sexta-feira, novembro 01, 2013

DESASTRE FRANCO BRASILEIRO

O científico dele, no Andrews, havia sido cursado às minhas custas. Havíamos desenvolvido um sistema de cola que resistia a qualquer professor. Funcionava num único sentido: de mim para ele. O ser ótima aluna não era um grande mérito: meu pai me havia incutido uma fascinação por matemática conseguida através de jogos divertidíssimos, muito antes de ingressar em um colégio. Línguas não eram problema: o ginásio cursado no Bennett me valia uma proficiência em inglês muito acima da esperada. Francês era uma segunda língua, ensinada absurdamente por uma governanta alemã e apreendida pela imperiosa necessidade de decifrar o que os adultos diziam quando, em francês, comentavam assuntos impróprios para menores (foi assim que fiquei sabendo que uma prima distante havia se casado grávida!). Pai e mãe, leitores vorazes, haviam feito da leitura um dos meus maiores prazeres: portanto português e literatura, eu tirava de letra. Vai daí que, em decorrência, as outras matérias não eram grande problema.

Mas ele, o meu colega, era um desastre ambulante. Ia mal em todas. Hoje é alguém importante e volta e meia o vejo citado na mídia. Toda esta lembrança me vem pelo comentário gentil de uma leitora que como eu, foi do Andrews e lembra-se da Madame Jacobina, professora de francês. Em seu comentário ela fala de exames orais. Não existem mais, não é, Liana? Mas naquele tempo eram o terror daqueles que, como meu colega, eram péssimos alunos: impossível colar. Chamados por ordem alfabética, enfiávamos a mão num saco de pano e tirávamos um “ponto”. Sobre este, dois professores nos arguiam.

Num destes exames, este meu amigo ia enfrentar o francês nas pessoas da temida Madame Jacobina e o não menos temido Raul Penido. Sentei-me na primeira fila e disse a ele que olhasse para meus lábios. Sem som eu tentaria fornecer dicas sobre a resposta. Como quem ia para o cadafalso ele dirigiu-se desconsolado para o Raul Penido que atacou: Senhor...

Aqui dois parênteses: não posso informar o nome do personagem principal. Hoje é um homem muito importante e Raul Penido só se dirigia aos alunos como senhor e senhora, quem sabe para sublinhar a distância que dele deveríamos manter. Naquele dia, vai ver porque havia acordado de bem com a vida, Penido resolveu dar uma enorme colher de chá a nosso herói e continuou a frase: ... sabemos todos da total incapacidade apresentada pelo senhor nesta matéria. E como abomino a ideia de revê-lo em minha classe no próximo ano vou apenas apontar alguns objetos e o senhor me dirá, em francês, a palavra que os nomeia.

Inacreditável! Sopa no mel! Meu amigo fixa os olhos em mim. Penido abre a gaveta da mesa e aponta: isto! Caprichando na mímica, destacando as silabas, movimentei os lábios: TIROIR. Um sorriso de vitória ilumina o rosto de meu colega e confiante ele grita: GAVET! Um murmúrio de espanto é emitido por todos os alunos que assistiam ao exame. Penido arregala os olhos, incrédulo. Sacudo energicamente a cabeça e movimento de novo os lábios: TIROIR! Com uma expressão de alívio e de total compreensão o rapaz emite uma extraordinária e impronunciável palavra, que como um tiro ecoa na sala. GVET!

Penido, aos gritos, o expulsa da sala. Vou atrás. Eu já havia sido arguida. Meu nome começando com A me garantia as primeiras chamadas. No corredor o interpelo: Tá maluco? Que raio de palavras eram aquelas? Você não percebeu o que eu disse?! E ele, indignado: Maluca é você! Mandou tirar todos os A de Gaveta!! 

Dias depois a prova escrita. Tudo se processou como sempre: ele sentado atrás de mim e eu escrevendo com uma letra enorme, virada para o lado para propiciar uma visão ampla de minha prova (será que meu problema de coluna tem origem nisto?). Mas eis que vejo uma questão para a qual a resposta era Racine e Molière. Fiquei preocupada: vai que ele copia tudo igual! Seria um desastre. Murmuro torcendo-me mais na carteira, mumuro: Questão 5. É sobre Racine e Molière, mas pelo amor de Deus não põe igual a mim, tá? O murmúrio vem de volta: Deixa comigo!

E veio o temido dia da entrega das notas. Penido entra mais furioso que o habitual e aos gritos interpela: Senhor XXX, o senhor vai ter que explicar a mim, e a toda classe, o motivo de sua resposta à questão 5! Fiquei gelada. O desgraçado havia provavelmente copiado integralmente minha resposta. Mentalmente comecei a preparar minha defesa que seria, confesso, da maior deslealdade: não sei como foi que ele conseguiu copiar, Professor! Mas eis que Penido, vociferando, conclui: em mais de 30 anos de magistério, jamais um aluno respondeu o absurdo engendrado pelo senhor!!! E aos urros: RACINE E SUA ESPOSA!! Com efeito!!! O que significa isto? Estabeleceu-se um pandemônio no qual os gritos de Penido, o gargalhar dos alunos e a gagueira não elucidativa do réu impediam a solução do mistério: o que fazia Madame Racine na resposta?  Finda a aula o rapaz dirige-se a mim, furioso: a culpa é sua! Você falou Racine e mulher e disse para não escrever igual! E eu ainda melhorei muito botando esposa que é bem mais educado do que mulher!

2005

Nenhum comentário:

Postar um comentário