Não
vou entrar fundo no assunto que me é tão caro e ao qual dediquei uma vida de
trabalho e dedico ainda meus anseios. Quero falar apenas de um aspecto que
nunca vejo enfocado e que, a meu ver, é extremamente importante e, se resolvido
poderia, quem sabe alavancar a tão falada, discutida e nunca bem entendida
Reforma Agrária.
Apenas como curiosidade cito Tito Lívio (Historiador romano, 59 AC –
17DC):
“Foi então, pela primeira vez, promulgada a lei agrária que, desde aquela
época até hoje, nunca mais foi discutida sem provocar as mais violentas
comoções”.
Já naquela época! Mas se ainda hoje provoca emoções e comoções, estas não
vêem aliadas a um conhecimento pleno do que é Reforma Agrária. Nem mesmo nossa Presidente
sabe exatamente do que se trata confundindo a palavra Agrária com Agrícola, o
que é o mesmo que confundir Geografia com Geometria, só porque têm a mesma
raiz. Nos últimos dias, como elemento de uma prematura campanha eleitoral que
se inicia, lembrou-se ela desta importante reforma esquecida nos mais de dez
anos do Governo do PT. Salvo exceção feita a uma rápida menção às
desapropriações (estas, sim, medidas de Reforma Agrária), todas as demais que disse pretender tomar são relativas a desenvolvimento agrícola e não á
Reforma Agrária! A mistura dos alhos com
os bugalhos demonstrou seu desconhecimento do assunto.
É lamentável que dentre seus assessores, tão bem remunerados, não exista um
só que possa esclarecer a esta senhora o que é Reforma Agrária. Mas o mais
grave é que se ela não sabe, muito menos o sabe a sociedade civil presa a mesma
confusão entre Agrária e Agrícola.
Reforma
Agrária é, sobretudo, a redistribuição de renda de que nosso País tanto carece
e da qual tanto se fala em discursos vazios e palavrórios empolados. Reforma
Agrária promove esta redistribuição pela criação ampliação de mercado produtor
e, o que é mais importante, de um mercado consumidor que quase inexiste no
interior do País. Ou seja, promove o surgimento de uma classe média rural. É
espantoso que o País (e neste conceito compreendidos todos os poderes, em todos os
níveis, e sociedade civil) não se dê conta de que em todos os países em que se
empreendeu a Reforma Agrária foi conseqüente e quase imediato um enorme desenvolvimento.
Ganham todos.
Mas, infelizmente a sociedade urbana não se toca e é esta que
mal ou bem exige e consegue a realização de reformas. Quando a sociedade urbana não se toca, qualquer mudança
torna-se difícil. O meio rural não tem voz ou vez. Por sociedade urbana estou entendendo o conjunto de homens e
mulheres que habitam e sempre habitaram as cidades e para as quais o campo é
uma imagem bucólica de vaquinhas pastando. E, por “não se toca”, entendo o não
perceber que é imperioso que empunhe esta bandeira que poderá lhes garantir fartura,
segurança e prosperidade. Os homem e mulheres da cidade serão tão beneficiados
ou até mais que os homens e mulheres do campo. Mas não sabem disto. Mesmo
porque ninguém lhes diz com clareza.
Ninguém lhes conta, por exemplo, que não podemos resolver problemas nacionais
cuidando apenas de algumas estruturas do Estado, pois urge uma solução orgânica
para estes problemas. E Reforma Agrária mexe com todas as estruturas:
estruturas industrial, agropecuária, de transportes, de comunicações, bancária,
de transformação e distribuição de energia, comercial, de recursos humanos, de
segurança, de recursos naturais, de reservas indígenas e que mais sei eu.
Dessas considerações vem outro aspecto que quero enfocar: Reforma Agrária
é conjuntural e emergencial. Sua realização não pode e não deve ficar a cargo
de organismo de linha que cuide dos assuntos da estrutura normal. Está muito acima
disto e tem a ver com tudo e com todos. Como é que um ministério com a mesma
hierarquia dos outros poderá promover a Reforma Agrária? Que força, que
autoridade, que prioridade terá sobre outros ministérios que, obrigatoriamente
(e é o único jeito), devem seguir diretrizes, obedecer a planos e ações,
destinar verbas e que mais sei eu, para atingir o objetivo comum que é Reforma
Agrária?
Reforma Agrária é excepcional e como tal tem que ser tratada. Realizada esta
não mais é necessário um organismo que a empreenda. Caberá aos organismos da
estrutura normal do Estado levar adiante, no cotidiano, os planos que garantam
sua sobrevivência. Um organismo com poder político e, sobretudo, com uma
“hierarquia de idéias” deveria existir acima dos ministérios para orquestrar esta
tão necessária Reforma. E pasmem! Existiu! Era o IBRA, autarquia especial
ligada diretamente à Presidência de República. Um quase natimorto. Tudo que
pôde realizar foi o primeiro cadastro rural necessário para que se conhecesse a
então inteiramente desconhecida estrutura agrária brasileira. Impossível fazer
planos sem este conhecimento. O resultado deste cadastro foi uma enorme surpresa
(mais isto já é outra e longa historia).
Mas esta surpresa veio acompanhada de outra: a extinção do órgão e sua
transformação em INCRA (onde os ditos alhos juntaram-se aos bugalhos), uma simples autarquia subordinada ao Ministério
da Agricultura e posteriormente ao Ministério de Desenvolvimento Agrário! Daí pra cá força política é coisa que Reforma
Agrária não tem. Só como ilustração e para talvez espanto dos que,
estranhamente, nos tempos atuais ainda vêem o comunismo atrás de todas as
portas, cito abaixo o segundo artigo do Estatuto da Terra - tão desconhecido –
uma das mais belas Leis que já teve este País ainda que muito mutilada desde o
seu nascedouro e não adequada com propriedade às modificações ocorridas no meio
rural desde sua promulgação. O negrito das palavras “condicionada” e
“simultaneamente”, é meu. Incrível o que determina, não é? E, o que é mais
interessante: está em vigor!
Art. 2º É
assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada
pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1º A
propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece
o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como
de suas famílias;
b) mantém
níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura
a conservação dos recursos naturais;
d) observa
as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a
possuem e a cultivem.
Tive oportunidade de conhecer de perto vários
acampamentos de movimentos de sem terra (incluídos estes nos “todos” que têm direito
terra no artigo citado) que em vão esperam que esta Lei seja cumprida. E ai
outra desinformação: o MST não é o único movimento. Existe quase uma centena de
outros tão atuantes quanto. Infelizmente só este merece destaque da mídia não
por sua ação meritória mas por alguns excessos que comete. De fato eventualmente os comete como ocorre com
todos os grupos organizados que precisam chamar atenção para si quando todos
lhes viram o rosto. É claro e óbvio que excessos devem ser coibidos. Mas não a luta e as manifestações pelos direitos que tem. Não é assim com os estudantes? Com professores? Os sindicatos
de qualquer categoria? Mas a memória que tenho é dos movimentos de sem terra é outra,
não registrada pela mídia.
Outro dia, agradavelmente surpreendida, li no Facebook
uma bela carta de uma estudante de direito da PUC-RJ – Blanca Moraes – postada
pelo jurista Adriano Pilatti. Não conheço Blanca, nem Adriano Pilatti, mas se
esta crônica chegar até eles gostaria que soubessem o quanto me foi grato ler o
depoimento sobre um assentamento. E, sobretudo o quanto é importante que
depoimentos como este sejam feitos. O que ela relata mais que merece ser
divulgado. E muito mais ainda poderia ser dito: a plantação que se inicia no
dia seguinte à instalação de um acampamento e que têm a mesma prioridade das
barracas; as medidas de recuperação ambiental que tomam, até intuitivamente,
para garantir para filhos e netos alguma coisa que não vão ver em vida; a instalação
imediata da barraca-escola ou da matrícula das crianças na cidade mais perto;
as aulas de preservação da natureza e por ai vai. Neste espaço não caberiam as
ações mais que meritórias que desempenham. Fui privilegiada em conhecer de
perto esta realidade como observadora envergonhada pela
injustiça social neste País.
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