sábado, março 08, 2014

AGORA É PRA VALER

Minha gente,

agora acabou mesmo. O estoque da crônicas da Revista Alpino já foi todo publicado. Agradeço demais a vocês que tanto prestigiaram esta pretensa cronista. Os comentários, tão gostosos de ler, quase me convenceram de que eu de fato era uma. Segundo me esclareceu Ângela Delgado, que leu todas as crônicas, ela sim uma escritora de peso, o Blog ainda fica no ar por muito tempo. Como é improvável que muitos tenham participado da maratona que ela empreendeu, vocês poderão ainda ler algumas das que ficaram faltando. Não sei, até hoje, qual foi o critério que usei na ordenação da publicação mas hoje me dou conta de que as de que gosto mais foram publicada quando da criação do blog. Uma curiosidade me fica: o porque de tantos leitores na Russia, China, Malásia e Alemanha? Nos Estados Unidos dá pra entender|: Jorge e Ângela Pontual, amigos de fé de longa data, organizaram uma distribuição espantosa! Outro espanto: a quantidade de leitores da crônica Porque Eu Gosto de Abiu! Devo ser uma péssima crítica de mim mesma porque nela não fazia muita fé. Por outro lado, A Síndrome de Boris, que eu gosto pelo sentido que tem, foi muito pouco lida! Mais uma vez agradeço a todos vocês pela leitura. Tive um enorme ganho em conhecer pessoas fabulosas que não quero perder! Vai dai que continuaremos a nos falar, não é?  

quinta-feira, março 06, 2014

POR UM SERVIÇO LIMPO

Rio de Janeiro - Carnaval de 1952
José Simões, aos 30 anos, dá o laço na gravata borboleta, dentro de um impecável "summer". Com desgosto, alisa um imperceptível amassado no paletó e grita por Antonia. Risonha, ela escuta recriminações: o descuido em passar a roupa significa uma falha na imagem. Antonia promete: não vai mais acontecer. O tom rigoroso e autoritário dá lugar a uma queixa infantil, lamurienta: ela sempre diz isto. Antonia sorri maternal, contrariando seus 25 anos.

No bonde, um grupo de palhaços coloridos, canta e dança sobre os bancos. O Teatro Municipal surge iluminado. José salta e se dirige para lá, apressado. O porteiro fardado é a única pessoa na entrada, que José ultrapassa dirigindo-se à porta lateral, onde uma fila de homens, vestidos como ele, entra vagarosamente. José é garçom.

José conduz uma garrafa de champanhe e taças, com elegância, desviando-se de bêbados e mascarados. Na porta de um camarote, dois homens de terno, o deixam entrar depois de uma avaliação minuciosa. O sorriso nos lábios de José é quase imperceptível ao oferecer a taça ao homem sorridente que o observa. O "senhor presidente" tem um leve tom de intimidade e é retribuído com exclamações de reconhecimento. José é um garçom familiar ao Presidente Getúlio Vargas.

Nos braços de Antonia, José comenta sua atuação no baile. Nomes famosos desfilam entremeados com a descrição do cardápio servido na ceia. Antonia, sedutora, quer saber se ele flertou com alguma mascarada. José sinceramente se escandaliza. Seria inadmissível, não profissional. Antonia enrosca seu corpo no dele, num convite ao amor. José se rende e a possui com uma fúria que não se poderia supor num homem comedido como ele.

Rio de Janeiro - 1968
No Bec Fin o movimento é intenso. Em todas as mesas discute-se a situação do país. José apresenta as trutas com amêndoas ao senhor de cabelos grisalhos que preside a mesa e inicia sua abertura. Todos interrompem a conversa para acompanhar a operação: ninguém faz isto como José. O elogio não o perturba. Impassível e solene ele vai colocando os pratos servidos para cada um dos convivas. Curioso, o senhor quer saber a opinião de José sobre o golpe militar. Categórico, ele deixa transparecer o desgosto: militares não sabem se ter à mesa. Uma gargalhada de concordância saúda a declaração.

A mesa de almoço está sendo primorosamente posta por Antonia. Serviço terminado ela se dirige para o quarto. Na penumbra José dorme. Antonia o observa com carinho. Delicada ela o acorda: já são 5 horas da tarde. José senta-se na cama. Os dois trocam comentários sobre a noite anterior. José enumera nomes de fregueses a quem serviu. Orgulhoso, pede à Antonia que apanhe a carteira no bolso da calça. Exibe um maço de notas: Dr. Almeida Furtado retribuiu assim seu comentário sobre o governo da revolução. Um garçom sabe das coisas. Se souber aproveitar adquire mais cultura do que na faculdade. Antonia comenta que se as gorjetas continuarem assim dentro em breve poderão comprar a casa. A vizinha disse que agora tem um banco que ajuda. José, complacente, traduz. É o BNH. É uma mulher que chefia. Já foi uma vez no Gourmet. Ordenou um Chateau Margaux para acompanhar um badejo. Um horror. Antonia está impressionada.

José e Antonia comemoram a compra da casa. Ele se destaca dos convivas que, ruidosamente, tomam cerveja em mangas de camisa: de terno, é tratado com deferência. O sogro escuta admirado o relato que José lhe faz de notícias que não saem em jornal. Torturas, prisões, pessoas desaparecidas. José não conhece essas pessoas. São estudantes, comunistas, pessoas que nunca freqüentaram os lugares em que trabalha. Mesmo assim ele está chocado. Isto não parece certo, embora o governo esteja sendo apoiado por muitos de seus fregueses mais eminentes. José está confuso. O sogro acha que ele não deve se preocupar com isto. Afinal foi o governo que permitiu a compra da casa. Todo mundo está prosperando. José concorda que há muito dinheiro rodando na noite. Até dólar ele tem recebido. O sogro olha, maravilhado, a nota de 10 dolares que passa de mão em mão, admirada com respeito.

Rio de Janeiro - 1986
A imponência que caracterizava José já não é mais a mesma. O maitre do Gourmet, pouco a vontade, se dirige a ele: o movimento já não é o mesmo. Os fregueses antigos se foram. Os novos preferem o serviço feito com rapidez e não dão valor ao requinte com que José se habituou a servir. Ele merece uma casa que valorize o tradicional. José, atingido, procura manter a dignidade: serviço não há de faltar.

A romaria começa, à procura de emprego. José se choca com as poucas propostas: sem salário, só à base de gorjeta. Percebe que sua experiência e capacidade de nada valem. Pequenos detalhes revelam seu desânimo: a maneira de andar, de se vestir, o tom de voz. O orgulho, no entanto, ainda transparece no que fala, ao se candidatar a uma vaga.

Antonia apresenta os mesmos sinais de envelhecimento que marcam José. Mais gorda, olheiras fundas, conserva, no entanto o sorriso e o bom humor que complementam o carinho com que trata José, chegando em casa, cansado. Ela se apressa nos últimos cuidados com a casa antes de sair. Está atrasada. Até Ipanema é um estirão e D. Mercedes cria o maior caso quando ela chega depois da sete para a faxina. É preciso ter paciência.

Rio de Janeiro - 1990
No escritório de segunda classe José é recebido por Airton, gerente da firma de recrutamento de garçons. A experiência que ele tem garantirá uma constante convocação. É só preencher uma ficha. Ele será chamado. José está radiante. Perde-se no relato do tempo em que Getúlio Vargas o chamava pelo nome. Airton disfarça o pouco interesse: vai adorar ouvir isto em outra oportunidade. Há muitos candidatos à espera. Os que esperam têm um ar cansado, desanimado.

Airton, rindo, descreve para o dono da empresa, a figura de José. Inacreditável. Cheira a naftalina. Parece, no entanto, entender do negócio. Servirá para dar um ar de competência que os suburbanos que os contratam valorizam. Julio se preocupa: muito idoso?  Cabelos brancos? A afirmativa de Airton determina: mande pintar. 

Em casa, a recepção que lhe foi dada por Airton é colorida pela fantasia de José que prevê o fim das dificuldades. A firma é conceituada. Recepções e casamentos. Certamente encontrará, nestes lugares, os antigos fregueses. Antonia se preocupa com o entusiasmo. Procura trazê-lo à realidade, com cuidado. Contanto que haja serviço já será muito bom.

José, em companhia de outros garçons, escuta a preleção de Airton. Não há gorjetas. É um casamento. Na eventualidade de ser quebrada alguma peça de louça, o valor será descontado. Vai ser um ótimo serviço. Festas de casamento terminam cedo. São poucas horas de trabalho e as bandejas já estarão servidas na cozinha. Os copos também. José se assusta com esta informação: não é de bom tom trazer os copos já servidos. Airton seco atalha: a quantidade de bebida já é predeterminada. A circulação dos garçons deve ser rápida e constante, impedindo que se sirvam de mais de um salgadinho por vez, ao mesmo tempo dando impressão de fartura. José está chocado. Os outros garçons observam o diálogo com ironia. Um deles informa a José que é sempre um casamento brega. A empresa nunca pega serviço de granfa. Tudo subúrbio. José, com frieza, declara que não se justifica a ausência de etiqueta. Ainda procura convencer Airton que irritado explode: tem que pintar os cabelos. José se cala.

No banheiro, Antonia acabou de pintar de preto os cabelos de José. O resultado é grotesco. O preto avermelhado faz com que as linhas da velhice se destaquem marcando o rosto. Antonia procura animá-lo. Parece ter menos 20 anos. Ela é que está velha. Vai ter que se cuidar. Assim José acaba conquistando alguma menina. È enorme a tristeza de José.

No escritório os garçons reclamam. O atraso no pagamento do último serviço já vai para mais de três dias. Airton explica: o cliente ainda não pagou. Com esta inflação a empresa não pode financiar. Assim vão acabar tendo que fechar as portas. Será pior para todos. O argumento assusta e eles desistem. José se deixa ficar. Quer falar com diretor. Airton tenta dissuadi-lo. Não vai adiantar. Julio está muito ocupado. José insiste. Espera o tempo que for necessário. Airton dá com os ombros e vai para a outra sala. A secretária olha para José, penalizada. Seu Julio não vai ceder. Imagina se ele vai tirar o dinheiro aplicado para pagar alguém. Só quando entrar o outro serviço. José se escandaliza com a noticia. Isto é desonesto. A secretária ri debochada. Também é desonesto ficar com as gorjetas e ainda pagar só um terço do que cobra por cada garçom. José, indignado, sai correndo.

No bar da esquina alguns dos garçons tomam cerveja. Ele os informa do que acabou de saber. Os outros riem. José parece viver num outro mundo. Todas as empresas funcionam assim. Não adianta fazer nada. José tenta argumentar. Há que ter dignidade. Os colegas se irritam: dignidade, o cacete! O que interessa é a vaga.

José entra apressado no sindicato. Quer falar com o advogado.

O advogado explica: José não tem vínculo empregatício. É autônomo. Não há contrato assinado obrigando a pagar no dia da prestação de serviço. Comenta com o assistente: essa gente se abaixa, aceita as condições mais absurdas e depois quer lutar pelos direitos. Um mínimo conhecimento da legislação é necessário. José, chocado, se retira, sem atender o chamado do advogado.

José em desespero, anda sem rumo. Esbarra nas pessoas, como bêbado. Um rapaz comenta com a namorada que a bicha de cabelos pintados está num barato. José escuta. Uma mudança se opera. Ele se empertiga. Entra em uma loja de ferragens. Sai com um embrulho. Anda rápido, desenvolto. Parece mais moço.

Julio está chegando no estacionamento. Vai abrir o carro e vê José que se aproxima. Esboça um gesto de contrariedade: que saco! Não tem tempo agora. Volte amanhã. José, com um inesperado e doce sorriso, enfia a faca em seu peito. O sangue jorra, sujando a mão que ainda segura a faca. O corpo cai libertando-se dela. José se afasta, caminhando devagar, empertigado. Os raros passantes olham a cena apavorados, imóveis.


Na delegacia, José deposita a faca na mesa do espantado comissário. Dignidade e orgulho dão o tom à sua declaração: "É preciso lutar por um serviço limpo, Doutor."

E SE...

      Frente à tela fazia tempo que Mafalda olhava mas não via e nem escutava a novela. Engraçado! A partir dos sessenta e cinco anos este alheamento havia começado. A filha que passava de lá pra cá em seus afazeres comentava com as amigas: Mamãe não perde um capítulo. Fica vidrada.  Prestasse ela mais atenção à expressão de Mafalda, perceberia que aquele olhar vago e distante não era destinado aos personagens que desfilavam na tela. Mafalda estava era se dando conta da entrada na terceira idade! E como!

      Em sua vida até então nada de terrível havia ocorrido. Fora tranqüila entremeada de momentos bons e ruins como a de todo mundo. Alguns foram difíceis e tristes, é verdade, como a morte do marido havia alguns anos.  Mas isto teria mesmo que acontecer: era ele quase vinte anos mais velho. Os filhos – três - haviam nascido, crescido e tomado o destino lá deles sem maiores problemas. Uma pensão razoável garantia-lhe o morar com a filha sem a sensação de dependência. Ao contrário, até ajudava, providenciando coisas supérfluas que o genro não poderia prover. Então – pensava Mafalda – porque a sensação de que alguma coisa faltara? Por que esta sensação estava ali, presente. Incomodando. E o que é pior, cada vez mais forte. 

      Vai daí que um dia a neta interrompe seus devaneios com uma pergunta aparentemente sem importância: Vó, e se você ganhasse na sena?  Mafalda sorri, achando graça: impossível, meu bem. Eu não jogo!  A neta insistiu: mas, e se?!  Mafalda não respondeu, mas, a partir deste dia, não conseguiu mais se livrar da introspecção do que lhe faltava. Aquilo ficou martelando e seus ouvidos: “e se... e se...”  Censurou-se: e se o quê? Jogar na Sena?  Que bobagem! A probabilidade é mínima. Esta constatação deveria ter sossegado seu pensamento. Mas não! O “e se” continuava insistente. Lembrou-se sorrindo e até um pouco envergonhada: e se eu houvesse me casado com  o Augusto? Uma pontinha de emoção começou a fazer seu coração bater mais forte. Censurou-se de novo: que coisa ridícula na minha idade! Ele já deve até ter morrido. Suspira: era lindo! E se não houvessem mudado para o Rio de Janeiro... quem sabe?

      A partir daí uma torrente de “e se” começou a jorrar de seus pensamentos. E se não houvesse aceitado a imposição do marido para que parasse de trabalhar? E se tivesse ido à Europa com o dinheiro que teria ganhado? E se tivesse conhecido Veneza, seu sonho? E se tivesse dito à desagradável Tia Eulália tudo que ela merecia ouvir? Uma tristeza começou a invadir seu mundinho: os “e se” ficaram todos num passado distante. Impossível de realizá-los. Até a peste da Tia Eulália já se foi!

      De repente como um raio um pensamento perigoso. Muito perigoso!. Os “e se“ não precisam se tornar passado!! E se ela comprasse aquele vestido que adorou, mas achou com um ar muito jovem? Levantou-se de um salto. O shopping ficava aberto até 10 horas e era é logo ali. Sob olhar estarrecido da filha anunciou: vou sair. Já volto!  E foi assim que tudo começou. O vestido novo funcionou como uma armadura guerreira que lhe permitiu partir, lança em riste, para a aventura de uma terceira idade assumida e divertida em que os “e se” podem acontecer no presente.

      O primeiro dos desatinos (segundo os filhos) foi: e se eu fosse dançar na Estudantina? A ida ao dancing sozinha era uma ação inimaginável em sua pacata vida. Mas foi. Não só foi como dançou, noite adentro, com um daqueles fabulosos senhores que por lá exibiam suas qualidades coreográficas. E se eu cortasse meus cabelos bem curto, deixando que os cachos que sempre procurei esconder se liberem? E assim foi feito e no salão o “e se” funcionou a mil: maquilagem, depilação, massagem linfática tudo o que tinha direito. Quase não foi reconhecida ao entrar em casa.


      Os filhos ficaram em pânico. Uma noite se reuniram em casa do mais velho deles aventando as possibilidades as mais terríveis. O que mais ela poderia aprontar? A filha desolada  informa: ela comprou um maiô! Deu pra ir a praia com aquele velho do quinto andar! Os outros gritam apavorados: vai dizer que ela está namorando?! A moça suspira: felizmente, não. Ela disse que ele é um chato... mas carrega a barraca!  Ao voltar para casa a filha quase desmaia ao vê-la  participando da mesa de pôquer que o marido organiza as quartas feiras com os amigos. Ela chama o marido aparte e furiosa cobra: “ta maluco?! Você está dando força para esta loucura de mamãe querer parecer jovem?!”  O genro sorri: “ela não está parecendo mais jovem e nem quer isto. Ela está, minha querida, muito  feliz!”   

quarta-feira, março 05, 2014

O SEGREDO


Podia-se dizer, sem mentir, que Quinzinho era um homem de sorte. Desde o nascimento tudo havia dado certo e foi assim, que aos trinta anos, a vida lhe sorria no rosto de Dalva, sua mulher. Dalva havia sido, e ainda era, a mulher mais bonita que já vira. Estavam casados havia dez anos e eram citados por todos como o casal mais feliz daquelas paragens. De fato era invejável o entendimento entre os dois. Amavam-se perdidamente. Não havia entre eles palavras não ditas, pensamentos não revelados, anseios não expressos. Confiavam tudo um ao outro, certos do entendimento, da aceitação, da compreensão. Por esta razão Quinzinho não se recriminava de haver guardado um único segredo: era estéril.

Havia sabido disto quando se candidatou ao tiro de guerra na cidade onde estudava, longe de todos. Na época aquilo incomodou um pouco e ele guardou para si a informação. O incômodo logo passou quando Dalva, no início do namoro, lhe fez uma extraordinária confissão: achava difícil que um homem a quisesse como esposa já que ela abominava a ideia de ter filhos. Quinzinho, já caído de amores, exultou. E, sabe-se lá por que não revelou sua impossibilidade neste setor. Apenas concordou, entusiasmado: filhos jamais!  E vai daí que esqueceu a esterilidade. Esqueceu mesmo.

E eis que chega de Portugal um primo distante para uma visita. Hospedou-se em casa dos pais de Dalva e, imediatamente, ficou íntimo do casal que se maravilhava com histórias e descrições de uma Europa que lhes parecia um lugar encantado. Havia vindo para passar dois meses, mas de repente, para espanto geral resolveu partir. E todos culparam Dalva deste fato por que ela, inexplicavelmente, havia se tomado, do dia para noite, de uma solene antipatia pelo Primo tratando-o com indiferença e até com certa grosseria. Recriminada por todos Dalva reagiu mal, pela primeira vez, até com Quinzinho. Mas ele colocou um ponto final no assunto.  

Pouco tempo depois o ponto final transformou-se num raio quando Dalva, aos prantos, revelou que estava grávida. Estava esclarecida a rejeição de Dalva ao Primo. Quinzinho, ao invés de bradar aos céus, como seria de esperar, emudeceu. E suas lágrimas juntaram-se às de Dalva. O médico espantou-se: mulher com depressão pré parto já não era comum, homem então!  Pela primeira vez não tinham eles a mesma clareza sobre os fatos: o motivo do pranto de Dalva era conhecido por Quinzinho. E ela, que nem desconfiava disto, atribuía a um filho não desejado a torrente de lágrimas do marido. E ele sofria. Sofria muito. Isto durou até que foram a um show de Roberto Carlos. Como última música ele cantou, emocionado, “Eu vi a mulher preparando outra pessoa”... e o tempo parou para que Quinzinho olhasse para aquela barriga como fruto seu.

E foi assim que Joaquinzinho nasceu lindo e bem vindo para alegria da família e espantosamente de Dalva e Quinzinho.  Mas desmentindo ditado, um raio cai, sim, duas vezes no mesmo lugar. Num terrível diagnóstico Joaquinzinho adoece e a única salvação seria um transplante de fígado. Dalva havia tido hepatite e não poderia ser a doadora. Ela e Quinzinho, ambos sabedores da verdade, se desesperam. Quinzinho submete-se aos exames para verificar a compatibilidade. Mudos, eles esperam pelo milagre de uma coincidência impossível. E eis que o médico, olhando o resultado do exame, anuncia ao aterrado casal: não nega que é seu filho. E Joaquinzinho é operado com o maior sucesso. Pasmo Quinzinho procura uma clinica e em segredo se faz examinar. Aleluia! O exame feito por época do tiro de guerra não se confirma.  No hospital ainda, para distrair o filho, Quinzinho mostra um álbum de família identificando os retratados.


E eis que o dedinho do menino aponta o Primo, numa das fotos: quem é esse? Dalva retém a respiração e observa o marido. Uma retumbante gargalhada ecoa no quarto. Quinzinho ri. Ri e chora. Ele toma Dalva nos braços e rodopia com ela, dançando leve e solto. E ele grita, brada aos céus: Dalva, meu amor, você tinha razão, o Primo era um cretino. E voltando-se para o filho: este ai, meu filho, não era ninguém! Sem que fosse preciso explicar e porque se amavam muito, Dalva entendeu tudo. E foi assim que o único segredo que havia entre eles desapareceu para todo sempre no riso alegre de Joaquinzinho.  

terça-feira, março 04, 2014

A REFORMA DESEJADA


       Marco Aurélio era, aos 30 anos, um esquisitão. Em tudo, cópia do tio avô Ramiro, que lhe havia legado o Casarão. Por isto ninguém se surpreendeu quando ele decidiu nele morar. Até que tentaram convencê-lo a vender. Escandalizou-se o rapaz: vender a casa do Tio Ramiro?! Nunca! Pelo menos faça uma reforma, pediram. Escandalizou-se mais ainda.

E foi assim que Marco Aurélio refugiou-se em meio às paredes cinza e tristes em companhia de uma senhora discreta e muda como o patrão e que se ocupava de todo serviço. Fora os livros e os velhos discos, também legados pelo Tio, nada mais lhe interessava. Nem mesmo as belas pretendentes que acabavam por desistir. Nisto também imitava o Tio Ramiro. Este jamais se interessou pela bela Joana que, morrendo de paixão, retardou o casamento até o último minuto esperando que Ramiro desse apenas um sinal para abandonar o noivo e jogar-se em seus braços. Contava a lenda familiar que no dia do casamento de Joana, Ramiro resolveu galopar estrada a fora em seu belo o cavalo alazão que jamais saia das cocheiras. Quem sabe irritado por ser perturbado em seu eterno descanso o cavalo reagiu e atirou Ramiro ao chão. Acordou dias depois num hospital mais enfarruscado do que nunca.


Além dos livros e os discos só demonstrava interesse por Marco Aurélio que, desde o nascimento, mereceu deste tio atenções nunca vistas, no que era correspondido pelo menino que o adorava. Quando Marco Aurélio veio morar no casarão manteve tudo exatamente como o Tio havia deixado. Única diferença foi a cocheira agora usada como garagem onde o belo carro em nada ficava a dever ao alazão do Tio, mas que nunca era usado.

Um belo dia a governanta sai de seu mutismo para fazer um pedido: uma sua sobrinha ficara órfã e só no mundo. Não tinha para onde ir. Será que poderia vir morar no casarão ocupando o pequeno depósito onde coisas que caiam em desuso eram guardadas? Ela poderia ajudar no serviço. Marco Aurélio concedeu, mas exigiu: desde que não me dirija palavra. E assim foi feito.

Como a apaixonada do Tio Ramiro, a moça chamava-se Joana e como ela era também deslumbrante. Passou a ser uma presença silenciosa junto a Marco Aurélio. Era ela que lhe servia o café, o almoço e o jantar, Os pratos, trazidos numa bandeja enfeitada com uma rosa sempre fresca, se sucediam acompanhados de um leve perfume de lavanda. Coisa estranha: Joana parecia adivinhar quando sua presença era necessária. Surgia do nada, sem ruído, trazendo a xícara de chocolate quente, fechando as cortinas quando a claridade incomodava, preparando a cama no momento em que o sono vinha e escolhendo as roupas que ele desejava vestir, após o banho, que arrumava primorosamente sobre a poltrona do quarto.

Joana havia se incorporado ao casarão e ao patrão. Dois anos se passaram até o dia em que Marco Aurélio ouve pela primeira vez a voz de Joana: é a última vez que lhe sirvo. Eu amo o senhor e isto não pode, não é? Marco Aurélio sentiu uma coisa esquisita quando o jantar foi servido pela governanta que, sem dizer palavra, assumiu todas as tarefas de Joana. Dela ficou no ar o perfume de lavanda que foi sumindo, sumindo até desaparecer por completo. E a coisa esquisita que ele sentia foi aumentando, aumentando e se tornando uma quase dor quando passava pela porta do quartinho que havia sido de Joana.


Alguma coisa tinha que ser feita. Atribuindo o desconforto e o mal estar a aquele quarto que permanecia como Joana havia deixado, decidiu por um recurso extremo: uma reforma! O quarto se tornaria uma despensa apagando a lembrança. É isto! E sem esperar ajuda começou a retirar do quarto todos os objetos que ainda guardavam o perfume de Joana. Ao retirar uma pequena caixa de madeira, curioso, abriu. Nela um embrulho com os dizeres: pertences recolhidos no acidente do doente Ramiro Gomes Teixeira. Entre estes uma carta na qual Tio Ramiro se declarara minutos antes de partir em seu alazão para raptar sua Joana às portas da igreja: meu amor, juntos leremos esta carta onde escrevo o que nunca fui capaz de dizer. E a governanta se assusta quando vê Marco Aurélio passar em disparada em direção à garagem, gritando: preciso entregar a carta! O carro espatifa-se contra um caminhão ao cruzar a estrada. No cemitério, pela carta que nunca recebeu, lagrimas correm pelo rosto bonito de Joana. 

segunda-feira, março 03, 2014

O TEATRO DA VIDA

      Hoje, passados tantos anos, nenhum deles consegue lembrar como e porque o Teatro havia surgido. Aquela vila de subúrbio era o palco e os pais o público que entusiasmado aplaudia os espetáculos produzidos pelas crianças, ainda tão pequenas. As idades variavam entre sete e onze anos. Pedro, o mais velho, era o diretor da Companhia. A estrela, Marinha. Aos dez anos a menina já anunciava a beleza que despontaria anos mais tarde. As peças improvisadas, jamais escritas ou decoradas, tinham por inspiração histórias narradas às crianças pela avó de Pedro. O figurino dos personagens era tomado emprestado nos guarda roupas dos pais; adornos e jóias confeccionados em papel crepom.

      E foi assim, como todos os outros, montado o último espetáculo: Rapunzel. Nesta montagem uma surpresa: Pedro exigiu para si, além da direção, o papel do Príncipe. Houve revolta. Afinal o galã era sempre o Tonho. A discussão terminou quando Pedro ameaçou deixar a Companhia: capitularam sem entender o porquê da insistência. Mas nem mesmo Pedro entendia o mal estar que sentia quando imaginava que outro, que não ele, iria tocar os cabelos de Marinha. Ele tinha fascinação pelos cabelos da menina: negros, brilhantes, fartos, chegando até a cintura. Até sonhava com eles! E se enfureceu quando Fabinho, que fazia o papel do Pai de Rapunzel, comentou que os cabelos da Princesa deviam ser louros e que só uma menina loura poderia fazer o papel. Pedro, indignado, invocou a presença da avó para atestar que Rapunzel era morena. Esta percebendo que por alguma razão isto era importante para o neto adorado, afirmou: os cabelos de Rapunzel eram negros! Muito negros! Diante deste abalizado testemunho todos se calaram e Marinha foi confirmada como Rapunzel.

      O espetáculo foi lindo. Emocionada, a platéia tomada por fértil imaginação, via uma altíssima torre no lugar da escada de quatro degraus da cozinha da casa de Tonho, onde Marinha-Rapunzel, num equilíbrio instável e interpretação irrepreensível, escutava o chamado de Pedro-Príncipe: Rapunzel, solta seus cabelos!  Num gesto dramático, Marinha os lançava escada abaixo para que Pedro os pudesse utilizar como corda para juntar-se à amada. Terminado o espetáculo a platéia aplaudiu frenética enquanto os atores de mãos dadas se curvavam agradecendo.

      Quando foi servido o lanche de costume (cachorro quente e coca-cola) a terrível notícia caiu como um raio.  A família de Rapunzel, quer dizer de Marinha, iria mudar-se para São Paulo!  Aquele seria seu último espetáculo como estrela da Companhia. E Pedro sentiu o coração apertar. Nunca mais iria ver aqueles cabelos lindos, que agora havia tocado. Eram macios, tão macios!
* * *
      Pedro, aos vinte e cinco anos, sorri no pensamento: ainda sinto o coração apertado. Como estará Marinha hoje em dia? Com certeza cortou os cabelos. E vem uma idéia maluca: ela poderia ter sido a mulher de minha vida. Mas naquele tempo eu não percebia. Era tão criança...  
* * *
      A amiga de Marinha espanta-se: que ideia! Deixar de ir ao almoço da turma para ver um desenho animado! Pirou? Marinha sorri: não é um desenho animado. É a história de Rapunzel! A amiga espanta-se: e daí? Espanta-se mais ainda com a resposta de Marinha: o Príncipe, poderia ter sido o homem de minha vida! .  
* * *
      A fila do cinema está enorme. Crianças acompanhadas pelos pais fazem uma enorme algazarra. Pedro sente-se deslocado: o que é que eu estou fazendo aqui?  Marinha, um pouco adiante na fila, sonha: será que o Príncipe se parece com Pedro? Sem saber por que o faz, retira a presilha que prende os longos cabelos que nunca teve coragem de cortar. Eles caem sobre seus ombros chegando à cintura. Ouve-se um grito: Rapunzel! Ela se volta e deslumbrada reconhece Pedro que corre em sua direção. Os que estão na fila, espantados, observam o casal que se abraça comovido e depois parte, mão na mão, em direção à vida.


domingo, março 02, 2014

AMNÉSIA

Coisa mais absurda o nome que lhe deram: Bela! Porque Bela era feia. Muito feia. Ninguém sabia, nem ela mesma, de quem havia herdado a boca torta, os olhos arregalados e aquele nariz enorme. Bela fora deixada na porta de um asilo com dias de nascida. Mas se a herança havia sido cruel, no que tocava ao físico, uma enorme compensação se dava em todo resto. Bela era extremamente inteligente, sensível e corajosa. Mas nem isto ajudou para que alguma família a quisesse adotar. Tão feia ninguém a queria. Devorou ávida de saber, os poucos livros que havia no asilo e, lido o último, resolveu fugir. Pra onde nem sabia. Mas pelo que havia lido pressentia que lá fora outro mundo havia, onde pessoas viviam aventuras emocionantes.

Não foram fáceis os primeiros dias. Passou fome! Até que aportou naquela casa, tão bonita, onde além do prato de comida lhe deram trabalho. Ajudante da cozinheira não tinha que aparecer; como arrumadeira só se fazia presente nos belos salões quando a família ainda dormia. E foi assim que entre as cortinas viu Marcelo pela primeira vez. E Bela caiu-se de amores. Amor impossível, bem sabia. Mesmo assim dava um sentido a sua vidinha tão sem esperança. Bela quase não dormia. A patroa havia permitido que tomasse emprestados os livros da enorme biblioteca da casa. Livros que devorava à noite em seu quartinho. E foi assim que Bela se tornou uma pessoa que sabia das coisas. Tivesse oportunidade não faria vergonha em qualquer lugar. Mas esta oportunidade nunca iria existir, pensava ela, que se contentava em vigiar cada movimento de Marcelo.

Aproveitava as idas à feira para obter informações sobre ele. Soube que era órfão e muito rico. Morava sozinho naquela mansão. Chegou a rir quando lhe disseram que era formado em medicina e fazia residência em cirurgia plástica. Parece piada, pensou: eu tão feia e ele fabricante de beleza!  Através das grades do jardim, às escondidas, acariciava o cãozinho Peteleco que ele adorava e com o qual às vezes o via brincar. Tocá-lo era como tocar em Marcelo e isto a emocionava. Bela não se enganava nem se envolvia num sonho como se verdadeiro pudesse vir a ser. Sabia que o impossível era impossível e contentava-se em amar à distância e que ainda que esta distância fosse apenas o outro lado da rua, seria para sempre intransponível. 

Mas a vida é mesmo imprevisível. Os patrões resolvem mudar para São Paulo e, feita a mudança, a deixam tomando conta da casa até que o comprador dela tomasse posse. Ela iria para São Paulo tão logo isto ocorresse. E, nesta folga inesperada, Bela resolve ir passear na Lagoa. Foi assim que a bala perdida da perseguição policial lhe destruiu o rosto. Ao acordar no Pronto Socorro, depois de operada, vê vários médicos ao lado da cama. Marcelo é um deles! Ele está sorrindo ao escutar o que lhe diz um colega: desta vez você se superou! Incrível o que conseguiu fazer. Marcelo curva-se sobre ela: como é seu nome? Hesitante ela responde: não sei!

Condoídos todos se dão conta que ela não sabe quem é, não sabe de onde vem, não sabe nada. A memória se foi, levada pela bala. Sem documentos, na bolsa apenas o dinheiro da passagem, ninguém procura por ela. Marcelo envaidecido de seu trabalho dá a Bela uma atenção muito maior do que a necessária. Outras operações seriam necessárias para arrematar a obra. Aos poucos Marcelo se encanta com o mistério da origem, a inteligência, a cultura. Passam horas conversando. E, como nos contos de fada, o amor que, fazia tempo, havia desabrochado em Bela, encontra o caminho para o coração de Marcelo.


E vem o dia em que Bela, ao retirar definitivamente as ataduras que lhe envolviam o rosto, se vê maravilhada, verdadeiramente Bela. Irreconhecível. Nada impede agora um futuro para aquela que não tem passado. No dia em que tem alta, pelos braços de Marcelo, é conduzida à mansão que vigiava através das cortinas. Peteleco corre para saudá-los e ela grita: Peteleco! Marcelo assombrado pergunta: Como é que você sabe o nome dele?  Por alguns segundos o coração de Bela dá uma cambalhota. Mas ela se recompõe, sorri: você me falou dele! Não se lembra, meu bem?! Marcelo ri: não! Vai ver amnésia pega! E ela: pois eu me lembro. E é minha única lembrança. Mas daqui pra frente terei muitas.          

sábado, março 01, 2014

É O DESTINO

A moça se tornara uma obsessão. Aos amigos parecia uma maluquice. Apaixonar-se por alguém havia visto durante apenas alguns minutos! Naquela fila de espera, no aeroporto, haviam trocado poucas palavras. Mas o sorriso, a voz, os olhos brejeiros, o deixaram louco. Marquito pediu, implorou mesmo, o endereço, o telefone, qualquer informação que pudesse garantir um novo encontro quando então ele a pediria em casamento, com certeza. E ela, rindo, respondeu: quem sabe um dia vamos nos encontrar de novo... por acaso... Acredito no destino, sabe?  Aí então... E sem alternativa, ele passou a acreditar também.

Um nome... apenas um nome – Violeta. Naquele tempo ainda era jovem, muito jovem e agora já não era tanto. Durante anos Marquito esgotou todos os recursos na busca de Violeta. Os pais se foram desta vida, preocupados com ele.  Em conchavo com os amigos haviam tentado encontrar alguém que substituísse a amada idealizada. Impossível! Ele nem mesmo olhava as moças que lhe eram apresentadas. Estas bem que se encantavam pela beleza e pela posição invejável de que ele desfrutava. À medida que os anos passavam Marquito foi se tornando um homem triste. Em desespero, nas noites mal dormidas, a imaginava casada, feliz, com filhos que não dele. E sofria. Sofria pra valer. A voz, o sorriso e os olhos brejeiros o acompanhavam onde quer que fosse.


Desistiu do carro. Lembrava-se do destino de que ela falara. Seria mais fácil encontrá-la, no por acaso, em meio aos passantes. Em sua loucura, às vezes, parecia vê-la entre a multidão. E ele corria a seu encontro. Mas nunca era ela. Guardava em sua memória cada traço de seu rosto. Lindo, tão lindo. Rindo, sempre rindo. Um dia pensou: rindo de mim! E ficou ainda mais triste.

Em sua loucura contratou um pintor capaz de reproduzir um retrato falado. Passou meses a seu lado em requintando na busca dos mínimos detalhes, das mais sutis nuances de cores. Até que na tela surgiu, em todo seu esplendor, a amada. E ele pediu ao pintor que a reproduzisse em muitas telas que passaram a povoar as paredes de seu belo apartamento para espanto de todos que nele entravam. Os amigos (e ele os tinha muitos) não mais falavam em terapias, viagens e possíveis substitutas. Resolveram embarcar na loucura. Referiam-se à Violeta como se a conhecessem e como se, a qualquer momento, fosse entrar pela porta. Não mais se afligiam quando em meio a uma conversa, ele emudecia, olhando para um dos muitos retratos de Violeta, refugiando-se num mundo mágico onde só a moça era admitida. Quando isto acontecia, eles saiam de mansinho, sem se despedir, deixando-o só. Sabiam que esta contemplação poderia durar horas.

Um dia lhe falaram de uma cartomante capaz dos mais extraordinários feitos. E a esperança renasceu.  E não sem razão! Maravilhado Marquito a escutou afirmar que iria encontrar Violeta, num acaso, como ela havia previsto. E mais: ela não estava casada! Nunca esteve! As cartas diziam que ela o havia esperado, também. E o encontro estava próximo. Era preciso ficar atento, muito atento, sem qualquer distração, porque iam literalmente se esbarrar na rua. Ao andar pelas calçadas, em busca incessante, deveria esquecer-se de qualquer imagem que não fosse a de Violeta. E ele não parou mais de andar.

Um dia acordou com a sensação de “É Hoje”! Radiante esmerou-se no vestir e no barbear-se e saiu. Ao sair de casa parecia que alguma coisa guiava seus passos. Ia decidido como se soubesse para onde. Ao aproximar-se de uma esquina seu coração bateu mais forte. Ali vou atravessar e ela vai estar do outro lado! Tinha certeza. Já próximo da esquina pára, olhando-se num espelho disposto em uma vitrine. Confere a imagem: será que ela vai me reconhecer? Sorri para si mesmo fazendo render a emoção de que estava preso. Neste exato momento, Violeta dobra a esquina. Prepara-se para atravessar a rua quando esbarra num homem deixando cair embrulhos que trazia. Curvam-se os dois para apanhá-los, rindo e desculpando-se ao mesmo tempo.


O homem está visivelmente encantado com a voz, o sorriso e os olhos brejeiros. Os dois se dão conta de que o sinal já está piscando e, correndo juntos e ainda rindo, atravessam a rua. Neste exato momento Marquito deixa o espelho e se dirige para esquina aguardando, emocionado e esperançoso, a abertura do sinal. Já longe Violeta responde ao homem que lhe faz uma pergunta: é o destino, quem sabe?