Elas
são amigas de infância. O que é no mínimo estranho porque uma já com o pé na
privilegiada terceira idade, poderia ser mãe da outra. Não de menos, e não
abrem mão disto, são amigas de infância. E, por que o são, são também íntimas.
A intimidade vem, sobretudo, de uma visão parelha das coisas e da vida. Uma
cumplicidade, sabe? Incondicional. Pelo menos era o que uma delas assim
pensava. Mas... a noite já ia alta. O marido da amiga de infância mais moça,
depois de cochilar, bocejar e espreguiçar-se numa desnecessária demonstração de
que estava com sono, foi dormir. E as duas ali ficaram a sós com uma garrafa de
uísque. Rola assunto. Falaram de tudo e aí veio o silêncio. Aquele não
constrangedor que só é permitido a uns poucos privilegiados. De repente a mais moça
explode, irritada e até agressiva, verbalizando o que lhe ia n’alma, fazia tempo: caramba!
Você nunca me deu detalhes de sua vida amorosa. Sei apenas nomes. Vagas
referências. Isto é uma
deslealdade. A que podia ser mãe, do alto de sua dignidade responde: não há nada
para contar. O que passou, passou. Um riso maldoso veio em resposta: que droga
de frase mais cafona! Adoça o tom: conta, vai... Tempos depois iria se espantar
de ter embarcado no pedido, mas o fato é que naquela noite o fez, em ordem
cronológica, buscando referências lá, muito atrás, muito lá longe. Logo ela que
não era de voltar ao passado. Com o dedo indicador da mão direita abaixou o
mínimo da esquerda: primeiro foi... Sorriu internamente: seria uma enumeração.
Encantada percebeu que podia fazer uma enumeração! Iniciou mansa, apenas
relatando, sem adjetivos, agarrando-se aos substantivos para fugir da emoção.
Mas ao abaixar o dedo médio da mão esquerda com o indicador da direita,
murmurando: o terceiro..., perdeu o pé e pensou: que pessoa interessante era
eu! Muito adiante de meu tempo. Mais uma dose de uísque e o terceiro
transformou-se num tórrido romance. Ai desembalou: perdeu-se numa torrente
adjetivada, cada vez mais deslumbrada, no embalo de seus amores pregressos que
vistos de longe estavam parecendo muito emocionantes. Lindos e, sobretudo, audaciosos.
Devia ter olhado a expressão do rosto da outra que ouvia em silêncio. Devia.
Mas não fez isto. Ao contrário, seu olhar pousava em rostos perdidos no tempo,
embelezados pela memória. Até mesmo no rosto dela, nas muitas idades.
Desavergonhadamente achou-se bela, arrebatadora, charmosa. Ao abaixar do último
dedo, respirou fundo. Olha para amiga de infância, sorrindo, doce, aguardando,
os comentários que viriam. Num tom de terrível descaso a amiga desmoronou seu
mundo com apenas três sílabas: só isso?! Estarrecida, revoltada e magoada, em
silencio escutou o que se seguiu a estas palavrinhas terríveis, tendo como trilha
musical o apito de um segurança que, na madrugada, percorria a rua: você não
viveu! Não passou por nada! Que coisa mais chocha. Mais sem graça. Sabe o que
mais? Você tem que tomar uma providência. Ainda é tempo de viver um desatino!
Ousar perigosamente! E, num tom que não admitia réplicas: você vai descer
agora, vai abordar este guarda noturno que está apitando e vai levá-lo para sua
casa. Isto sim! Será uma aventura digna e capaz de remendar esta sua triste e
pobre história. Sem dizer uma única palavra ela se levanta,
digna e indignada, e sai batendo a porta. Desabalada acelera o carro, descendo a rua Jardim
Botânico, em busca do Humaitá e pensando: louca! Ela é louca! Em casa procura
acalmar-se. Não vai conseguir dormir depois do desmantelamento de seu passado
amoroso. Tão bonito era! Que droga! O telefone toca: num murmúrio vem a voz
assustada: ele está aí? Meu Deus! O que foi que eu fiz! Pode te acontecer
alguma coisa. Fala! Um sorriso perverso ilumina seu rosto e doce, ela murmura: não
vai acontecer nada. Ele... é maravilhoso. Não posso falar agora, ele... Desliga o telefone e deixa-o fora do
gancho. Vai para cozinha e faz um sanduíche de salaminho que come vorazmente,
olhos grudados num filme antigo, tão antigo, que havia visto, décadas atrás, de
mãos dadas com o “terceiro”.
2005