O
dia-a-dia sempre foi minha meta e neste um depois do outro os desejos e
pensamentos sempre foram ligados ao imediato. Como eu gostaria de ter sido eu a
dizer a frase genial de Paulinho da Viola que tanto me descreve: “Meu tempo é hoje. Eu não vivo no passado. O
passado vive em mim”. E agora, de repente, o imediato se reveste de
solenidade e importância enormes: bisavoíce! Invento a palavra como invento a
vida. E é então que me volto para o passado. Mais precisamente para 1951.
Jovem,
muito jovem escuto a voz do médico: você
está grávida. Grávida?! Como?! O médico ri do “como”. Não entende. Mas a
palavra se justificava, sim. Havia quase dois anos que eu, apenas saída da
adolescência, estava brincando de ser casada. A brincadeira de ser mãe ainda
não havia me ocorrido. A surpresa misturou-se ao medo. Seria eu capaz? Desse
negócio de ser mãe eu só sabia o “desdobrar fibra por fibra” do poema e isto
era assustador.
Em
nada ajudou a reação de meu marido quando, com um ar culpado, dei a notícia:
ele claramente demonstrou o medo que eu tentava esconder. Mas fazer o quê? O
jeito foi enfrentar decidindo num ato de coragem ter meu filho em Natal quando
todas as outras jovens senhoras de oficiais da base aérea, também grávidas (e
eram em grande número), se mandavam para perto da família, no sul.
Meses
depois chega a hora e eu, agora já animadíssima, acordo meu marido na
madrugada. Consigo rir quando escuto um “dorme
que passa” em voz sonolenta. Finalmente acordado nos metemos no Fiat Pulga,
onde eu entrava com certa dificuldade e partimos rumo à maternidade Januário
Cicco. Poucas horas depois o milagre: meu filho lindo que pelas fotos que vejo
agora era muito feio. A partir daí acho que dei conta. Não só dele, mas dos
outros dois que vieram depois.
E
tome passar de tempo. Até o dia em que minha filha me participa que vou ser
avó. De novo uma coisa nova. Muito nova. Chegado o dia a ansiedade foi tanta
que cheguei ao hospital antes da filha e do genro. Por um vidro vi minha
primeira neta. Fiquei tão grata ao meu genro! Tinha um quê de mais milagre do
que os filhos. Uma sensação de eternidade. Logo eu que não acredito nela. Mas
um dia, naquele momento, ficou claro, aquele ser tão pequeno seria uma mulher
de minha idade vendo o neto ou neta nascer. E mesmo eu não estando lá de carne
e osso, dentro da figurinha um dos vinte e cinco milhões de genes que a formarão,
maroto, dirá para outro: eu venho da
bitataravó! É eternidade ou não é?
Com
o passar do tempo mais duas netas vieram. Extremamente competentes como netas e
como gente. Duas já adultas e uma adolescente fazem minha vida mais bonita. E
agora esta notícia: vou ser bisavó! Incrível! Como é que tanto tempo passou e
eu não percebi? Estou velha? Muito velha? Meu bisavô, o único que conheci, era
muito velho. Vovô de Uva ou Vovô de Barba, eu o chamava. Minha bisneta ou meu
bisneto vai me chamar de Bisa.
A
primeira providência que tomei depois que me foi dada a notícia (seguida da
compra de rolos e rolos de lã e linha para começar a tricotar furiosamente) foi
declarar que esta denominação é exclusivamente minha e que os quatro (!)
bisavós do outro lado terão que criar outra para eles. Um exagero de bisavós
terá esta criança. As agulhas de tricô batem uma na outra e eu sonho: numa
cadeira de balanço austríaca, no meu colo, vou fazer o bisneto ou bisneta
dormir.
Um
frio me percorre a coluna: e se acontecer como ocorreu com meu filho mais
velho? Durante mais de dois anos cantei para ele dormir, balançando,
balançando, até que um dia, quando ele já falava, me atirou um balde de água
fria: pára de canta que eu piciso dumi. Não!
Ele, o bisneto ou bisneta, não vai ser cruel assim e vai permitir que eu rompa
o silêncio de décadas a que me obriguei, a partir da frase cruel, com pelo medo
de ser de alertada pelos outros filhos e netas de que eu era um estorvo ao
sono. Vou cantar e muito. E ele ou ela vai amar e pedir: canta mais, Bisa. Logo no início vai pedir com os olhos e com
aqueles barulhinhos e grunhidos que só os recém nascidos sabem fazer. Depois vai
mesmo falar. E a sensação de eternidade de novo vai tomar conta de tudo.
Pode
sorte maior? Corro para o espelho. Estou com cara de bisavó? Como é cara de
bisavó? Deve ter uma adequada. Vou ter que descobrir assim, apenas vivendo,
como ocorreu com cara de mãe e cara de avó. Volto à cantoria. O silêncio de
muitos anos a que fui obrigada vai ter fim. Será que ainda me lembro da
cantoria de Vovô de Uva, de Minvó (minha adorada avó)? Será? E lá de longe, bem
baixinho, escuto as vozes trêmulas do velho bisavô e da velha avó. Nossa! Eles
modificaram a letra para meu uso!
Tutú carneiro não pega essa menina
Essa menina é muito linda, Tutú Carneiro
Não pega ela não, Tutú Carneiro
Que ela é minha bisnetinha, Tutú Carneiro...
E
sorrindo para a lembrança deles eu digo: vocês
sabiam que isto ia acontecer! Por que nunca me disseram?
2010
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