O
científico dele, no Andrews, havia sido cursado às minhas custas. Havíamos
desenvolvido um sistema de cola que resistia a qualquer professor. Funcionava
num único sentido: de mim para ele. O ser ótima aluna não era um grande mérito:
meu pai me havia incutido uma fascinação por matemática conseguida através de
jogos divertidíssimos, muito antes de ingressar em um colégio. Línguas não eram
problema: o ginásio cursado no Bennett me valia uma proficiência em inglês
muito acima da esperada. Francês era uma segunda língua, ensinada absurdamente
por uma governanta alemã e apreendida pela imperiosa necessidade de decifrar o
que os adultos diziam quando, em francês, comentavam assuntos impróprios para
menores (foi assim que fiquei sabendo que uma prima distante havia se casado
grávida!). Pai e mãe, leitores vorazes, haviam feito da leitura um dos meus
maiores prazeres: portanto português e literatura, eu tirava de letra. Vai daí
que, em decorrência, as outras matérias não eram grande problema.
Mas
ele, o meu colega, era um desastre ambulante. Ia mal em todas. Hoje é alguém
importante e volta e meia o vejo citado na mídia. Toda esta lembrança me vem
pelo comentário gentil de uma leitora que como eu, foi do Andrews e lembra-se
da Madame Jacobina, professora de francês. Em seu comentário ela fala de exames
orais. Não existem mais, não é, Liana? Mas naquele tempo eram o terror daqueles
que, como meu colega, eram péssimos alunos: impossível colar. Chamados por
ordem alfabética, enfiávamos a mão num saco de pano e tirávamos um “ponto”.
Sobre este, dois professores nos arguiam.
Num
destes exames, este meu amigo ia enfrentar o francês nas pessoas da temida
Madame Jacobina e o não menos temido Raul Penido. Sentei-me na primeira fila e
disse a ele que olhasse para meus lábios. Sem som eu tentaria fornecer dicas
sobre a resposta. Como quem ia para o cadafalso ele dirigiu-se desconsolado
para o Raul Penido que atacou: Senhor...
Aqui
dois parênteses: não posso informar o nome do personagem principal. Hoje é um
homem muito importante e Raul Penido só se dirigia aos alunos como senhor e
senhora, quem sabe para sublinhar a distância que dele deveríamos manter.
Naquele dia, vai ver porque havia acordado de bem com a vida, Penido resolveu
dar uma enorme colher de chá a nosso herói e continuou a frase: ... sabemos todos da total incapacidade
apresentada pelo senhor nesta matéria. E como abomino a ideia de revê-lo em
minha classe no próximo ano vou apenas apontar alguns objetos e o senhor me
dirá, em francês, a palavra que os nomeia.
Inacreditável!
Sopa no mel! Meu amigo fixa os olhos em mim. Penido abre a gaveta da mesa e
aponta: isto! Caprichando na mímica,
destacando as silabas, movimentei os lábios: TIROIR. Um sorriso de vitória
ilumina o rosto de meu colega e confiante ele grita: GAVET! Um murmúrio de espanto é emitido por todos os alunos que
assistiam ao exame. Penido arregala os olhos, incrédulo. Sacudo energicamente a
cabeça e movimento de novo os lábios: TIROIR! Com uma expressão de alívio e de
total compreensão o rapaz emite uma extraordinária e impronunciável palavra,
que como um tiro ecoa na sala. GVET!
Penido,
aos gritos, o expulsa da sala. Vou atrás. Eu já havia sido arguida. Meu nome
começando com A me garantia as primeiras chamadas. No corredor o interpelo: Tá maluco? Que raio de palavras eram
aquelas? Você não percebeu o que eu disse?! E ele, indignado: Maluca é você! Mandou tirar todos os A de
Gaveta!!
Dias
depois a prova escrita. Tudo se processou como sempre: ele sentado atrás de mim
e eu escrevendo com uma letra enorme, virada para o lado para propiciar uma
visão ampla de minha prova (será que meu problema de coluna tem origem nisto?).
Mas eis que vejo uma questão para a qual a resposta era Racine e Molière. Fiquei preocupada: vai que ele copia tudo igual!
Seria um desastre. Murmuro torcendo-me mais na carteira, mumuro: Questão 5. É sobre Racine e Molière, mas
pelo amor de Deus não põe igual a mim, tá? O murmúrio vem de volta: Deixa comigo!
E
veio o temido dia da entrega das notas. Penido entra mais furioso que o
habitual e aos gritos interpela: Senhor
XXX, o senhor vai ter que explicar a mim, e a toda classe, o motivo de sua
resposta à questão 5! Fiquei gelada. O desgraçado havia provavelmente
copiado integralmente minha resposta. Mentalmente comecei a preparar minha
defesa que seria, confesso, da maior deslealdade: não sei como foi que ele
conseguiu copiar, Professor! Mas eis que Penido, vociferando, conclui: em mais de 30 anos de magistério, jamais um
aluno respondeu o absurdo engendrado pelo senhor!!! E aos urros: RACINE E SUA
ESPOSA!! Com efeito!!! O que significa isto? Estabeleceu-se um pandemônio
no qual os gritos de Penido, o gargalhar dos alunos e a gagueira não
elucidativa do réu impediam a solução do mistério: o que fazia Madame Racine na
resposta? Finda a aula o rapaz dirige-se
a mim, furioso: a culpa é sua! Você falou
Racine e mulher e disse para não escrever igual! E eu ainda melhorei muito
botando esposa que é bem mais educado do que mulher!
2005
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