quinta-feira, novembro 07, 2013

QUEM DIRIA!

O dia-a-dia sempre foi minha meta e neste um depois do outro os desejos e pensamentos sempre foram ligados ao imediato. Como eu gostaria de ter sido eu a dizer a frase genial de Paulinho da Viola que tanto me descreve: “Meu tempo é hoje. Eu não vivo no passado. O passado vive em mim”. E agora, de repente, o imediato se reveste de solenidade e importância enormes: bisavoíce! Invento a palavra como invento a vida. E é então que me volto para o passado. Mais precisamente para 1951.

Jovem, muito jovem escuto a voz do médico: você está grávida. Grávida?! Como?! O médico ri do “como”. Não entende. Mas a palavra se justificava, sim. Havia quase dois anos que eu, apenas saída da adolescência, estava brincando de ser casada. A brincadeira de ser mãe ainda não havia me ocorrido. A surpresa misturou-se ao medo. Seria eu capaz? Desse negócio de ser mãe eu só sabia o “desdobrar fibra por fibra” do poema e isto era assustador.

Em nada ajudou a reação de meu marido quando, com um ar culpado, dei a notícia: ele claramente demonstrou o medo que eu tentava esconder. Mas fazer o quê? O jeito foi enfrentar decidindo num ato de coragem ter meu filho em Natal quando todas as outras jovens senhoras de oficiais da base aérea, também grávidas (e eram em grande número), se mandavam para perto da família, no sul.

Meses depois chega a hora e eu, agora já animadíssima, acordo meu marido na madrugada. Consigo rir quando escuto um “dorme que passa” em voz sonolenta. Finalmente acordado nos metemos no Fiat Pulga, onde eu entrava com certa dificuldade e partimos rumo à maternidade Januário Cicco. Poucas horas depois o milagre: meu filho lindo que pelas fotos que vejo agora era muito feio. A partir daí acho que dei conta. Não só dele, mas dos outros dois que vieram depois.

E tome passar de tempo. Até o dia em que minha filha me participa que vou ser avó. De novo uma coisa nova. Muito nova. Chegado o dia a ansiedade foi tanta que cheguei ao hospital antes da filha e do genro. Por um vidro vi minha primeira neta. Fiquei tão grata ao meu genro! Tinha um quê de mais milagre do que os filhos. Uma sensação de eternidade. Logo eu que não acredito nela. Mas um dia, naquele momento, ficou claro, aquele ser tão pequeno seria uma mulher de minha idade vendo o neto ou neta nascer. E mesmo eu não estando lá de carne e osso, dentro da figurinha um dos vinte e cinco milhões de genes que a formarão, maroto, dirá para outro: eu venho da bitataravó! É eternidade ou não é?

Com o passar do tempo mais duas netas vieram. Extremamente competentes como netas e como gente. Duas já adultas e uma adolescente fazem minha vida mais bonita. E agora esta notícia: vou ser bisavó! Incrível! Como é que tanto tempo passou e eu não percebi? Estou velha? Muito velha? Meu bisavô, o único que conheci, era muito velho. Vovô de Uva ou Vovô de Barba, eu o chamava. Minha bisneta ou meu bisneto vai me chamar de Bisa.

A primeira providência que tomei depois que me foi dada a notícia (seguida da compra de rolos e rolos de lã e linha para começar a tricotar furiosamente) foi declarar que esta denominação é exclusivamente minha e que os quatro (!) bisavós do outro lado terão que criar outra para eles. Um exagero de bisavós terá esta criança. As agulhas de tricô batem uma na outra e eu sonho: numa cadeira de balanço austríaca, no meu colo, vou fazer o bisneto ou bisneta dormir.

Um frio me percorre a coluna: e se acontecer como ocorreu com meu filho mais velho? Durante mais de dois anos cantei para ele dormir, balançando, balançando, até que um dia, quando ele já falava, me atirou um balde de água fria: pára de canta que eu piciso dumi. Não! Ele, o bisneto ou bisneta, não vai ser cruel assim e vai permitir que eu rompa o silêncio de décadas a que me obriguei, a partir da frase cruel, com pelo medo de ser de alertada pelos outros filhos e netas de que eu era um estorvo ao sono. Vou cantar e muito. E ele ou ela vai amar e pedir: canta mais, Bisa. Logo no início vai pedir com os olhos e com aqueles barulhinhos e grunhidos que só os recém nascidos sabem fazer. Depois vai mesmo falar. E a sensação de eternidade de novo vai tomar conta de tudo.

Pode sorte maior? Corro para o espelho. Estou com cara de bisavó? Como é cara de bisavó? Deve ter uma adequada. Vou ter que descobrir assim, apenas vivendo, como ocorreu com cara de mãe e cara de avó. Volto à cantoria. O silêncio de muitos anos a que fui obrigada vai ter fim. Será que ainda me lembro da cantoria de Vovô de Uva, de Minvó (minha adorada avó)? Será? E lá de longe, bem baixinho, escuto as vozes trêmulas do velho bisavô e da velha avó. Nossa! Eles modificaram a letra para meu uso!

Tutú carneiro não pega essa menina
Essa menina é muito linda, Tutú Carneiro
Não pega ela não, Tutú Carneiro
Que ela é minha bisnetinha, Tutú Carneiro...

E sorrindo para a lembrança deles eu digo: vocês sabiam que isto ia acontecer! Por que nunca me disseram?

2010

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