Não estou, como pode parecer, me referindo
aos prazeres da mesa baiana, embora a palavra “delícia” os descreva com
justiça. Delícia aqui se refere aos seis anos de moradia naquela bendita terra.
Não foram seis anos ininterruptos. Quis a Força Aérea Brasileira por lá
aportássemos duas vezes: por dois anos na primeira estadia e por quatro na
segunda.
Meu primeiro contato com esta santa terra
deu-se em Paulo Afonso. No que era uma aventura em 1953, meu marido e eu,
decidimos ir de carro em demanda ao novo posto. De Natal a Salvador era um
estirão daqueles. Em estradas não pavimentadas e mais das vezes desertas.
Postos de gasolina e restaurantes eram raros no percurso. Transitando mesmo só
caminhões e foi um deles que nos introduziu no tão gostoso modo de ser baiano.
Quase chegando a Paulo Afonso nossa possante
caminhonete Renault Juvaquatre morreu. Assim de repente e sem aviso. Minutos
depois aparece um caminhão e dele desce um negro com um dos mais belos sorrisos
que já vi e do qual até hoje me recordo. Por obra e graça de Januário, assim
chamava-se o salvador, fomos rebocados até a cidade onde ele nos indicou um
mecânico para o reparo necessário.
Na boleia, até Paulo Afonso a conversa corria
solta. E foi assim que recebemos o convite para um arrasta-pé que ocorreria
naquela noite organizado por caminhoneiros. Além de tentador, o inusitado
convite foi acrescido de argumento mais do que razoável para justificar nossa
presença: “o amigo aqui vai ter que ceder
a dama. Lá carece muito da presença delas. Mas tudo com respeito”. E foi
assim que a dama (eu) bailou sem cessar. Nunca fui tão requisitada em minha
vida. Januário, tomando-me nos braços numa distância que atestava o “tudo com
respeito” declarou-me que eu era a mulher mais “perfumosa” do mundo
acrescentando que se sua mulher tivesse este perfume ele enlouqueceria. O
mínimo que poderia fazer, e fiz, foi agraciá-lo com o que restava do vidro de
água de colônia Vetiver, quando nos levou ao hotel, findo o baile. Disse-nos que
jamais nos esqueceria. Espero que isto tenha ocorrido porque daqui me lembro
dele com encanto.
De novo na estrada fomos surpreendidos por
encontrar meio ao deserto agreste um hotel faraônico em Caldas de Cipó.
Soubemos que havia sido inaugurado um ano antes por Getúlio Vargas. Um espanto
arquitetônico que nos recebeu com a maior gentileza apesar da poeira que cobria
nossas roupas nada adequadas ao local. Foi uma benção o banho e o jantar que
compensaram, e muito, o olhar de espanto dos demais hospede paramentados como
era exigido pelo luxo e pompa do local. Dali até Salvador seriam cerca de 200
quilômetros o que naquela estrada tão precária era muito. Mas restaurados pelo
luxo, resolvemos percorrê-los num só dia.
Chegamos a Salvador, mais precisamente à
Ondina, onde se situava a casa a nós cedida pela Aeronáutica, à noite e
exaustos. No dia seguinte meu marido deveria apresentar-se à Base e coube a mim
ir à cidade para comprar uma bateria já que a de nossa caminhonete estava
agonizante. Não tendo a mínima ideia de onde poderia encontrá-la sigo, bastante
desorientada, pela orla e no Farol da Barra me deparo com um guarda de
trânsito. Pergunto onde poderia comprar uma bateria. Outro sorriso baiano da
maior simpatia me saúda. E como resposta veio uma extraordinária instrução: a dona vai por ali até chegar no Campo
Grande e de lá pela a Avenida Sete de Setembro vai até onde tá um cruzeiro que
tem uma escadinha. Sobe nela e grita assim: que é do Milton? Daí que o Milton
vem e ”le" arranja a bateria na horinha mesmo.
Apesar do absurdo que me propunha havia pelo menos indicação
de itinerário e por ai segui. Vai ver o Milton trabalhava em um comércio de
baterias vizinho ao tal cruzeiro, com o qual me deparo enorme, plantado em cima
de alguns degraus (a escadinha citada). Olho ao redor e nada vejo que se pareça
com comercio de baterias. Alguns homens estavam sentados nos degraus. Sem
deixar morrer o carro e recusando-me a bradar aos céus pelo Milton, pergunto
certa de que seria tomada por maluca: vocês
sabem onde posso encontrar o Milton? E o milagre se deu! Um dos homens sobe
os degraus e grita: Milton! Tem freguês
aqui. Alguns segundos depois surge outro sorriso baiano exibido por Milton,
que emerge por trás do Cruzeiro. Um espanto: “o que é do Milton?” teria
funcionado!
E mais um anjo negro vem a meu socorro
resolvendo em minutos a compra da bateria, de quebra indicando a melhor baiana
de acarajé da praça e ainda a cunhada – Cícera - para nos servir como
cozinheira. Ela, filha de santo, nos alimentou maravilhosamente bem durante
dois anos, levou-nos a conhecer as maravilhas do candomblé fazendo ainda um
“trabalho” para que meu marido saísse ileso de qualquer acidente. E, acreditem
ou não, pouco depois isto ocorreu quando o B-25 em que ele instruía um aluno
espatifou-se na cabeceira da pista e ele saiu sem um arranhão!
Milton continuou a fazer parte de nossa vida
nos anos que por lá aportei por que era também um faz-tudo. Por estas e outras
escolhi aquela bela cidade para dar luz a meu filho mais moço, anos depois. Ainda hoje, quando as coisas não vão bem me fica a sensação que se eu estivesse na Bahia haveria um cruzeiro onde eu poderia subir e gritar: que é do Milton e tudo se resolveria!
E,
juro, no primeiro sorriso de meu filho baiano reconheci os de Milton, Januário e Cícera!
2012
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