quinta-feira, novembro 14, 2013

DELÍCIAS BAIANAS

Não estou, como pode parecer, me referindo aos prazeres da mesa baiana, embora a palavra “delícia” os descreva com justiça. Delícia aqui se refere aos seis anos de moradia naquela bendita terra. Não foram seis anos ininterruptos. Quis a Força Aérea Brasileira por lá aportássemos duas vezes: por dois anos na primeira estadia e por quatro na segunda.

Meu primeiro contato com esta santa terra deu-se em Paulo Afonso. No que era uma aventura em 1953, meu marido e eu, decidimos ir de carro em demanda ao novo posto. De Natal a Salvador era um estirão daqueles. Em estradas não pavimentadas e mais das vezes desertas. Postos de gasolina e restaurantes eram raros no percurso. Transitando mesmo só caminhões e foi um deles que nos introduziu no tão gostoso modo de ser baiano.

Quase chegando a Paulo Afonso nossa possante caminhonete Renault Juvaquatre morreu. Assim de repente e sem aviso. Minutos depois aparece um caminhão e dele desce um negro com um dos mais belos sorrisos que já vi e do qual até hoje me recordo. Por obra e graça de Januário, assim chamava-se o salvador, fomos rebocados até a cidade onde ele nos indicou um mecânico para o reparo necessário.

Na boleia, até Paulo Afonso a conversa corria solta. E foi assim que recebemos o convite para um arrasta-pé que ocorreria naquela noite organizado por caminhoneiros. Além de tentador, o inusitado convite foi acrescido de argumento mais do que razoável para justificar nossa presença: “o amigo aqui vai ter que ceder a dama. Lá carece muito da presença delas. Mas tudo com respeito”. E foi assim que a dama (eu) bailou sem cessar. Nunca fui tão requisitada em minha vida. Januário, tomando-me nos braços numa distância que atestava o “tudo com respeito” declarou-me que eu era a mulher mais “perfumosa” do mundo acrescentando que se sua mulher tivesse este perfume ele enlouqueceria. O mínimo que poderia fazer, e fiz, foi agraciá-lo com o que restava do vidro de água de colônia Vetiver, quando nos levou ao hotel, findo o baile. Disse-nos que jamais nos esqueceria. Espero que isto tenha ocorrido porque daqui me lembro dele com encanto.

De novo na estrada fomos surpreendidos por encontrar meio ao deserto agreste um hotel faraônico em Caldas de Cipó. Soubemos que havia sido inaugurado um ano antes por Getúlio Vargas. Um espanto arquitetônico que nos recebeu com a maior gentileza apesar da poeira que cobria nossas roupas nada adequadas ao local. Foi uma benção o banho e o jantar que compensaram, e muito, o olhar de espanto dos demais hospede paramentados como era exigido pelo luxo e pompa do local. Dali até Salvador seriam cerca de 200 quilômetros o que naquela estrada tão precária era muito. Mas restaurados pelo luxo, resolvemos percorrê-los num só dia.

Chegamos a Salvador, mais precisamente à Ondina, onde se situava a casa a nós cedida pela Aeronáutica, à noite e exaustos. No dia seguinte meu marido deveria apresentar-se à Base e coube a mim ir à cidade para comprar uma bateria já que a de nossa caminhonete estava agonizante. Não tendo a mínima ideia de onde poderia encontrá-la sigo, bastante desorientada, pela orla e no Farol da Barra me deparo com um guarda de trânsito. Pergunto onde poderia comprar uma bateria. Outro sorriso baiano da maior simpatia me saúda. E como resposta veio uma extraordinária instrução: a dona vai por ali até chegar no Campo Grande e de lá pela a Avenida Sete de Setembro vai até onde tá um cruzeiro que tem uma escadinha. Sobe nela e grita assim: que é do Milton? Daí que o Milton vem e ”le" arranja a bateria na horinha mesmo.

Apesar do absurdo que me propunha havia pelo menos indicação de itinerário e por ai segui. Vai ver o Milton trabalhava em um comércio de baterias vizinho ao tal cruzeiro, com o qual me deparo enorme, plantado em cima de alguns degraus (a escadinha citada). Olho ao redor e nada vejo que se pareça com comercio de baterias. Alguns homens estavam sentados nos degraus. Sem deixar morrer o carro e recusando-me a bradar aos céus pelo Milton, pergunto certa de que seria tomada por maluca: vocês sabem onde posso encontrar o Milton? E o milagre se deu! Um dos homens sobe os degraus e grita: Milton! Tem freguês aqui. Alguns segundos depois surge outro sorriso baiano exibido por Milton, que emerge por trás do Cruzeiro. Um espanto: “o que é do Milton?” teria funcionado!

E mais um anjo negro vem a meu socorro resolvendo em minutos a compra da bateria, de quebra indicando a melhor baiana de acarajé da praça e ainda a cunhada – Cícera - para nos servir como cozinheira. Ela, filha de santo, nos alimentou maravilhosamente bem durante dois anos, levou-nos a conhecer as maravilhas do candomblé fazendo ainda um “trabalho” para que meu marido saísse ileso de qualquer acidente. E, acreditem ou não, pouco depois isto ocorreu quando o B-25 em que ele instruía um aluno espatifou-se na cabeceira da pista e ele saiu sem um arranhão!

Milton continuou a fazer parte de nossa vida nos anos que por lá aportei por que era também um faz-tudo. Por estas e outras escolhi aquela bela cidade para dar luz a meu filho mais moço, anos depois. Ainda hoje, quando as coisas não vão bem me fica a sensação que se eu estivesse na Bahia haveria um cruzeiro onde eu poderia subir e gritar: que é do Milton e tudo se resolveria! 

E, juro, no primeiro sorriso de meu filho baiano reconheci os de Milton, Januário e Cícera!

2012

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