sexta-feira, novembro 15, 2013

ADEUS ADOLESCÊNCIA

Tinha apenas treze anos, aparentava quinze e dizia ter dezoito. Naquele ano de 1943 a guerra se fazia presente em Fortaleza para onde havia a família se transferido por um trabalho do Pai. O cinema americano ainda não havia entrado com toda sua força naquelas paragens. Assim, eram as atrizes francesas os seus modelos. Delas imitava os maneirismos e, dentro do possível e das limitações impostas pela Mãe, a maneira de vestir.

Hoje, passados tantos anos, ainda tem na boca o gosto do sorvete que tomava na Praça do Ferreira, na saída do colégio, naquele dia glorioso, enquanto esperava o motorista do pai que iria levá-la para casa. Era de caju! Foi ai que Ele entrou. Lindo de morrer aparentava uns vinte anos. Hoje, na lembrança, foi conferir na internet. O Google informa: tinha vinte anos, sim. Naquele dia Ele entrou e olhou para ela, olhou mesmo. Mais que isto, e maravilhosamente, falou: você não é daqui, é?  Mesmo com o coração tendo parado de bater ela conseguiu responder com a voz mais sedutora que pode encontrar: sou do Rio. Ele sorriu: eu também!  

E foi assim. Os céus conspiraram para que tudo desse certo e o motorista atrasou. Deu tempo para saber que ele era tenente aviador e que ali estava, em treinamento, esperando o embarque para o Rio. De lá seguiria para o Panamá onde completaria o treinamento. Depois seria a guerra! O carro chegou e ela ofereceu uma carona para uma república onde morava, na Praia de Iracema. Ela morava mais adiante, numa chácara, a caminho de Mucuripe. Marcaram praia para o dia seguinte, um sábado. Dentro de uma semana ele iria embora. Não importava. Uma semana como aquela seria uma eternidade. A semana teve apenas três dias: duas praias e um sorvete. Não, ela informou, não dava pra sair de noite.  Ele sorriu: você é tão criança! Ela nem se importou com o comentário. Criança ou não, ele disse que iria escrever. Imagina! Uma carta! Uma não! Muitas. Estas muitas se tornaram apenas três: duas do Rio e uma do Panamá. Depois nada.

No final do ano voltaram todos para Rio. Pelos jornais e pelo rádio ela da vivia o romance tendo agora como cenário a Itália onde o Senta a Pua, já estava em ação. Esperava a cada notícia ouvir o nome dele, heroico, abatendo aviões alemães. A família, sobretudo o Pai, acompanhava e respeitava o romance de maneira muda, mas perceptível. Não falavam, mas sorriam. Num dia glorioso soube pelos jornais que ele pertencia a Esquadrilha Vermelha, sediada em Tarquínia na Itália.  Procurou no mapa. Procurou na enciclopédia. Ficava no Lácio. Bem informada pode situá-lo melhor.

Nos cinemas, naquela época, os filmes eram precedidos por jornais que divulgavam notícias da guerra. Num destes acompanhou comovida as operações do 1º. Grupo de Aviação de Caça a que ele pertencia. Pensou tê-lo visto, de longe. Gastou toda a mesada vendo o filme três vezes. E chegou o ano de 1945, em que completaria os quinze anos agora de fato parecendo os dezoito que afirmava ter. Este ano anunciava o fim da guerra. Ele havia dito na terceira carta: quando voltar procuro você e vou achar, onde estiver. Fazia-se próxima esta procura, fazia-se próximo o encontro. Vivia pra isto. Imaginava o que iria ocorrer em todos os detalhes. Quem sabe ele avisaria antes e ela poderia ver a aterrissagem gloriosa no comando de um Thunderbolt, aquele mesmo em que heroicamente havia lutado. Ele poria o pé em terra e correria para ela tomando-a nos braços.

Naquela manhã de janeiro, acordou feliz. Os aliados haviam avançado mais ainda. Estava próximo, muito próximo, o fim da separação. Sentia-se tão radiosa que chegaram a comentar no colégio: parece que viu passarinho verde! A noite postou-se ao lado do rádio, junto ao Pai, para ouvir as notícias da BBC. E sobre ela desabou aquela que em momento algum havia sido imaginada possível: ele havia sido abatido numa missão. Estava morto. O coração parou mesmo. De repente sentiu frio. O que era estranho naquele calor escaldante do verão.

Correu para o quarto. Meteu-se na cama, cobriu a cabeça com os lençóis.  Irmão entrou: vem jantar. Comer? Como? A Mãe veio atrás, insistindo: vem. O Pai comandou a saída de todos, olhando sério para ela: não precisa jantar. Não precisa nada! Se quiser conversar me procura. Ela levantou os olhos secos e perguntou: por que, Papai? Ele respondeu com tristeza, muita tristeza: não tem resposta pra isto, meu bem. Mas tem sua vida que continua. Agora não dá pra você pensar assim. Mas vai acontecer. Garanto. Ela não entendeu nada. Apenas percebeu que ele sabia, como sempre, o que ela estava sentindo.

Não o procurou para conversar como sempre fazia. Pra que? Pois se ele havia dito “não tem resposta”. Foi a primeira vez que a resposta não veio, amparando confortando.  Até aquele dia ele sempre havia dado uma. E ela ficou ali, sem chorar, sentindo que a vida havia mudado. Em quê? Isto ela não sabia, não. Só iria saber muito mais tarde quando a lembrança voltasse nítida, clara, como cenas de um filme antigo do qual se gostou muito e se gostaria rever. E quando isto acontecesse, percebia agora, daquele filme não existiriam cópias.

2011

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