Era
um dia como os outros. Nem mesmo o vento parecia diferente. O acordar veio,
como sempre, lento, duvidoso. Engraçada essa sensação de quase incômodo no
acordar. A cama perde o conforto encontrado na noite. Os barulhos - tão
conhecidos - já não embalam o sono. Ao contrário, perturbam, fazendo com que se
queira sair dali para encontrar alguma coisa. Sabe-se lá que coisa... Sabe-se
lá... Uma coisa, apenas.
Levanta-se
em busca disso que não sabe o que é. Gostaria de ter uma rotina para cumprir.
Não tem. Nunca teve. Nunca conseguiu. A bem da verdade nunca tentou. Não
saberia como. Mas deve ser bom conseguir essa ordenação lógica dos passos. Lá
isso deve. Mesmo quando trabalhava - e olha que tinha horário para entrar e
tudo mais - não conseguia. Não que chegasse atrasada. Era irregular apenas. Uma
descoberta se faz: ela é irregular em tudo. Quem sabe irregularidade é seu
traço marcante... Bem que podia... As pessoas - as outras - têm traços
marcantes. Ela nunca se sentiu marcada por um. Sempre pulou de um traço para
outro, vai ver na busca de construir uma linha completa com uma seta na ponta:
um norte com cara de Norte. "Deve de ter", como dizia uma das muitas
empregadas, perdida no tempo.
É...
”deve de ter”, pensa ela distraída enquanto coloca água no fogo para fazer
café. Droga! O filtro está vazio. Coisa esquisita essa do filtro estar sempre
vazio. Aliás, as coisas têm esta mania de esvaziar assim sem aviso. As garrafas
na geladeira então... Corre para a geladeira. Confere. Estão todas
completamente vazias. Abre a torneira do filtro. Vai levar horas para encher: a
vela deve estar suja. Há quanto tempo não... ? Deixa pra lá! Agora tem que se
decidir. Lógica. É preciso ser lógica. Droga! Afinal lógica sempre foi seu
instrumento de trabalho. Tem que usar. Vejamos. Duas alternativas: arrumar a
cama ou regar as plantas. Franze a testa com força. Decide-se! Melhor ver se
chegou algum "e-mail".
Entra
no escritório. Puxa, que cheiro de cigarro! Abre a janela pensando que cigarro
não deveria ter cheiro. Sem cheiro não haveria culpa. Adora fumar. Liga o
computador e fica olhando para a tela, abestada. Não lembra do que foi fazer
ali... Ah, sim... a caixa postal. São três os mails. Um não interessa. Dois lhe
trazem amigos distantes. Responder. Responder já e fingir que estão perto.
Falando (no caso escrevendo) assim desordenada, pulando de um assunto para o
outro, mal escutando (no caso, lendo) o que dizem. De repente se dá conta de
que está ali há horas. Tem as plantas... o quarto desarrumado... o café...
É!
Melhor tomar um café antes. Deixa o computador ligado, computando sozinho
desenhos que dançam na tela. Na cozinha: catástrofe! A panela esquecida no fogo
apresenta uma bela cor púrpura, sinal do incêndio iminente que a água que
transbordou do filtro não vai conseguir apagar. É a terceira panela que se vai
assim. Desliga o fogo e joga a panela na pia. Abre a torneira em cima e uma
nuvem de fumaça queima seu rosto enquanto a água que escorre pelo chão, gela
seus pés. Maldita faxineira. Escondeu o rodo. Ela esconde tudo.
Que
vontade de tomar café! Patina na cozinha e na área abrindo portas e armários em
busca do rodo. Deixa pra lá. Esta porcaria acaba secando. Ou evapora ou vai
pelo ralo. Água sempre desaparece mesmo. Ela é que não vai continuar procurando
rodo nenhum. Tem mais o que fazer... Rememora na ordem: café, encher garrafas,
arrumar a cama, regar plantas. Ufa! É isso. Se fosse honesta, mas honesta
mesmo, adicionaria "secar cozinha". Mas não é. É mesmo tão desonesta
que elimina as plantas e a cama. Das garrafas nem se lembra. Tudo pode ser
feito mais tarde. Concentra-se no café e resolve tomar mate gelado. Pronto: não
tem mais nada para fazer.
Passa
pelo escritório e vê o computador computando a tela colorida. Num primeiro
movimento vai desligar e depois se lembra do que dizia aos estagiários: se você
vai usar daqui a pouco, deixa ligado. É melhor. Não que exista algum motivo
para que ela o use daqui a pouco. Mas nunca se sabe. O telefone toca! A neta pergunta: tá ocupada, vó? Deixa-se cair gostosamente na poltrona antegozando
a conversa: Estou, minha querida! Ocupadíssima!... Mas pra você sempre arranjo
um tempinho!
2005
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