Rio de Janeiro - Carnaval de 1952
José
Simões, aos 30 anos, dá o laço na gravata borboleta, dentro de um impecável
"summer". Com desgosto, alisa um imperceptível amassado no paletó e
grita por Antonia. Risonha, ela escuta recriminações: o descuido em passar a
roupa significa uma falha na imagem. Antonia promete: não vai mais acontecer. O
tom rigoroso e autoritário dá lugar a uma queixa infantil, lamurienta: ela
sempre diz isto. Antonia sorri maternal, contrariando seus 25 anos.
No
bonde, um grupo de palhaços coloridos, canta e dança sobre os bancos. O Teatro
Municipal surge iluminado. José salta e se dirige para lá, apressado. O
porteiro fardado é a única pessoa na entrada, que José ultrapassa dirigindo-se
à porta lateral, onde uma fila de homens, vestidos como ele, entra
vagarosamente. José é garçom.
José
conduz uma garrafa de champanhe e taças, com elegância, desviando-se de bêbados
e mascarados. Na porta de um camarote, dois homens de terno, o deixam entrar
depois de uma avaliação minuciosa. O sorriso nos lábios de José é quase
imperceptível ao oferecer a taça ao homem sorridente que o observa. O
"senhor presidente" tem um leve tom de intimidade e é retribuído com
exclamações de reconhecimento. José é um garçom familiar ao Presidente Getúlio
Vargas.
Nos
braços de Antonia, José comenta sua atuação no baile. Nomes famosos desfilam
entremeados com a descrição do cardápio servido na ceia. Antonia, sedutora,
quer saber se ele flertou com alguma mascarada. José sinceramente se
escandaliza. Seria inadmissível, não profissional. Antonia enrosca seu corpo no
dele, num convite ao amor. José se rende e a possui com uma fúria que não se
poderia supor num homem comedido como ele.
Rio de Janeiro - 1968
No
Bec Fin o movimento é intenso. Em todas as mesas discute-se a situação do país.
José apresenta as trutas com amêndoas ao senhor de cabelos grisalhos que
preside a mesa e inicia sua abertura. Todos interrompem a conversa para
acompanhar a operação: ninguém faz isto como José. O elogio não o perturba.
Impassível e solene ele vai colocando os pratos servidos para cada um dos
convivas. Curioso, o senhor quer saber a opinião de José sobre o golpe militar.
Categórico, ele deixa transparecer o desgosto: militares não sabem se ter à
mesa. Uma gargalhada de concordância saúda a declaração.
A
mesa de almoço está sendo primorosamente posta por Antonia. Serviço terminado
ela se dirige para o quarto. Na penumbra José dorme. Antonia o observa com
carinho. Delicada ela o acorda: já são 5 horas da tarde. José senta-se na cama.
Os dois trocam comentários sobre a noite anterior. José enumera nomes de
fregueses a quem serviu. Orgulhoso, pede à Antonia que apanhe a carteira no
bolso da calça. Exibe um maço de notas: Dr. Almeida Furtado retribuiu assim seu
comentário sobre o governo da revolução. Um garçom sabe das coisas. Se souber
aproveitar adquire mais cultura do que na faculdade. Antonia comenta que se as
gorjetas continuarem assim dentro em breve poderão comprar a casa. A vizinha
disse que agora tem um banco que ajuda. José, complacente, traduz. É o BNH. É
uma mulher que chefia. Já foi uma vez no Gourmet. Ordenou um Chateau Margaux
para acompanhar um badejo. Um horror. Antonia está impressionada.
José
e Antonia comemoram a compra da casa. Ele se destaca dos convivas que,
ruidosamente, tomam cerveja em mangas de camisa: de terno, é tratado com
deferência. O sogro escuta admirado o relato que José lhe faz de notícias que
não saem em jornal. Torturas, prisões, pessoas desaparecidas. José não conhece
essas pessoas. São estudantes, comunistas, pessoas que nunca freqüentaram os
lugares em que trabalha. Mesmo assim ele está chocado. Isto não parece certo,
embora o governo esteja sendo apoiado por muitos de seus fregueses mais
eminentes. José está confuso. O sogro acha que ele não deve se preocupar com
isto. Afinal foi o governo que permitiu a compra da casa. Todo mundo está
prosperando. José concorda que há muito dinheiro rodando na noite. Até dólar
ele tem recebido. O sogro olha, maravilhado, a nota de 10 dolares que passa de
mão em mão, admirada com respeito.
Rio de Janeiro - 1986
A
imponência que caracterizava José já não é mais a mesma. O maitre do Gourmet,
pouco a vontade, se dirige a ele: o movimento já não é o mesmo. Os fregueses
antigos se foram. Os novos preferem o serviço feito com rapidez e não dão valor
ao requinte com que José se habituou a servir. Ele merece uma casa que valorize
o tradicional. José, atingido, procura manter a dignidade: serviço não há de
faltar.
A
romaria começa, à procura de emprego. José se choca com as poucas propostas:
sem salário, só à base de gorjeta. Percebe que sua experiência e capacidade de
nada valem. Pequenos detalhes revelam seu desânimo: a maneira de andar, de se
vestir, o tom de voz. O orgulho, no entanto, ainda transparece no que fala, ao
se candidatar a uma vaga.
Antonia
apresenta os mesmos sinais de envelhecimento que marcam José. Mais gorda,
olheiras fundas, conserva, no entanto o sorriso e o bom humor que complementam
o carinho com que trata José, chegando em casa, cansado. Ela se apressa nos
últimos cuidados com a casa antes de sair. Está atrasada. Até Ipanema é um
estirão e D. Mercedes cria o maior caso quando ela chega depois da sete para a
faxina. É preciso ter paciência.
Rio de Janeiro - 1990
No
escritório de segunda classe José é recebido por Airton, gerente da firma de
recrutamento de garçons. A experiência que ele tem garantirá uma constante
convocação. É só preencher uma ficha. Ele será chamado. José está radiante. Perde-se
no relato do tempo em que Getúlio Vargas o chamava pelo nome. Airton disfarça o
pouco interesse: vai adorar ouvir isto em outra oportunidade. Há muitos
candidatos à espera. Os que esperam têm um ar cansado, desanimado.
Airton,
rindo, descreve para o dono da empresa, a figura de José. Inacreditável. Cheira
a naftalina. Parece, no entanto, entender do negócio. Servirá para dar um ar de
competência que os suburbanos que os contratam valorizam. Julio se preocupa:
muito idoso? Cabelos brancos? A
afirmativa de Airton determina: mande pintar.
Em
casa, a recepção que lhe foi dada por Airton é colorida pela fantasia de José
que prevê o fim das dificuldades. A firma é conceituada. Recepções e
casamentos. Certamente encontrará, nestes lugares, os antigos fregueses.
Antonia se preocupa com o entusiasmo. Procura trazê-lo à realidade, com
cuidado. Contanto que haja serviço já será muito bom.
José,
em companhia de outros garçons, escuta a preleção de Airton. Não há gorjetas. É
um casamento. Na eventualidade de ser quebrada alguma peça de louça, o valor
será descontado. Vai ser um ótimo serviço. Festas de casamento terminam cedo.
São poucas horas de trabalho e as bandejas já estarão servidas na cozinha. Os
copos também. José se assusta com esta informação: não é de bom tom trazer os
copos já servidos. Airton seco atalha: a quantidade de bebida já é
predeterminada. A circulação dos garçons deve ser rápida e constante, impedindo
que se sirvam de mais de um salgadinho por vez, ao mesmo tempo dando impressão
de fartura. José está chocado. Os outros garçons observam o diálogo com ironia.
Um deles informa a José que é sempre um casamento brega. A empresa nunca pega
serviço de granfa. Tudo subúrbio. José, com frieza, declara que não se
justifica a ausência de etiqueta. Ainda procura convencer Airton que irritado
explode: tem que pintar os cabelos. José se cala.
No
banheiro, Antonia acabou de pintar de preto os cabelos de José. O resultado é grotesco.
O preto avermelhado faz com que as linhas da velhice se destaquem marcando o
rosto. Antonia procura animá-lo. Parece ter menos 20 anos. Ela é que está
velha. Vai ter que se cuidar. Assim José acaba conquistando alguma menina. È
enorme a tristeza de José.
No
escritório os garçons reclamam. O atraso no pagamento do último serviço já vai
para mais de três dias. Airton explica: o cliente ainda não pagou. Com esta
inflação a empresa não pode financiar. Assim vão acabar tendo que fechar as
portas. Será pior para todos. O argumento assusta e eles desistem. José se
deixa ficar. Quer falar com diretor. Airton tenta dissuadi-lo. Não
vai adiantar. Julio está muito ocupado. José insiste. Espera o tempo que for
necessário. Airton dá com os ombros e vai para a outra sala. A secretária olha
para José, penalizada. Seu Julio não vai ceder. Imagina se ele vai tirar o
dinheiro aplicado para pagar alguém. Só quando entrar o outro serviço. José se
escandaliza com a noticia. Isto é desonesto. A secretária ri debochada. Também
é desonesto ficar com as gorjetas e ainda pagar só um terço do que cobra por
cada garçom. José, indignado, sai correndo.
No
bar da esquina alguns dos garçons tomam cerveja. Ele os informa do que acabou
de saber. Os outros riem. José parece viver num outro mundo. Todas as empresas
funcionam assim. Não adianta fazer nada. José tenta argumentar. Há que ter
dignidade. Os colegas se irritam: dignidade, o cacete! O que interessa é a
vaga.
José
entra apressado no sindicato. Quer falar com o advogado.
O
advogado explica: José não tem vínculo empregatício. É autônomo. Não há
contrato assinado obrigando a pagar no dia da prestação de serviço. Comenta com
o assistente: essa gente se abaixa, aceita as condições mais absurdas e depois
quer lutar pelos direitos. Um mínimo conhecimento da legislação é necessário.
José, chocado, se retira, sem atender o chamado do advogado.
José
em desespero, anda sem rumo. Esbarra nas pessoas, como bêbado. Um rapaz comenta
com a namorada que a bicha de cabelos pintados está num barato. José escuta.
Uma mudança se opera. Ele se empertiga. Entra em uma loja de ferragens. Sai com
um embrulho. Anda rápido, desenvolto. Parece mais moço.
Julio
está chegando no estacionamento. Vai abrir o carro e vê José que se aproxima.
Esboça um gesto de contrariedade: que saco! Não tem tempo agora. Volte amanhã.
José, com um inesperado e doce sorriso, enfia a faca em seu peito. O sangue
jorra, sujando a mão que ainda segura a faca. O corpo cai libertando-se dela.
José se afasta, caminhando devagar, empertigado. Os raros passantes olham a
cena apavorados, imóveis.
Na
delegacia, José deposita a faca na mesa do espantado comissário. Dignidade e
orgulho dão o tom à sua declaração: "É preciso lutar por um serviço limpo,
Doutor."