove ou dez pessoas (inclusive para aquela que me enviou) dentro de dez, vinte ou trinta minutos contados a partir do recebimento. O reenvio, segundo me informam, é condição “sine qua non para que as coisas ocorram.

Mas se estas correntes, orações e mantras não me tentam, são para mim irresistíveis os testes que vêem pela mesma via. Estes me pedem que escolha entre flores, cores, animais ou entre perguntas de quase impossível resposta porque nunca encontro, no elenco das que são fornecidas, uma na qual eu me encaixe. A finalidade é esclarecer quem sou eu. Talvez eu me empenhe em respondê-los para descobrir o que até hoje não sei com muita clareza. Devidamente respondidos constato que sou mutante: ora dócil e meiga como uma pombinha sem fel, ora agressiva, ora indecisa, ora positiva e lutadora e por ai vai. Não me reconheço nestas descrições, mas vai ver aquela que diz não ter eu consciência de quem sou, é mais a correta.

E foi assim que me empenhei a fundo no Teste de Expectativa de Vida, enviado por um amigo. Não me dei conta de que não era de vida que se tratava e sim de morte! E, estarrecida fiquei sabendo que deveria ter morrido há onze anos! Refiz tudo, alarmada. Não teve jeito, a época prevista era mesmo a dos sessenta e oito anos. Vai ver isto aconteceu e eu estou vivendo naquele mundo paralelo de que já me falaram e eu não quis acreditar existisse. De qualquer modo, viva ou morta, me peguei matutando sobre o assunto que vejo sob dois ângulos: o prático e o imponderável.

Como se minha morte fosse dois eventos diferentes: um sobre o qual mil providências devem ser tomadas antes que ocorra e que é objeto de planejamento; outro sobre o qual não penso, nem planejo: a horinha dela mesmo. O primeiro tem até uma pasta organizadíssima. O mais estranho é que estas providências eu as tomo, já lá vão anos, sem qualquer emoção perceptível. São apenas providências como controlar as despesas, fazer uma lista de coisas que necessitam reparo em casa (interminável); anotar livros e discos que desejo comprar; e sei eu lá mais o que. Sobre a outra, a imponderável, não me ocupo, ainda que tenha a certeza de que ocorrerá. Tendo esta certeza só poderia me preocupar com o “quando” e este, tenha-se a idade que se tenha, é desconhecido. E o que é desconhecido sem a menor possibilidade de se conhecer não é de meu especial interesse. Estou mais interessada, bem mais interessada, em eventos de vida.

Por esta razão teria deixado de lado esta expectativa que eu não cumpri se não houvesse encontrado com uma grande amiga que há muito anos não via. Ela, muito mais moça do que eu, perguntou: como é este negócio de morte na idade que você está? Controlei-me para não informar que talvez eu já houvesse morrido (e no caso ela também) e resolvi partir do princípio de que estávamos vivas, as duas. Igualmente vivas e igualmente fadadas a morrer não havendo, naquele momento, o menor indício de quem iria primeiro. Resolvi não dizer isto também. Seria de mau gosto, não é? E daí, embatuquei. Falar o quê? Que não penso nisto e que, portanto, não sei como é esta coisa de morte na minha idade?

Algum estatístico que me leia vai ficar alarmado e me provará que a probabilidade de que minha morte ocorra antes da dela é muito grande. Mas desde quando probabilidade entra nesta história?  Não estou falando de estudos destinados à área de saúde, de atuária e de outras em que idade é um must. Estes tratam do coletivo e não do individual. Estou falando é da vida de cada um. Do dia-a-dia, do inesperado, do improvável, da decisão que se toma de virar à esquerda ao invés de para direita e com isto ver sua vida toda alterada para o bom ou para o mau.

Teve uma época em que espantada com a ocorrência do imprevisto diário passei a anotar ao acordar tudo que havia planejado para aquele dia e constatei que jamais a programação se passava como o previsto. Um espanto! As grandes mudanças de minha vida não foram planejadas. Surgiram sempre de imprevistos.

Minha morte, certamente é uma grande e desconhecida mudança que – creio - serei a única a não perceber, mas certamente não é um imprevisto. O único imprevisto que poderá existir é de que venha em momento e condições bem diversas daquelas que qualquer exercício de futurologia possa deduzir. Algo me diz que a palavra expectativa não se aplica à morte. Como é que eu posso ter uma expectativa sobre o que certamente ocorrerá? A única expectativa possível é a certeza da ocorrência. 

Mas vai ver não sei exatamente o conceito desta palavra. Vou ao dicionário ver se é possível e o absurdo se evidencia pela palavra “supostos” nele incluido: esperança fundada em supostos direitos, probabilidades ou promessas. Com minhas desculpas ao autor do teste, mas minhas esperanças fundadas em direitos, probabilidades ou promessas são todas relativas à vida. E estamos conversados. Vai ver por isto existiram os onze anos de quebra. Minha expectativa é que venham alguns mais. 
2008




domingo, dezembro 22, 2013

JANELA PARA NATUREZA HUMANA


O título não é meu. Apodero-me dele sem o menor escrúpulo. Afinal minha relação com Steven Pinker já vem de longe, lá para os idos dos anos 80 quando maravilhada li seu Language Learnability and Language Development. Sempre tive encanto pelas palavras vendo nelas alguma coisa de mágico. E eis que agora meu amigo Pinker no magistral Do Que É Feito o Pensamento me esclarece: são elas uma janela para a natureza humana.

E me vem à memória palavras ditas por alguém que nem conheço e que, de certa forma, tiveram um enorme impacto sobre mim mudando, e muito, minha forma de ver as coisas. Corria o ano de 1973 e meu irmão – Joaquim Assis - embrenhou-se no sertão de Pernambuco a procura de uma comunidade de pequenos agricultores sobre a qual pudesse fazer um documentário. Encontrou-a, quase que por acaso, nos arredores de Salgadinho, uma pequena cidade do agreste. Do convívio de muitos dias com estes agricultores surgiu uma bela obra que veio a ser premiada no então Festival JB: o filme O Xente, Pois Não.

Aqui um parêntese que nada tem a ver com as palavras de que falo: documentário, para mim, é um dos gêneros mais difíceis da arte cinematográfica. Raros aqueles que realmente “documentam” o fato como ele é. O que mais se vê é um ponto de vista do diretor sobre o fato que nem sempre traduz o que realmente existe. Impossível fazer-se um roteiro a priori porque o fato, o assunto, o objeto “falam” por si no momento em que se filma e às vezes de maneira inesperada e muito diversa daquela que se imaginou.

Mas voltando a Salgadinho: a comunidade, formada de pequenos proprietários rurais havia se formado espontaneamente, sem interferência de qualquer agente externo. Eram pobres, muito pobres, e perceberam que juntos teriam alguma chance. Organizaram-se, lá a seu modo, num sistema hierárquico democrático que fez brotar as lideranças administrativa, operacional e espiritual exercidas no dia-a-dia com extraordinária competência. Foram dias e dias de filmagem gerando um rico material. As limitações de tempo impediram que fosse todo aproveitado e meu irmão desolado teve que eliminar momentos de precioso significado. É um deles de que Pinker me fala agora.

Caia a tarde e o sol começa a baixar no horizonte. Sol vermelho do agreste, enorme, queimando, sublinhando no horizonte o “pé de pau”, uma das poucas árvores frondosas que por ali existia e cuja imagem gerou o titulo do documentário surgido na boca de uma das moradoras quando exclama: O xente, pois não! Quando vejo a lindeza deste pé de pau eu se alegro muito. Meu irmão encantou-se com a imagem que daquela paisagem poderia resultar e pediu ao líder administrativo, que sempre o acompanhava nas filmagens, para atrelar o único cavalo ao único arado para fazer uma tomada contra o sol que caia. O rosto do sertanejo revelou espanto e ele pergunta: e pru quê? Meu irmão explica: vai ficar bonito. Indignado o sertanejo responde: bonito pro’cê! Pra eu é feio, muito feio, botá um cavalo cansado da lida do dia puxando o arado sem serventia.

E desmoronou-se a estética frente à ética: a palavra “bonito” inverteu o sentido tornando-se feia, muito feia. De uma feiúra desumana. Aprendi muito com isto. Não se pode usar palavras impunemente. É surpreendente a força que têm. O que dizemos descuidados pode, e muitas vezes isto ocorre, ferir muito alguém. Quantas vezes desatentos atrelamos cavalos cansados a um arado? Muitas, certamente. No mínimo usamos palavras condescendentes quando descrevemos uma falta que cometemos utilizando outras acusadoras para mesma falta cometida por outro. Bertram Russel demonstrou isto numa conjugação que poderia ser cômica se não fosse muito, mas muito séria: “eu sou firme; você é obstinado; ele é uma mula”. Quem nunca escorregou nesta casca de banana?
2008


sábado, dezembro 21, 2013

VERÃO DE 1945 TORNA-SE O INVERNO DE 2006

Em uma de minhas crônicas a figura da velha tonta era – confesso – uma licença poética. Pensava eu! Mas diante do acontecido há poucas horas, vejo que não é. Parada à espera da abertura do sinal na Macedo Sobrinho com a rua Humaitá, ao lado de um jovem rapaz negro que fazia o mesmo, estava eu às voltas com a solução de um sério problema: ir primeiro à loja de ferragens e depois à padaria ou vice-versa. Podem imaginar vocês que isto não exigisse uma séria reflexão, mas ela – a reflexão - era, sim, necessária.

Na padaria eu teria que, feitas as compras, pedir que entregassem em casa e não havia ninguém para recebê-las, portanto eu deveria sair correndo antes que o eficiente entregador as trouxesse. E correr ladeira acima hoje em dia é uma impossibilidade. Tudo parecia recomendar deixar a padaria para o segundo lugar. Mas ocorre que na loja de ferragens dar-se-ia a mesma situação. È óbvio que eu poderia pedir a ambos que retardassem a entrega. Melhor seria fazer este pedido na loja de ferragens porque na padaria eu compraria congelados e.... o sinal abriu, fechou de novo e eu nem me apercebi, perdida que estava em meus pensamentos.

E eis que sinto a mão do jovem negro pousar em meu braço com delicadeza. Volto-me surpresa para ele:

-   A senhora está confusa, não está?

Sem me dar conta do que estava acontecendo respondo surpresa, ainda no tom de minha dúvida.

- Estou mesmo. Não sei se vou à padaria ou à loja de ferragens.

A voz mansa veio carinhosa junto com o apoderar-se firme de meu braço:

-  Não é melhor ir para casa? Eu levo a senhora...

Só então me dei conta do que estava sucedendo. Minha gargalhada desconcertou o rapaz que desfeito o mal entendido tentou desculpar-se, envergonhado. Tratei logo de deixá-lo à vontade, descartando as desculpas.  

- Não fica assim. Você foi muito legal, juro. Espero que esteja ao meu lado quando e se de fato acontecer o que você pensou que estivesse acontecendo. Eu estou muito agradecida, acredite. E olha, aceito seu braço para atravessar a rua.

Do outro lado, nos despedimos e ele se foi para esquerda e eu para direita. Mandei para longe a torrente de pensamentos que de mim tomou conta. Não posso me arriscar a uma segunda vez no mesmo dia, pensei. Melhor deixar pra pensar em casa.

Guardadas as compras (primeiro as da padaria depois as da loja de ferragens) o telefone soa. Uma amiga, a quem relato o divertido incidente. Pasmei diante da reação. Ela ficou indignada: que desaforo! Pensar que você está gagá. Não houve jeito de convencê-la de que tudo levara a crer ao jovem que de fato eu estava completamente desorientada e que ele havia sido mais que gentil.

E se tivesse sido verdade o que ele intuíra? Não seria incrível o preocupar-se em devolver à segurança da casa aquela confusa senhora? Mas não teve jeito. Ela estava não se rendia aos meus argumentos. E às tantas declara: você está ótima! Esta afirmativa entusiasmada evidenciou que isto era um feito memorável e que eu estava, contra todas as probabilidades, “ótima”. Mas o mais absurdo veio depois: você fica achando graça neste rapaz détraqué! Sem se dar conta, com esta palavra, ela estava denunciando a idade. Ninguém mais diz isto!. Détraqué?! Aquele simpático rapaz?

Desisti de convencê-la e voltei às minhas elucubrações: eu havia perdido uma oportunidade única que provavelmente é oferecida a poucas pessoas. E se eu tivesse assumido o papel e fingisse que realmente estava totalmente desorientada? Poderia viver um episódio que se um dia de fato ocorrer, dele não vou ter consciência. Como é que aquele rapaz conseguiria descobrir minha casa, minha família? Como é que reagiriam as pessoas a quem pedisse ajuda ou informações? Eu havia mencionado a padaria. Será que ele iria até lá me levando a reboque, buscando uma identificação? E como é que se comportaria aquela simpática moça que sempre me atende? Ela sabe meu endereço. Viria com ele até aqui? O dois me amparando ladeira acima? Não tendo ninguém em casa o que faria o novo porteiro que não é mais o Zé de tantos anos e mal que me conhece? Como é que durante todo este processo se relacionariam comigo?

Seria como o ensaio geral de um futuro possível. E eu que perdi isto! Esta encenação seria, é claro, uma maldade e do maior mal caratismo com aquelas boas almas que, tenho certeza me ajudariam. Teria sido mal fazer isto. Mas para mim poderia ser uma experiência incrível e tenho certeza vivida por poucos. Volto a telefonar para a amiga para contar o que estava maquinando e eis que ouço dela numa voz indignada: “sabe de uma coisa? Você mereceu o desaforo. Está mesmo gagá !”
2006


sexta-feira, dezembro 20, 2013

IDEIAS AFINS

Periodicamente me encontro refém de uma atividade que beira a esquizofrenia. Por vezes se passam anos sem que o mal se manifeste. Mas os sintomas iniciaram faz tempo, muito tempo. O primeiro deles é o medo de ser soterrada por uma avalanche de livros que desabarão das estantes repletas, muitos dos quais nunca mais serão lidos ou consultados. Inicia-se então uma triagem para separar aqueles que serão defenestrados para um sebo, liberando o espaço de que tanto careço. É um processo muito doloroso. Muito mesmo.

Semana passada o mal se manifestou quando literalmente caíram vários volumes da Larousse XXéme Siécle sobre minha cabeça. Vai daí que iniciei o processo mesmo sabendo que separadas as pilhas e ao ver os livros desoladamente pelo chão, todos voltarão a seus lugares adiando a venda ao sebo para um futuro distante e incerto. Eu falei que é um procedimento esquizofrênico, não falei?

O ritual consiste em examinar volume por volume, numa viagem ao passado, rememorando todas as circunstâncias da aquisição original: o prazer ou não que me deu a leitura, a história contada, o “achado” que foi encontrá-lo inesperadamente num sebo em que entrei por acaso, e que mais sei eu. É claro que isto significa dias de trabalho plenos de um enorme sofrimento que ocorre no momento em que todas as qualificações exigem que o volume seja movido para a pilha “sebo”.

Desta vez ocorreu um fato inusitado: de repente tenho nas mãos um livrinho assaz estranho. A sensação é de nunca ter tido dele conhecimento. Nada, mas nada mesmo me vinha à memória e era um mistério que sua existência não tivesse sido notada nas triagens precedentes. Bem velho, muito manuseado e com o estranho título de Dicionário de Idéias Afins! Imediatamente interrompo a triagem e me instalo numa poltrona, ao som de Satie, disposta a mergulhar num processo de associação de ideias, orientado e organizado. Bem que careço disto. Pulo sempre de uma ideia para outra sem o menor método e, quem sabe, a esta altura da vida, vou aprender a organizar o pensamento dentro de alguma lógica.

Tomo conhecimento do autor pela primeira vez: Hermínio Sargentim. O primeiro capítulo se anuncia instigante: Para que Serve o Dicionário de Idéias Afins? Segundo o autor é extremamente útil antes que se comece a escrever um texto, durante o processo da escrita e depois de ter escrito o rascunho. Isto porque se torna possível, através da pesquisa sobre o assunto sobre o qual se quer escrever, encontrar palavras referentes que melhor ou mais ricamente definiriam a ideia. Fornece um exemplo: se quer dizer que Maria é linda. A consulta à palavra beleza permite usar outras qualificações: Maria é elegante, graciosa, atraente, delicada. Ou ainda: Maria é um encanto, uma ninfa, uma deusa. E verbos: Maria encanta, fascina, seduz. Confesso que não me entusiasmei e achei um tanto pobre o resultado.

De qualquer modo, corro a procura da relação dos afins de “velhice”, estado no qual me encontro e sobre o qual volta e meia escrevo. Vai daí, quem sabe, me abre uma porta. E deu-se a tragédia: o senhor Hermínio tem um sério problema com esta ideia! Eis alguns “afins” de velhice: senilidade, o peso dos anos, inverno da vida, crepúsculo da vida, menopausa, envelhecer (um tanto óbvio, não?), estar com pé na cova, caducar, ir em decadência render-se aos anos, estar um caco, estar acabado, octogenário, aposentado, alquebrado, senil, caduco, abatido e, estranhamente, patriarcal. Ou o senhor Hermínio era muito jovem quando escreveu o opúsculo ou era um velho triste. Mas me parece que seria jovem mesmo.

Esta associação das palavras escolhidas como afins para velhice é comum nos jovens que a encaram como alguma coisa que nunca vai acontecer. Nunca entendi este estranho preconceito. Não que entenda ou aceite os demais. Longe disto acho qualquer tipo de preconceito uma imbecilidade. Mas a maioria têm pé numa lógica canhestra, mas ainda assim lógica. Por exemplo: um branco que tenha o absurdo preconceito contra negros não tem a menor possibilidade de se tornar um. E por ai vai em relação aos demais preconceitos. No caso de velhice é diferente: todos ficarão velhos a menos que morram antes que não me parece um bom negócio.

Mas voltando ao opúsculo: nele as palavras são apresentadas aos pares. Uma sempre com uma idéia contrária a outra. No caso de velhice a ideia contrária é “infância”. À parte do adjetivo “imberbe” que me parece um tanto fora do lugar e “desmamado” que jamais me ocorreria aplicar descritivamente a uma criança, os demais são todos laudatórios e agradáveis. Ou seja, velhice é uma droga e infância um paraíso. O autor afirma que o “Dicionário é tão útil que alguns autores o transformam em seu livro de cabeceira e na convivência com as palavras, o leitor ampliará seu universo vocabular e, certamente, adquirirá uma comunicação mais precisa”. Diz ainda que o Dicionário é um amigo do processo da escrita.

Peço desculpas ao Senhor Hermínio, mas jamais vou considerar meu amigo este seu livro. Minha cabeça mesmo errática é bem mais amiga. E pela primeira vez sem sofrimento vou colocar um livro na pilha do sebo. Nesta velhice em que me encontro adoro “primeiras vezes”. Pra que tanta amargura, Hermínio? E, para mostrar boa vontade utilizo sua obra para fornecer aos que me leem a possibilidade de substituir “amargura” por uma ideia afim sugerida pelo autor, tornando o texto mais preciso como por ele preconizado: azedume, impressão desagradável, jiló, repugnância, ânsia, fel, náusea, acrimônia, losna e enjoo. Quanto a mim vou continuar a associar minha velhice a idéias afins bem mais agradáveis e, como é de meu feitio, nada lógicas. É bem mais divertido, acreditem.

2010