Aqueles que viveram
os anos de chumbo certamente se lembrarão do filósofo e jornalista André Gorz.
Seus livros eram proibidos por aqui e tê-los em casa constituía um grave
delito, passível de prisão. Naquela época, este teórico da Revolução ainda não
havia se voltado para ecologia, como fez anos mais tarde. Apenas dois livros
haviam sido lançados no Brasil antes do fatídico ano de 1968: “Estratégia operária e neocapitalismo” e
“O socialismo difícil”. A
partir daí pararam as edições, voltando a ser publicado somente em 1982.
Sempre imagino como será
o autor quando leio um livro. Não o aspecto físico dele. Mas ele mesmo, lá por
dentro. André Gorz se revelara para mim enfarruscado e seco. Qual minha
surpresa quando pelas mãos de minha filha, me chega um pequeno livro, o último
que escreveu, intitulado “Carta a D. História de um amor”. Não deve ser
o mesmo Gorz, pensei. Um romance! Ele? Minha filha esclarece: é ele mesmo, numa
carta dirigida a sua mulher Dorine, em 2006, já bem velho. E me alerta: dá uma
lida no primeiro parágrafo!
E foi aí que me vi às
voltas com um redemoinho de sensações entre as quais, vergonhosamente, percebi
em mim a inveja! Muita inveja. Não resisto à tentação de provocá-la também nos
homens e mulheres que me leem e vou transcrevê-lo: “Você está para fazer
oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e
cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito
anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no
fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o
meu é capaz de preencher”.
Devorei o livro em
pouco mais de duas horas e ele perdura há dias dentro de mim provocando
sensações por vezes dolorosas. Gorz levou cinqüenta e oito anos para dizer à Dorine a mais importante das verdades: o que ela significou em sua vida. E não
foi do significar sentimento que ele falou. Foi do significar da pessoa dela em
tudo que fez, em tudo que se tornou, em tudo que viveu. Em cada momento
importante e em outros sem qualquer importância ela tornou sua vida plena, apenas
sendo. Presença constante, calor de corpo, silêncio risonho, aceitação e
até discordância. Ele não teria sido ele
sem ela. Que bom que ele pôde dizer, que bom que ela pôde ouvir.
Mas raramente é
assim. Falamos a verdade, mas não A VERDADE. Não percebemos que é preciso
falar, falar e falar exaustivamente do que realmente existe entre dois próximos
para que se possa entender o seu significado. Não é o “discutir a relação”; Imagina!
Longe disto. É tão maior: é o ver de cada um para o outro, tornando-se si mesmo
só porque existe o outro. Confusa a frase; tão simples e claro seu significado.
Perdi meu pai e meu filho no espaço de um ano. Convívio de quarenta e quatro
anos com o pai e de vinte e um anos com o filho. E nunca disse a eles o quanto
sou e quem sou por causa deles. Por todos os momentos em que existentes me
fizeram ser. Falei, sim, e muito, a mim mesma, mas eles já haviam partido. Não
disse a eles.
Quando Rogério se foi
fiquei com seus livros. Ele lia muito e tinha o hábito de marcar com um lápis
passagens que chamavam sua atenção, fazendo pequenos comentários. Devorei estas
marcas. Era ele me falando, se mostrando. Algumas me surpreenderam. Não devia,
não é? Afinal era meu filho e eu o conhecia. Será? Não sei. Conversávamos muito
sobre tudo, menos sobre nós. Por que não nos dissemos esta verdade?
Privilegiados Gorz e
Dorine. Daí a inveja do que não fiz e não poderei mais fazer. Nenhum dos outros
livros de Gorz, tão completos, tão esclarecedores, ao contrário do que eu
pensava, conseguiu me mostrar o que neste mundo mais se carece. Este tão
pequeno, tão singelo, me mostrou: a paz serena e interna pela verdade do que
somos pelos outros que fazem a diferença. Se todos a tivessem dentro de si,
transbordaria, não é? Como transbordou para Gorz. E que extraordinário efeito
este transbordar poderia causar neste mundo tão maluco e violento!
O subtítulo “uma
história de amor” quem sabe assusta pelo que pode conter de piegas e “déjà
vu”. No entanto a verdade de Gorz é inédita. Não há frase, palavra ou significado
que não transpire esta verdade de que estou falando e que para mim é nova e
revela um caminho que nunca trilhei. Caminho que espero conhecer daqui por
diante na companhia de meus filhos e de meus amigos. Vão eles, creio, se
surpreender, no início desta caminhada, mas quem sabe, com o tempo, percebam
que a paisagem vale a pena. E então, quem sabe, a gente vai ser capaz de se
dizer o que importa, antes que este Deus esquisito e misterioso que é o Tempo
nos impeça.
Se esta crônica tiver
o poder de fazê-los ler o livro não leiam o posfácio antes de terminar a
leitura. Nele se desvenda o final desta história de grande e especial amor.
Está faltando uma bem aventurança entre as conhecidas: Bem aventurados os que juntos se falam a verdade um ao outro porque eles
serão especiais aos olhos dos homens.
2010
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