terça-feira, julho 30, 2013

CONFLITO DE GERAÇÕES ENTRE AMIGAS DE INFÂNCIA

Elas são amigas de infância. O que é no mínimo estranho porque uma já com o pé na privilegiada terceira idade, poderia ser mãe da outra. Não de menos, e não abrem mão disto, são amigas de infância. E, por que o são, são também íntimas. A intimidade vem, sobretudo, de uma visão parelha das coisas e da vida. Uma cumplicidade, sabe? Incondicional. Pelo menos era o que uma delas assim pensava. Mas... a noite já ia alta. O marido da amiga de infância mais moça, depois de cochilar, bocejar e espreguiçar-se numa desnecessária demonstração de que estava com sono, foi dormir. E as duas ali ficaram a sós com uma garrafa de uísque. Rola assunto. Falaram de tudo e aí veio o silêncio. Aquele não constrangedor que só é permitido a uns poucos privilegiados. De repente a mais moça explode, irritada e até agressiva, verbalizando o que lhe ia n’alma, fazia tempo: caramba! Você nunca me deu detalhes de sua vida amorosa. Sei apenas nomes. Vagas referências. Isto é uma deslealdade. A que podia ser mãe, do alto de sua dignidade responde: não há nada para contar. O que passou, passou. Um riso maldoso veio em resposta: que droga de frase mais cafona! Adoça o tom: conta, vai... Tempos depois iria se espantar de ter embarcado no pedido, mas o fato é que naquela noite o fez, em ordem cronológica, buscando referências lá, muito atrás, muito lá longe. Logo ela que não era de voltar ao passado. Com o dedo indicador da mão direita abaixou o mínimo da esquerda: primeiro foi... Sorriu internamente: seria uma enumeração. Encantada percebeu que podia fazer uma enumeração! Iniciou mansa, apenas relatando, sem adjetivos, agarrando-se aos substantivos para fugir da emoção. Mas ao abaixar o dedo médio da mão esquerda com o indicador da direita, murmurando: o terceiro..., perdeu o pé e pensou: que pessoa interessante era eu! Muito adiante de meu tempo. Mais uma dose de uísque e o terceiro transformou-se num tórrido romance. Ai desembalou: perdeu-se numa torrente adjetivada, cada vez mais deslumbrada, no embalo de seus amores pregressos que vistos de longe estavam parecendo muito emocionantes. Lindos e, sobretudo, audaciosos. Devia ter olhado a expressão do rosto da outra que ouvia em silêncio. Devia. Mas não fez isto. Ao contrário, seu olhar pousava em rostos perdidos no tempo, embelezados pela memória. Até mesmo no rosto dela, nas muitas idades. Desavergonhadamente achou-se bela, arrebatadora, charmosa. Ao abaixar do último dedo, respirou fundo. Olha para amiga de infância, sorrindo, doce, aguardando, os comentários que viriam. Num tom de terrível descaso a amiga desmoronou seu mundo com apenas três sílabas: só isso?! Estarrecida, revoltada e magoada, em silencio escutou o que se seguiu a estas palavrinhas terríveis, tendo como trilha musical o apito de um segurança que, na madrugada, percorria a rua: você não viveu! Não passou por nada! Que coisa mais chocha. Mais sem graça. Sabe o que mais? Você tem que tomar uma providência. Ainda é tempo de viver um desatino! Ousar perigosamente! E, num tom que não admitia réplicas: você vai descer agora, vai abordar este guarda noturno que está apitando e vai levá-lo para sua casa. Isto sim! Será uma aventura digna e capaz de remendar esta sua triste e pobre história. Sem dizer uma única palavra ela se levanta, digna e indignada, e sai batendo a porta. Desabalada acelera o carro, descendo a rua Jardim Botânico, em busca do Humaitá e pensando: louca! Ela é louca! Em casa procura acalmar-se. Não vai conseguir dormir depois do desmantelamento de seu passado amoroso. Tão bonito era! Que droga! O telefone toca: num murmúrio vem a voz assustada: ele está aí? Meu Deus! O que foi que eu fiz! Pode te acontecer alguma coisa. Fala! Um sorriso perverso ilumina seu rosto e doce, ela murmura: não vai acontecer nada. Ele... é maravilhoso. Não posso falar agora, ele... Desliga o telefone e deixa-o fora do gancho. Vai para cozinha e faz um sanduíche de salaminho que come vorazmente, olhos grudados num filme antigo, tão antigo, que havia visto, décadas atrás, de mãos dadas com o “terceiro”. 


2005

IRREMEDIAVELMENTE AMIGOS

Eram amigos desde sei lá quando. Parelhos em idade, ele três anos mais velho. Um belo homem. Ela não era uma bela mulher, mas agia como se fosse e isto convencia a todos de que o era. Naquela época estava ela nos primeiros anos dos cinqüenta, ainda trabalhando na mesma empresa em que durante tantos anos, empenharam-se juntos em inúmeros projetos. Ele, não mais. A cátedra de professor numa universidade rural havia criado uma distância complicada de se dar jeito, já que ele resolveu morar por lá.  E como os dois detestavam falar ao telefone, a conversa de todo sempre havia ficado difícil. Conversa infindável, esta. Falavam de tudo: da vida, do trabalho, dos filhos, dos companheiros, e que o que mais viesse. Mas, sobretudo, era no assunto “trabalho” que mais se encontravam. Formavam um time perfeito, azeitado, mesmo nas discordâncias que quando surgiam sempre resultavam num avanço pelo convencimento de um ou do outro que passava a remar junto. A ela fez uma enorme falta quando se foi para outras paragens. Eles se entendiam pelo olhar. Entusiasmavam-se tanto que quando iniciavam um novo projeto ficavam envolvidos dias após dia, entrando noite adentro no terreno das idéias, das descobertas, de soluções novas. Por vezes, numa coincidência incrível o Eureka vinha em uníssono. Custou a engrenar com outros parceiros. Numa bela tarde de maio ele a surpreendeu aparecendo em seu  trabalho. Estava morrendo de saudades, disse. Foi uma festa. Coisa tão boa vê-lo. Tinham tanto assunto para por em dia! Em linhas gerais até que ela sabia do que andara acontecendo: o terceiro casamento dele tinha ido pro brejo. Assim como o dela. Engraçado. Era a primeira vez que ambos estavam solteiros ao mesmo tempo. Sempre havia sido uma gangorra. Ele casava; ela descasava. Ela casava; ele descasava. Em todas estas idas e vindas, haviam ficado amigos também do cônjuge do outro que com o descasamento desaparecia das vidas... dos dois. E era assim que, a seu turno, eles tomavam a posição de terceira pessoa sempre presente junto ao casal que estivesse estável no momento. No dia em que ele apareceu, assim de surpresa, ela estava sem carro. O dela tinha dado um treco (para ela, carros não davam defeitos, davam trecos). Felicitou-se. Assim poderia pegar uma carona, esticando a conversa e quem sabe até esticando a esticada, num jantar. O carro deslizava pelo aterro do Flamengo ao som de uma música que ambos curtiam. E ele falou: lembra? O pôr-do-sol estava deslumbrante. Tudo tão bom. Tão bonito. E ela comentou: quando o dia começou não se anunciava tão perfeito. Ele sorriu: perfeita é você! Puxa, mulher, que saudade! Do lado de cá também, ela declarou. Ele, por segundos, desviou os olhos e olhou para ela. Parecia emocionado. Não, não era bem isto, era outra coisa. “Outra coisa” que começou a dar nela também. Cruzes, ela pensou, não pode ser. Que absurdo! E ele respondeu a seu pensamento, como sempre fazia e perguntou: absurdo por que? Ora - ela respondeu aflita – você nunca sentiu isso... Ele interrompeu: isso que você está sentindo agora... também? Ela emudeceu numa emoção adolescente. Meu Deus! A mão direita, firme, deixa o volante e se apossa da mão dela. Mágica! Pura mágica! Ele também emudeceu. Aumentou o som e a velocidade do carro que naquele dia lindo dirigiu-se à Copacabana. Daí Ipanema e Leblon se seguiram lindos, lindos. A chegada à Barra foi uma emoção só. Até a entrada no Motel foi fantástica. E foi ai que bateu nela o nervoso! Pode isto?! Tenho que falar alguma coisa. Qualquer coisa. Este silêncio está me deixando aflita demais. Naturalidade. É isto! Tenho que ser natural. E foi assim que ao entrarem no quarto ela perguntou: você conseguiu emplacar aquele projeto? Os olhos dele brilharam: e como! Vou mostrar a você.  Abre a pasta que havia trazido consigo e dela tira um calhamaço de papeis. No início em pé, ao lado da mesa de entrada, ele começa a explanação. Ela não se lembra do momento em que se sentaram e começaram a discutir sobre um ponto sobre o qual não concordavam. Lembra-se apenas que subitamente ele disse: estou morto de fome. Vamos pedir alguma coisa para comer? Ela apenas acenou com a cabeça. Estava concentrada tentando achar argumentos que sustentassem seu ponto de vista. Jantaram ainda discutindo. Afastaram os pratos e continuaram a discussão. Muito tempo depois foram interrompidos pelo som do telefone. Ele foi atender e voltou informando espantado: perguntaram se vamos ficar a noite toda! Ambos olharam para os respectivos relógios... e foram acometidos de um riso incontrolável. Sem a música e sem o belo pôr-do-sol, o projeto falara mais alto. Já voltando, na altura de Ipanema, ele comentou: jantarzinho caro, este, né? 

2005

segunda-feira, julho 29, 2013

VERLAINE NO HUMAITÁ

“Il pleure dans mon coeur comme il pleut sur la ville”, ela pensa. Será que  Verlaine o haveria escrito se, numa manhã de chuva, olhasse para o mico que se equilibra no galho da mangueira? Não, provavelmente não estaria triste assim. Não poderia. A chuva que cai inesperada deixando as folhas da mangueira luzindo de tão molhadas iria inundar seu coração de alegria como faz com o dela, dia amanhecendo. Não só o coração dela, mas também o do mico que a observa com os olhinhos pedintes, esperando que este olhar tenha o efeito desejado: a banana nossa de cada dia.  Ele também parece curtir a chuva que lhe gruda o pelo ao corpo, tornando-o ainda menor do que é. Parece que na cidade só os dois estão acordados: o mico e ela. O galho da mangueira onde está encarapitado quase entra pela janela. Outro dia o porteiro comentou: precisa cortar. Precisa coisa nenhuma! Deixe que entre. Sua relação com a mangueira é longa. Intima. Diária. Como negar-lhe a entrada em casa? A relação com o mico é mais recente. Melhor seria dizer ‘’os micos’’. São muitos. Mas hoje somente este. Vai ver os outros estão dormindo e este, como ela, tem esta mania maluca de ver o sol nascer. Informa ao mico: “Verlaine ficou triste com a chuva”. Os olhinhos se apertam e ele faz cara de quem não está entendendo. “Era um poeta francês, sabe?” Pela expressão, ele parece saber o que é um poeta. Mas francês não está fazendo lá muito sentido. Pudera! Na França não tem mico! A banana transpõe a janela. Ele acomoda-se no galho, comendo e dando sinais de querer continuar a conversa. Vai ver gosta de poesia. Ela sempre desconfiou que quando não está, eles – os micos – entram escritório adentro. Mais de uma vez encontrou indícios. Sobretudo pelos livros que aparecem, misteriosamente, no chão. Não se deu conta se eram de poesia. Vai ver eram. “Bom, se vocês andam mexendo mesmo, você pode ler o poema inteiro e dar uma olhada na Larousse para entender o que é francês. O poema é bonito, sabe? Bonito e triste. Muito triste”. Triste também é a expressão do animalzinho. Será pela banana que acabou ou pelo poema? Vai outra banana. É... o fim da banana era a causa da tristeza: a carinha reluz de alegria. Saciada a gulodice, o olhar interroga e ela responde: “não existiam não! Ou pelo menos era difícil conseguir bananas em Paris, naquela época”. Um brilho de compreensão e nova indagação iluminam os olhinhos curiosos. “Não! Também, não! Não era por não ter bananas que ele estava triste. Ele era triste, mesmo. Sempre. O que? Eu sei que isto não se deve ser. Fazer o que? Os poetas às vezes, são. O mico reage negativamente: “Ah... você não é poeta”! Não imaginei que fosse. Um mico poeta não seria razoável. Tá legal. Admito que também não é razoável estar conversando com você sobre Verlaine. Mas é que dei pra isto agora. Falo com as coisas (ah ! desculpa!) com os entes os mais disparatados. Você nem imagina as conversas que tenho com a samambaia da sala. Ora, sei lá eu por que! Não sou muito de analisar os porquês. Mas eu estava falando era de Verlaine: um dia vou ler para você algumas poesias dele. Claro, vou traduzir. Sempre traduzo poesias. Não de um idioma para outro, é verdade. Traduzo pra mim procurando nelas, o meu sentido. Em Verlaine não me encontro muito, é verdade, mas acho tão bonito. Madame Jacobina me apresentou. No Bennett e no Andrews. "Anne Marie! Allez au bureaux de D. Iracemá, avec zero!" Eu era um tanto endemoniada, sabe ? Mas adorava quando as aulas eram sobre poetas e quando ela não gritava: "La liaison, ma petite. Voyons!" Sei que você não entendeu. Mas não interessa, não. São só coisas lá da lembrança. Só interessam a mim mesma. Não sei o que foi feito dela. Da Madame. Claro que deve ter morrido. Mas tá vivendo agora na minha memória. Como eu vou viver um dia pra você. Você vai ler Verlaine ou quem sabe num dia chuvoso, vai lembrar-se de mim, né? Legal isto. Mais banana?! Olha que você vai passar mal. E eu não sei tratar de dor de barriga de mico. Tá legal. Só mais uma e por hoje chega. Olha! A chuva parou! Claro, deve ter parado para Verlaine também, em algum momento. Mas acho que não adiantou. Poetas são bambas em fazer o sentimento perdurar. A chuva lá dentro dele continuou caindo, triste, muito triste. É... é dose. Mas é bonito. O quê ? Existem sim outros poetas. Muitos outros. Lembrei de Verlaine por causa da chuva. Sempre me lembro dele quando chove. E aqui no Humaitá, chove muito, você já reparou? Não, meu caro! Verlaine não conheceu o Humaitá! Desconfio que nem sabia do Brasil. Mas hoje, meu querido, ele está aqui”. 

2005

domingo, julho 28, 2013

ROTA DE COLISÃO

Em  rota de colisão, o velocípede aproxima-se rápido. Ela dá um pulo para traz e o veículo passa raspando. O menino freia abrupto. Objetivo não atingido ele grita raivoso: se você não pulasse eu te pegava! Toda semana a cena se repete: a saída para a fisioterapia coincide com o treino do piloto, nos pilotis do prédio. A relação dos dois, da velha e do menino, é um misto de amor e ódio. Adoram-se e agridem-se, faz tempo. Um terço da vidinha dele foi ocupado pela atividade semanal de tentar derrubá-la, sob os olhar distraído da mãe que conversa com as outras, no banco do jardim. Ela provoca: você nunca vai me pegar! A afirmação intensifica a raiva. Muita raiva. Quando eu ficar grande vou pegar você com carro. Com um caminhão. Você vai ver!  Muda o tom como só as crianças sabem fazer: "eu tenho um caminhão que tem dentro um balde e uma porção de coisas para brincar na praia".  Ela sorri: "quando eu era pequena tinha um caminhão assim". Os olhos do menino demonstram espanto: "você era pequena?" Custa a responder: já faz tanto tempo que ela mesma duvida. O menino insiste noutra direção: "você é pouco velha ou muito velha?"  Entre as duas opções decide-se pela menos traumática: "pouco velha". O tom vem carregado de censura: "você tá dizendo mentira. Minha mãe disse que você é muito velha." Minha mãe dá um pulo do banco: "Ricardinho! Mamãe nunca disse isso!" Volta-se para ela: "essas crianças! A senhora desculpe, não sei de onde ele tirou isto!" Ricardinho reafirma: "ela é muito velha, sim! Você falou pro Papai. Você até falou...". Ricardinho é arrancado do velocípede, e minha mãe some com ele em direção ao elevador, deixando o veículo abandonado. Ela fica matutando, curiosa pela frase sem fim: papai até falou... O que seria? Vai pela rua pensando: coitada de minha mãe, mas ela deveria ter deixado o menino contar. Hoje em dia as informações, preciosas, sobre seu envelhecimento, são sempre fornecidas por outros. Ela mesma não tem muitas referências. Quer dizer, não sente nada muito diferente digamos, nos dez últimos anos. Existiram muito “turnning points” e, acredita e espera, existirão outros. Mas vieram ao longo da vida inteira. Há 10 anos atrás foi a aposentadoria. Este foi um dos mais notáveis. Claro que ligado à idade, em termos legais. Mas para ela havia sido outro recomeço. Mudou tudo. E, muito mais importante que os cabelos brancos foi o cartão de visitas: Consultora! Os cartões de visita sempre haviam sido fornecidos pela empresa e - é justo - o destaque era para o logotipo e o nome da dita. O nome dela mesma era apenas uma informação que a colocava entre centenas. Centenas, sim! Era uma grande empresa! Depois da aposentadoria adquiriu direito ao título que lhe valia o destaque do nome. Foi legal! Sem o respaldo da empresa, era ela a única responsável pelos erros e acertos profissionais. Sentiu o peso, mas gostou. O que não havia sequer imaginado é que havia se transformado num dinossauro causando estranheza nas reuniões em que aparecia pela primeira vez. Velocípedes pilotados por jovens executivos e colegas de profissão passariam a tentar derrubá-la de várias formas: algumas polidas e até carinhosas. Manifestavam-se por um sorriso tolerante que lhes emoldurava o olhar, significando: vamos escutar com paciência o que esta velha tem a dizer; outras, agressivas na menção de alguma tecnologia nova que – imaginavam - não seria por ela sequer conhecida.  Verdadeiramente um saco! Viu-se em situações que o próprio Deus, com um gancho teria dificuldade em resolver. Não sabe de onde tirou esta expressão. Mas Deus, que já pode tudo, com um gancho, fica imbatível, não é? Mas o fato é que deu conta. É... foi um senhor “turning point”.  E, agora, minha mãe disse alguma coisa pro papai. O que seria? Resolve deixar pra lá. Nunca vai saber. Os velocípedes do casal partiram para uma colisão virtual. E destas, não há como escapar. O melhor que pode fazer é se manter ágil para desviar da sólida rota de Ricardinho. Se ele consegue atingir o alvo pode fazer um belo estrago e não vai haver fisioterapia que dê jeito. 

2005





sábado, julho 27, 2013

CASA VAZIA

Olha! Presta atenção! Uma nota blue! Ela fala sorrindo para o Homem. Ele não responde. Nunca responde. Mas sorri. Mas ela, como sempre, percebe que ele escutou. A poltrona onde ela o vê havia sido comprada depois, muito depois que ele se foi. Mas, tem certeza: ele havia gostar sentar-se nela, ao lado do som, ouvindo atento a harmonia requintada de Joe Pass. Ele e os outros. Quer dizer, alguns não escolheriam aquela. Iriam preferir o sofá ou, quem sabe até, iriam sentar-se em uma das cadeiras da mesa de jantar, espalhando jornais. Ou, ainda, disputariam com ela a espreguiçadeira. O Pai, com certeza faria isto. Iria usar da prerrogativa de mais velho. Logo ele. Tão moço. Muito mais moço que ela é agora. São tantos os que se foram. Foi triste, tão triste, quando aconteceu. Depois, foram voltando aos poucos, Assim, sem aviso. E as conversas continuaram do ponto em que haviam parado. E, mais que isso – ela percebia lá no dentro dela, que se interessavam pelo que contava. Vai daí que contava. Nem tudo, pra todos. Para alguns o que tinha para contar nem ia interessar. Então selecionava. Mas às vezes era uma festa porque o acontecimento era tão importante que todos apareciam, distribuindo-se pela sala, atentos ao relato que ela, emocionada, fazia. Foi assim quando nasceu a segunda neta. Contou tudo: desde a hora em que chegou esbaforida, vinda de uma reunião de trabalho, até o momento em a pegou nos braços. Vocês não podem nem imaginar! É linda! Quer dizer é feia como todos os recém-nascidos. Mas é linda! E eu, gente! Sou avó duas vezes.  Pergunta curiosa para a Avó: O que foi que você sentiu quando eu nasci? Claro que ela não respondeu. Nem precisava. Perguntou só por perguntar por que muitas e muitas vezes a Avó contara. O sorriso do Pai é de orgulho. Pudera! Ele sim! Bisavô duas vezes! Naquele dia o Homem ainda não estava. Quer dizer, estava, sim. Ao lado dela. Havia presenciado tudo, junto a ela. Depois, muito depois, quando passou a aparecer como os outros, num sorriso mudo perguntou e ela informou: está com 30 anos! Uma bela moça. É médica. Viu admiração nos olhos dele e ficou orgulhosa da neta. Uma vez ele ficou zangado. Muito zangado. E ela percebeu por que. Sentiu que ele falaria: você desmanchou o meu estúdio. É verdade. Ela havia feito isto. Agora é um quarto de hóspedes, ela respondeu à expressão que viu nos olhos dele, aprendi com você a dar um fim no que teve fim.  Não tinha mais sentido. E eu nunca iria tocar como você. Pra que gravar? Ele se rende e a expressão agora significa: gostaria de dizer o contrário. Mas você nunca vai tocar bem. É verdade ela pensa. Eu nunca fui lá muito boa no violão. Este pensamento o Filho percebe e intervém, mudamente: você teria tocado bem se não fosse tão preguiçosa. Afinal aprendi meus primeiros acordes com você. Curiosa ela pergunta: vocês, por aí, tocam juntos? O Homem e o Filho olham para ela espantados e ela se dá conta: eles não se conheceram. Que coisa! O Pai também tocava violão. Como ela. Assim, descuidadamente. Mas ele não faz qualquer comentário. Está olhando com estranheza para o micro. Ela sorri: como ele ficaria encantado em ter um. Quando se foi, ainda usava régua de cálculo. Até para calcular logaritmo! Não se usa mais isto, não, Pai. A sua, a régua, onde anda? Era linda. Sumiu como tantas outras coisas. Pai, você levou quando foi? O Pai apenas sorri. Mas ela desconfia que sim. Ele não largava aquela régua. Volta-se para o Tio. Ele está de botas de montaria. Hermès. São botas Hermès! Lindo como sempre foi, encarrapitado no braço do sofá, ao lado da irmã, Mãe dela. Eles nem parecem perceber a Avó, que ao lado, lê Proust e que de longe, de muito longe, fala: há que se ter vivido para ler Proust. De hoje ela responde: sabe, vó, eu hoje leio Proust. Estou mais velha do que você, não é incrível?

O telefone toca. É um amigo: vem pra cá. O que é que você está fazendo nesta casa vazia? Ela sorri. Vazia?! Ele não sabe de nada!


2005 

sexta-feira, julho 26, 2013

UM NOVO SENTIDO À VIDA

O celular toca, a neta abre a bolsa e dela retira o objeto de fascinação e desejo: a agenda! Ela nunca teve uma. Pode uma coisa destas? Também, por que teria? Compromissos, para ela, eram coisas tão previsíveis, que seria perda de tempo anotar. Durante anos tudo acontecia em dias certos, sequentes e consequentes  sempre na companhia do marido ou dos filhos, agora acrescidos de noras, genros e netos. Mas a neta, essa sim, era uma profissional de compromissos. Os tinha variados, misteriosos, fascinantes. E como conhecia gente, Meu Deus! Telefone preso entre o ombro e o queixo a neta deixa pequenos papeis espalharam-se pelo chão na abertura daquele objeto incrível. É sempre assim e nunca entendeu por quê. Se a agenda é para anotar, porque as anotações nesses papéis não são transcritas na dita? Nunca perguntou. Vai ver existe uma lógica moderna e atual e ela é que não vai dar atestado de desatualizada. Já chega os que passa sem querer, como outro dia ocorreu ao pedir Antiflogistine na farmácia! Já não se fabrica há mais de 20 anos, disse o surpreso farmacêutico. Observa a neta que escuta o interlocutor, franzindo a testa. Deve ser importante!  Não dá para saber do quê se trata: uma sucessão de “hum” e “sei” e “tá” provocam o passar de páginas, consultas e anotações frenéticas. De repente uma frase: tá difícil de encaixar. Mas acho que dá na terça, às 4 horas. Morre de inveja. Se fosse ela poderia ser qualquer dia a qualquer hora. A neta parte frenética e ela fica matutando. Uma ideia insidiosa começa a martelar: para ter uma agenda basta ir à papelaria. Descarta com vigor a informação de que nada teria para anotar e... parte para ação. Na papelaria, um enorme problema. Estamos em pleno mês de outubro e a mocinha solícita informa: ainda não recebemos. Foi aí, neste exato momento, que ela incorporou a personagem. Num tom firme e nada dela, informa: minha querida. Imagina que transtorno! Perdi a minha, repleta de anotações. Não sei o que vai ser de minha vida daqui pra frente. Pelo menos esta última declaração é verdade! Sabe-se lá o que esta personagem, que acaba de assumir, será capaz de fazer. Agenda desenterrada do depósito, parte célere para casa. Foi-se quase em claro a “noite das anotações”. Preenche cada página com compromissos escalafobéticos, nomes inventados, horários absurdos. Inclui entre as páginas papeis avulsos, de cores e tamanhos diferentes, onde caprichosamente faz anotações, por falta de outras, de nomes de remédios e números de telefone aos quais atribui diferentes DDD e DDI. Até da Polônia! Antes de fechar os olhos, dia quase amanhecendo, no conforto da cama, passa gostosamente as páginas corrigindo anotações, agregando outras e eliminando com um risco algumas. A caneta cai das mãos e ela dorme sorrindo. Acorda de um salto. Olha o relógio, aflita. Está atrasada para o grande evento. Rápida, inicia a produção, criando a indumentária da personagem. Busca no guarda roupas aquele conjunto que nunca usou presente da nora que nunca acerta. Bendita menina. Penitencia-se: tem sido injusta com ela. Vai ter que mudar isto. Olha-se no espelho. Perfeita! Está perfeita! O sapato incomoda um pouco (é aquele que achava alto demais), mas é mais que adequado. Olha o relógio e parte aflita para o palco. A platéia já deve estar presente. Fica em dúvida: Citybank ou Banco do Brasil? Decide-se ao dar o endereço para o táxi: Banco do Brasil. Demanda a porta giratória com um andar que lhe parece ser executivo. A porta giratória emperra. Esqueceu de depositar o celular na entrada (instrumento indispensável à performance que vai ter início). Já dentro, celular na mão, examina o cenário. Respira aliviada. Está tudo como ela imaginou: uma mesa vazia encontra-se bem ao lado da fila de espectadores que já se formou frente aos caixas. Instala-se e parte para a cena 1. Liga para a filha, falando baixinho: meu bem, telefona para o meu celular, já. Acho que está com problema. Desliga e aumenta o som da campainha que soa dando início à cena 2. Olha o visor e faz uma expressão de resignação. Atende falando baixo: obrigada meu bem. Está tudo certo. Desliga, num movimento disfarçado, liga novamente para evitar qualquer chamada da filha que não deve ter entendido o abrupto desligamento. Continua falando, agora alto: sim, Medeiros? Finge ouvir. Prende o telefone entre o ombro e o queixo e tira a agenda da bolsa! Inicia-se a cena 3: começa a virar as páginas, numa busca frenética, enquanto os pequenos papeis avulsos caem sobre o chão. Profere vários “hum”, “sei”, “tá”, coroados por um enfático “não!” e olha disfarçadamente para os espectadores. Maravilha! Estão fascinados por seu desempenho! Anima-se e rabisca alguma coisa numa das folhas riscando energicamente outra. Sorri resignada e profere a frase milionária: está bom, Medeiros, vou dar um jeito de encaixar você. Amanhã às cinco. Mas olha, só tenho uns vinte minutos! Desliga e simula uma nova ligação: sinto muito, Gonçalves! Vamos ter que atrasar de uns vinte minutos nossa reunião. Escuta ainda rabiscando a agenda. Volta a falar: fique tranqüilo. Vou estar lá. Desliga, faz algumas anotações e curva-se para apanhar os papeis que caíram (aí, minha coluna!), consultando alguns, com expressões diversas. Coloca-os entre as páginas e com um suspiro de alívio recoloca a agenda na bolsa. Sai lépida e feliz pensando: amanhã vou ao Citybank!

2005 



quinta-feira, julho 25, 2013

TUDO QUE SEU MESTRE MANDAR

Bento que bento é o frade, na boca do forno. Forno! Assando um bolo. Bolo! Tudo que seu mestre mandar: “fazeremos todos. Sabe-se lá porquê não lhe sai da cabeça, há dias, a cantilena da brincadeira de seus tempos de criança. A lembrança se faz sólida: a mangueira, os barulhos da casa, a mãe na varanda, o cheiro de café, o domingo amarelo de sol e de fios d’ovos. E lá estão eles, os primos, rodando  em volta do anão do jardim. Ela também está lá, com aquele vestido rosa que a avó bordou em casa de abelha. Chega mesmo a escutar sua voz, em meio a outras, esganiçada, estridente: bento que bento é o frade. O pequeno verso - percebe agora - propõe imensas dúvidas: que frade é esse? Por que raios está assando um bolo? E quem é este mestre de tão imenso poder que “fazeremos” tudo que ele mandar? E o porquê do “fazeremos”?! Coisa esquisita! O pai e a mãe, tão ciosos do bem falar, nunca a haviam corrigido. Ora essa, censura-se: existem coisas mais importantes para pensar. De nada vale! O “fazeremos” reboa em sua cabeça trazendo uma sensação de incômodo que ela não sabe explicar. Desagradável mesmo. Vai ver está ficando esclerosada... Não! Claro que não! Esclerosar é não lembrar... repetir... trocar... Lembrar, assim sem parar, ela não sabe o que é. Uma obsessão, quem sabe. Mas obsessão a gente tem em qualquer idade. Até uma criança pode ser obsessiva. Tem tanta gente obsessiva. O cunhado! Ele é obsessivo! E é muito mais moço do que ela. Aquela mania que tem de fazer com que ela se afogue diariamente em gotas de florais! Que coisa! Mas ela obedece: pinga incessante e engole. Tudo para não desgostar a irmã que mais é uma filha. Pinga zangada, pinga furiosa, pinga revoltada... mas pinga. É um absurdo ficar fazendo o que não quer e... Meu Deus! Como um raio, a terrível revelação! Passou a vida, uma vida inteira, fazendo o que seu mestre mandava! A única imprecisão é o mestre. O correto seria dizer os mestres que começam a desfilar em sua memória: o pai, primeiro deles: tem que ser uma boa menina, tem que ter modos, tem gostar do primo João, da tia Carlota, importa lá se cheira mal! Seguia-se a mãe, uma repetidora da prepotência paterna, num tom mais suave do tem que comer espinafre! Levou anos, mas anos mesmo, para poder, espantada, gostar de espinafre. O “tem que” impossibilitava qualquer prazer. E os professores? Ai, meu Deus, os professores! Tem que deixar uma margem de três centímetros. Bem que dava para deixar quatro, ou dois, ou mesmo, num procedimento revolucionário, não deixar margem alguma! Bem que dava! Lembra-se que ficava olhando, hipnotizada, aquela zona proibida das folhas de papel ao maço. Engraçado... não ouviu mais falar em papel ao maço. Vai ver, tem mais não.  Precisa conferir isso. De uns tempos para cá as coisas que existiam, durante anos, em seu dia-a-dia, deram de sumir. Desaparecem, assim sem mais nem menos e não se fala mais nisso. Será que os netos conhecem papel ao maço? Será que alguém ainda se lembra? A Júlia, talvez. A irmã é apenas um pouco mais moça. Cinco anos, se tanto. Mas está tão acabada... Volta ao papel ao maço e à margem lá dele. Um dia, lembra-se, arriscou e colocou um pontinho na zona proibida. Mínimo. Aquele pontinho foi, na vida, sua única manifestação de vontade. De rebeldia. Pior era o namorado! Esse chegou às raias do absurdo: tem que olhar só pra mim! E os anos passaram, sendo uma boa moça, comendo espinafre, obedecendo às margens da vida e olhando apenas para o namorado, depois noivo, depois marido. É... casou-se com ele. Pudera! Se não olhava para mais ninguém! Depois foram os filhos. Quando o marido morreu um desfilar de “tem ques”, incoerentes, discordantes absurdos, que os filhos, despudorados, discutiam como se ela, presente, fosse incapaz de sequer participar da conversa: ela tem que sair dessa casa!! Tem que coisa nenhuma! Ela tem é que contratar uma acompanhante! Isso sim! Melhor ela ir para um apart-hotel. De jeito nenhum, ela tem que...  “Ela”, era ela! Ali, paradona, besteirona, ouvindo decisões sobre seus dias futuros, esperando apenas o veredicto do filho que proferisse o “tem que” vencedor. Um sentimento novo, desconhecido e extraordinariamente estimulante começa a tomar conta dela. É raiva! Muita raiva! Ela tem que! Já! Agora! Voa para o telefone. Num tom de urgência, com uma voz firme, nunca dela, convoca os filhos, um a um. Venha, já! O ineditismo da convocação e o silêncio com que responde às aflitas indagações, fazem com que venham correndo. E ali estão, distribuídos nas poltronas da sala, entreolhando-se, penalizados e preocupados, pela suspeita que lhes causou a possibilidade da terrível verdade que não verbalizam. Seu olhar percorre os rostos ansiosos e neles vê apenas crianças. Lindas, adoráveis e ingênuas crianças! Se enternece e enxuga uma lágrima. Assustados, eles precipitam-se para ela. Num tom severo, definitivo, exige: fiquem onde estão! Apavorados, eles retornam a seus lugares. Ela respira fundo e dispara o tiro: não me interessa quem é o frade, por que está na boca do forno e muito menos se faz ou não um bolo. Decidi que nunca mais, nunca mais mesmo, “fazerei” nada do que “tem que”, ouviram?! Sorrindo em beatitude, levanta-se e sai lépida da sala, passando a mão leve, tão leve quanto a alma, em cada uma das cabeças estarrecidas.
2005



quarta-feira, julho 24, 2013

SEU TEÓFILO E A CONJUNTURA

Televisão não é minha praia. Nada contra. Nada mesmo. Mas, como a coca-cola, surgiu em minha vida quando outros hábitos e manias já haviam se instalado para ficar. Vai daí que ao invés de, os momentos que sobravam eram ocupados por livros, música, guaraná, teatro e cinema. Ah! O cinema! A mágica da tela grande e do escuro não tem igual. Mas após o advento da aposentadoria e da situação de “nouveau pauvre”, em que esta me colocou, a TV  substituiu com grande perda, o teatro e o cinema. Mesmerizada, frente à telinha, vejo o desfilar de extraordinários personagens que a ficção teria dificuldade em tornar verossímeis. Não creio que exista, na história da dramaturgia, obra que apresente tão extraordinária concentração de personagens desqualificados. Exemplos vivos da mentira, da inveja, da dissimulação, do autoritarismo, do orgulho, do cinismo, do estrelismo, da incompetência e que mais sei eu, exibem-se despidos de qualquer censura. E o mais triste é que se trata de senhores e senhoras responsáveis pela gestão deste País tão belo; pela elaboração de leis e regulamentos que deverão ser seguidos por todos nós; pelo cuidado que deveriam merecer a educação e a saúde; pela segurança do povo e por ai vai. Exceções existem, é claro. Mas são tão poucas! E são estas que me fazem lembrar – e com muita saudade – de Seu Teófilo. Pois foi ele que, falando com sua voz doce e calma, vinda de um passado tão longínquo, conseguiu me orientar neste emaranhado de desvios de caráter e de incompetência.
Seu Teófilo media cerca de um metro e meio e era capataz do sítio de minha ria e madrinha. Com o passar dos anos – acho - a altura já não era mais a mesma. Encolheu. Ou melhor, gastou. Explico: os membros da geração acima da minha gastaram Seu Teófilo de tanto fazê-lo rodar pelo sítio cumprindo as mais diferentes tarefas. Seu Teófilo fazia “de um tudo”. À medida que diminuía, crescíamos nós – as primas e eu - amparadas por aquele homenzinho que parecia ter o dom da onipresença: estava sempre ao lado quando dele precisávamos. Desde que posso me lembrar, Seu Teófilo nos socorria acompanhando a evolução de nossas necessidades através dos tempos: pegava cavalos no pasto quando ainda não o podíamos fazer; arriava a charrete para que fossemos a estação esperar o trem que trazia o Gibi e o Mirim – revistas de quadrinhos indispensáveis à vida; levava bilhetes proibidos e apaixonados para os secretos namorados e nos acompanhava, noite adentro, acalmando-nos no nascimento de um potro. Sempre me pareceu que Seu Teófilo seria capaz de resolver qualquer problema. Pois não foi ele que conseguiu salvar-me de ser lancetada por um dos tios médicos para retirada de um berne? Uma pasta de toucinho e fumo de rolo fez com o que o dito berne procurasse outras paragens saindo sem dor, nem trauma. Sou grata até hoje. Foi também ele que salvou a vida de Ventania, belo alazão, dado como perdido pelo veterinário, ministrando na madrugada garrafadas de ervas misteriosas. “Ele vai aprumá, meninas. Carece chorar, não”. Deitado que estava Ventania levantou-se lépido, depois de uma semana.
Além de tudo isto Seu Teófilo era filósofo. Analfabeto, mas filósofo. Explicava a vida como ninguém. Já adulta uma das primas, aquela que para mim era uma irmã, foi presenteada por um amigo  com uma planta extraordinária. A esta altura, eu ainda era convidada aquele sitio que junto ao de minha avó (que considerava meu) havia iluminado minha infância e adolescência. Heranças e venda sucessivas ocorridas na família havia transformado a prima e irmã em única proprietária. E, sempre que eu por lá ia, admirava o crescer da planta aguardando ansiosa o brotar da flor que só havíamos visto em fotografia. Seu Teófilo já bem velhinho ainda estava por lá, só sendo acionado em assuntos da mais alta gravidade. Numa de minhas idas fomos, minha prima e eu, observar a planta e, apavoradas, vimos que as folhas estavam cobertas de manchas surgidas da noite para o dia. Não estavam lá na véspera, garantiu-me a prima. Em pânico e em uníssono berramos por Seu Teófilo. E ele veio no seu passinho miúdo e calmo. Em silêncio respeitoso observamos o que nos pareceu um ritual: ele delicadamente cortou uma da folhas, olhando-a com extrema severidade; cheirou, franziu a testa e colocou a ponta da língua na mancha, saboreou o gosto e...  abriu um sorriso de desdém. O veredicto veio em tom de reprimenda: Homi, meninas! Isto é da propi planta! Esta desinfeliz nasceu pra sê manchada. Devêra de ser assim mesmo. Se ocês não qué vê mancha ranca ela, ué! E trata de prantá as que não tem precisão de mancha. Tenho é mais o que faze! E se foi, indignado de ter sido perturbado pelo óbvio.
É, Seu Teófilo! As manchas que vejo exibidas nos  personagens de que falei vêem da “propi” planta. O jeito é “rancá” e “prantá” outros.

2005   
  

terça-feira, julho 23, 2013

ACONSELHAMENTO DA VEINHA

Já estávamos nos preparando para partir quando o líder do acampamento aproximou-se. Uma extraordinária modificação havia ocorrido em sua postura, há poucos minutos, orgulhosa e altiva: estava visivelmente constrangido. Era evidente que queria nos dizer alguma coisa, mas as palavras só saíram quando o homem a seu lado lhe mandou um cutucão nas costas. E veio a espantosa declaração, dirigida a meu colega, funcionário do INCRA, velho conhecido de todos por ali: o companheiro aqui quer um aconselhamento da veinha. Falta de outra mulher presente a “veinha” devia ser eu mesma. Mas um aconselhamento?! Logo eu que tenho o maior problema dirigi-los até aos filhos e às netas já adultas. Acho que gastei todos os aconselhamentos possíveis na fase da adolescência dos primeiros. Embatuquei sem saber como responder ao olhar interrogativo de meu colega e me silêncio foi tomado como aquiescência. A um sinal do líder sentamo-nos no chão, à sombra dos buritis, com a seriedade exigida pelas expressões graves e preocupadas dos dois demandantes, e aguardamos o relato do fato que exigia um aconselhamento geriátrico. O cutucão inverteu a direção, provocando a fala do “companheiro”. Devia ter entre 45 e 50 anos. Nunca se sabe naquele agreste. O sol e a vida castigam demais. Poderia até ter menos. Os olhos e a voz eram doces e tristes. Muito tristes. E a história – ai Meu Deus! – mais triste ainda. Esperava-se de mim a solução que muitos homens e mulheres, daqui do nosso lado da vida, buscam em vão. Difícil mesmo! Qualquer que seja a condição social que se tenha. Selmira, sua mulher há 17 anos, o havia traído. E logo com quem: Faustino! Seu compadre! Um horror! E foi então que veio, triste e comovente, o relato do objetivo do aconselhamento: ele não queria, não podia deixá-la. Seria fácil se conseguisse. Nada que uns bons tabefes não resolvessem ao expulsá-la de casa. Mas podia fazer isso, não! Irremediavelmente gostava dela. Gostava demais. Gostava de doer. Exigia – pobre de mim - que a ouvisse, que encontrasse nas palavras dela o argumento que lhe permitiria continuar a sentir o cheiro de seu corpo na rede de todas as noites, sem perder a face. Sem a desmoralização que era certa. Alguma coisa que justificasse, que tornasse aceitável o mal feito e que fizesse com que o respeito com que sempre o trataram não fosse perdido. E para isto minha experiência de vida devia servir. A dona não gostava de em antes de morrê levar este bem-feito pro céu? O argumento foi definitivo. Sentindo-me com o pé à beira do túmulo, prestes a nele mergulhar pra todo sempre, decidi agregar este bem-feito aos poucos outros que juntei pela vida. Nunca se sabe, não é? Não tinha eu, naquele momento, a menor inspiração que me levasse a encontrar as mágicas palavras para transformar Selmira numa convincente Madalena do agreste. Mas a possibilidade do passaporte para o Paraíso haveria de fazer surgir no momento em que abrisse a boca, a sabedoria necessária para tal. Afinal era um bem-feito inédito, de responsa! Insegura, diante de Selmira, cabocla bonita de se ver, deitei falação. Tudo que me veio à cabeça. Agarrei-me a aquele amor declarado, àquela precisão de não perdê-la. Até me emocionei, confesso. Exausta, e já achando que não iria contar com aquele bem-feito na hora do acerto de contas final, parei. E foi aí que Selmira deu uma gargalhada gostosa. Confesso que fiquei chocada. Selmira era uma cínica. Que droga! Aquele homem bom não merecia aquele traste! Abandonei todas as minhas convicções feministas e transformei os tabefes numa surra exemplar. Declarei com a maior frieza e desprezo: Isto não tem graça nenhuma, Selmira! E então aconteceu a confissão que – espero - me levará aos céus: Se avexe não, dona! Foi uma veizinha só! Em cima do forno de farinha e... eu nem gostei. Incrível poder de síntese! Como levar a sério um local como este? Forno de farinha desmoraliza qualquer intercurso. E o “nem gostei”?! Maravilhada com a competente e precisa avaliação de Selmira me dei conta de que compadre Faustino, este sim, teria que se haver, para todo sempre, com a total desmoralização causada por seu péssimo desempenho. Perdi completamente a compostura e saí correndo aos gritos, em direção aos três homens que, de longe, aguardavam o resultado do aconselhamento: Ela nem gostou, moço! Ela nem gostou! Faustino está desmoralizado pra sempre!  Peguei meu colega pela mão e entramos no jipe partindo em desabalada fuga antes que compadre Faustino, impressionado por minha provecta competência, viesse demandar um aconselhamento para livrá-lo da pecha que o acompanharia até o fim de seus dias!

2005



segunda-feira, julho 22, 2013

DIGNIDADE AINDA EXISTE

Os tempos andam feios, não é? O jornal embaixo da porta não ajuda em nada. Vem com ele e nele a certeza de que a leitura dificilmente trará boa coisa. Mas, mesmo assim a gente lê e se assusta, na indignação, na tristeza e na revolta. Fica aquela sensação horrível de “não tem mais jeito”. Mas não é bem assim. Muita coisa boa ocorre no coração deste País e não é publicada. Por quê? Não tenho certeza, mas desconfio: jornais são lidos, sobretudo por moradores de cidades e, para estes, notícia tem que ter o desagradável cheiro de asfalto. Aquelas que cheiram à terra não tem vez por estas nossas paragens. É preciso se embrenhar sertão adentro para delas se tomar conhecimento e isto poucos, muito poucos, o fazem. Nesta nossa Disneylândia, onde reina o Mickey, Saci não tem vez. A história que vou narrar se passou no interior do Maranhão. Os protagonistas: moradores de uma fazenda fazia tempo. Muito tempo. Os avós e bisavós já lá moravam. Os antagonistas: dois pândegos, filhos de um velho fazendeiro, proprietário da fazenda, recém-falecido. Enquanto este viveu tolerou a presença dos moradores, responsáveis pela escassa produção da fazenda: uma agricultura de subsistência já que não tinham permissão para aumentar o cultivo que permitisse a venda. Forneciam, em troca desta "caridade" o que fosse necessário para abastecer a casa grande. Quando acordados os moradores apenas comiam; dormindo sonhavam com a propriedade do pedaço de terra em que moravam. Sonho esse antigo. Vinha passando de pai para filho, aumentando de intensidade a cada geração. Para ganhar alguns trocados trabalhavam como temporários nas fazendas vizinhas, nos tempos de colheita. Fora deste tempo ficava difícil e os rapazes mais moços demandavam a cidade em busca de biscates. As moças, algumas, iam para o sul, como empregadas domésticas, indicadas pelo velho fazendeiro aos muitos visitantes que lá aportavam. Partiam chorosas, mas fazer o quê? Outras se perdiam nos bordéis das cidades grandes, deixando chorosas as mães e indignados os pais. Delas não se sabia mais nem o choro, nem o riso: perdiam-se mesmo, literalmente. O fazendeiro era rico, muito rico e a fazenda servia apenas para lazer de convidados vindos de todas as partes. Jamais lhe passou pela cabeça repartir aquele mundão de terra, que não cultivava, com quem o fazia. Quem sabe julgava-se eterno, como muitos de nós. E esta eternidade garantiria a permanência dos moradores. Só que morreu. Os filhos desinteressados da fazenda resolveram vendê-la por dez reis de mel coado. Viviam lá pelas europas, dilapidando a fortuna da família e, de lá, determinaram ao procurador que iniciasse o despejo dos moradores. Estes pela primeira vez reagiram. Passaram a reivindicar a posse de suas parcelas, solicitando a desapropriação. Estava estabelecido o conflito, e satisfeitos todos os requisitos para uma boa história.  Depois de muitas idas e vindas constatou-se que de fato a fazenda era inexplorada, abandonada mesmo, não fosse pela pequena cultura dos moradores. Vai daí que a desapropriação era certa. Na negociação os filhos do fazendeiro ficariam com uma parte a ser demarcada onde se localizava a casa grande e a piscina. O restante seria dividido formando um assentamento para os moradores tornando-os proprietários. Foi aí que os pândegos rapazes ficaram com raiva. Pouco lhes importava a fazenda e, embora o que fossem receber pela desapropriação fosse mais do que razoável, sentiram-se lesados. Resolveram aparecer, na busca de encontrar uma forma de vingança contra aqueles capiaus que tinham ousado enfrentá-los. E, encontraram! Antes que a desapropriação se consumasse, na calada da noite, mandaram passar a escavadeira sobre o cemitério dos moradores. Um cemitério sem mármore, onde não havia lápide, nem escultura. Apenas pequenas cruzes de madeira onde o nome do morto era entalhado a canivete. E a terra foi revolvida misturando um horror de ossos. Feia a coisa. Ao acordarem os moradores se depararam com aquela montanha de terra onde estavam soterrados e misturados os restos mortais do filho de Raimundinho, do Vô Chico, da Veia Noca e os de mais um bandão de gente. Os rapazes, protegidos por capangas armados, estavam prontos para enfrentar a esperada reação. Mas não contavam com o silêncio daqueles homens, mulheres e crianças que os defrontavam com uma expressão que não sabiam traduzir, mas que lhes deu medo. Parecia uma ameaça perigosa contra qual garrucha alguma teria serventia. Até as juritis pararam de cantar. Os moradores então desviaram o olhar para montanha de terra e de ossos. Olhar este mais estranho ainda. E, como obedecendo a um comando vindo daquela montanha macabra, viraram as costas e dirigiram-se a pé, ainda calados, para São Luiz. Foram dois dias de marcha em que não comeram, não dormiram. Nem pareciam cansados quando chegaram apenas o estranho olhar permanecia ao se defrontarem com o funcionário do INCRA encarregado de recebê-los, Este deitou falatório, animando-os: dali a dias os papeis estariam prontos. Eles seriam proprietários! E foi ai que Seu Chico do Catolé, quase centenário, rompeu o silêncio que havia dias mantinham e transformou-o em palavras: “Terra, doutô, não tem serventia sem passado. Nós carece dele. Vai tê que peneirá tudo aquilo e separá os osso. Deve de tê uma lei pra isso. E que não tivé, então vai ter que faze uma. Pra nós e pra os que de nós morreram”. Não sei se tem ou se fizeram uma lei pra isso. Até onde acompanhei a história não haviam nem conseguido, nem desistido. O conflito havia se tornado emblemático. Espero que tenham conseguido devolver à terra, separados como mereciam, os ossos do filho de Raimundinho, de Vô Chico e da Veia Noca e de todos os outros, recuperando a dignidade do passado de tanto careciam. Como todos nós!

2006

domingo, julho 21, 2013

JANELA

Era aquele mundão de gente. A luta de muitos anos, de gerações até, chegara ao fim. Os sem-terra acampados se transformavam naquele dia, em com-terra assentados. As casas da agrovila, modestas, pequenas, esperavam os novos moradores num convite à digna cidadania que todos merecemos. Para a festa mataram mais de um capão, cozinharam macaxeira  abóbora e capricharam na carne de sol, no feijão de corda, na paçoca, na farofa amarela. Matruz com Leite derramava o forró no alto-falante que, desta vez, não irradiava sobre o campo a indignação, a revolta e a luta. Haviam resistido à fome, ao medo, ao abandono, ao frio, ao desconforto, à miséria e à maldade das gentes. Em meio à movimentação uma figura estática. D. Januária, em frente a uma das casas, chamava atenção. A expressão que se revelava no rosto curtido da velha era estranha. Velha, sim. Por que por lá não existia idoso, nem terceira idade. Velho é velho mesmo. O politicamente correto não tem muito lugar quando a miséria nivela tudo e se dá nome aos bois com a naturalidade e a verdade das palavras que sempre usaram. Mas como eu ia dizendo, D. Januária estava ali, parada, olhando a casa que seria a sua. Que já era sua. Alguma coisa na fachada era o motivo de seu fascínio e dela não tirava os olhos. Aquela imobilidade começou a chamar atenção. Aos poucos, uma roda se formou em torno dela. Havia como que um respeito por alguma coisa que ela sentia e que, embora não sabida, passava uma solenidade que fazia com que se comportassem como fiéis num ambiente santo, reverenciando aquela figura enrugada e minúscula. O som do alto falante baixou e calou-se. O silêncio se fez em reverência à decana do acampamento. Porque D. Januária o era. Velha, a mais velha. Aos poucos ela se dá conta dos rostos que a observam. Olha cada um deles, demoradamente, muito séria. Por fim, o olhar se demora sobre a figura do acampamento. Um olhar de comando. E porque viveram e lutaram juntos por muito anos, décadas mesmo, ele a entende e se transmudando de líder em liderado e obedece. Aproxima-se dela e numa delicadeza nunca vista naquelas mãos rudes e deformadas pela enxada, dá um toque, apenas um toque, nas costas  magras, impulsionando a velha em direção à casa. D. Januária vai até à porta, abre, entra e a fecha atrás de si. O grupo continua em silêncio aguardando, não se sabe o quê. Passam-se minutos e ninguém se move. Um murmúrio geral quebra o silêncio quando a janela abre, emoldurando D. Januária. Ela não olha pra o grupo emudecido. Olha longe, olha firme, olha valente. E num tom de voz baixo e grave ue em a força de um grito ela fala: janela!...No protegimento dela tô oiando pro mundo! E todos, comovidos, entenderam. Porque a lona, onde sempre viveram, era sim uma casa. Então casa, sempre tinha havido. Mas janela... que mostrava o horizonte no “protegimento” ... nunca!

sábado, julho 20, 2013

DA ARTE DE ANDAR

A médica foi peremptória: tem que andar! Espantou-se. Ora, ela sempre andou. Isto é, a partir de certa idade que não sabe precisar bem. Nunca lhe foi informado e muito menos comentado este evento. Possivelmente porque nela não se revelou a mesma precocidade do irmão. Ele andou aos 8 meses e 20 dias!! É possível até, que no seu caso, isto tenha se dado com certo atraso já que foi assunto nunca ventilado nas conversas da mãe e das tias sobre os feitos dos respectivos bebês.  Nelas – nas conversas, na mãe e nas tias – evidenciava-se a competição pelo primeiro lugar em tudo: ações, características físicas, ditos, tudo servia para estabelecer o ranking primal. Tem que confessar envergonhada: raramente ocupou o primeiro lugar em qualquer modalidade. Lembra-se apenas de haver sido dito que aos seis meses era ela a mais gorda. Chato, né?
Mas voltando ao andar. É certo que sempre havia andado. Há bem mais de 70 anos. Às vezes vacila, mas com certeza anda. Pelo menos, pensava ela, era isto que fazia ao exercitar o verbo. Mas o andar a que a médica referia-se não era bem o que sempre praticou. Esta atividade que lhe parecia tão simples revestia-se agora de regras precisas: 20 minutos, pela manhã, antes do sol forte, três vezes por semana, sem parar, mantendo ritmo e rapidez. Na Lagoa, na praia ou no Jardim Botânico. E agora esta! É verdade que por vezes andou nestes locais. Mas, rotineiramente, faz isto em outros lugares não citados. Feira, por exemplo. Será que não pode? De qualquer modo parecia simples, assim à primeira vista. Mas... “antes do sol forte” significava, no verão, antes de 8 horas da manhã. Fez os cálculos: acordar, vestir-se, escovar os dentes, tomar café... e chegar a um destes lugares onde se “anda”. Cruzes! Olha só a hora que vai ter que acordar! Jardim Botânico, que adora, ficou automaticamente descartado. Não conseguia se imaginar naquela correria lá por dentro.  Não ia poder ver nada, bolas! Praia? Todo mundo caindo n’água e ela se esbofando? Eu, heim?! Sobrou a Lagoa. Tudo bem, pensou. Lagoa será. Resolvido. Mas resolvido nada estava.
Inadvertidamente comenta com as netas que passaria a andar três vezes por semana, na Lagoa.  Foi aí que a coisa pegou! Sem que tivesse se apercebido existia agora, um andar profissional, seguindo preceitos técnicos nunca imaginados por ela. De saída as meninas comentam com desprezo, as instruções da médica: vinte minutos?! Como vinte minutos?! Isto não significa nada, absolutamente nada! E vem a informação precisa: 3.200 metros, em meia hora, é o mínimo aceitável! A unidade de medida (metros) tende a adoçar o entendimento de que, na realidade, estão falando de quilômetros! E o tênis? Não pode ser um tênis qualquer. Escuta, embasbacada um desfilar de marcas e dentro das marcas nomes estrambóticos. “Você pisa para dentro ou para fora?” Humilhada confessa não ter a menor idéia. Passou a vida pisando apenas. Uma das netas declara: precisa comprar roupas adequadas. Para andar? Pra quê, gente? Nesta correria ninguém vai reparar. E afinal tem as duas calças jeans que... Gritos de horror: “calças jeans?! Você está louca? Para andar?!!!” Entreolham-se pasmadas. Mas não tanto quanto ela: é um espanto! Não se pode andar de calças Jeans! Caramba! Rindo as duas comentam: “imagina fazer alongamento metida em Jeans!” Timidamente, arrisca: “mas eu não vou fazer alongamento...  eu...”. “Vai arrumar um problema muscular, isto sim! É isto que você quer?” Não! Positivamente não é isto que quer.  
Despacha as netas prometendo ir com elas no dia seguinte a um shopping para providenciar os “com que” andar e, ainda, na volta, aprender e treinar a série de exercícios de alongamento que deverá fazer antes de iniciar a maratona.
O elevador engole as moças e do hall ela ainda escuta a discussão sobre o melhor tênis. Entra em casa e começa a percorrer todos os cômodos, olhando os pés. De repente, o andar torna-se inconfortável. Tem alguma coisa errada. Um susto: os pés não estão paralelos. É isto. O esquerdo volta-se ligeiramente para dentro enquanto o direito vai na reta. Força o paralelismo e o direito, adquirindo vida própria, volta-se para fora num desvio monumental. Droga! Senta-se e coloca os pés milimetricamente alinhados. Respira fundo: é agora! Levanta-se e dá dois passos Saíram de prumo! Corre para o quarto. Põe um par de tênis que nunca usa. É isto. Para andar tem que se usar tênis. Marcha em direção à cozinha, olhando para os pés. Bate com a cabeça na porta do armário que deixou aberta. Esta porcaria de tênis está prendendo no chão. Remove os ditos e parte descalça. Piorou. Percebe que o pé direito levanta-se menos que o esquerdo que começou a doer. Pára e corre para o telefone...     
“É urgente, é urgentíssimo!” Alarmada a atendente aciona a médica que profissionalmente aflita, interpela: “O que está havendo?”. E ela: “será que não posso fazer outra coisa ao invés de andar? Já não tenho mais idade para isto!”


2004

sexta-feira, julho 19, 2013

CINEMA PELO AVESSO

A arte de contar histórias garantiu, até seus setenta anos, a sobrevivência de Raimundo Nonato, naquele povoado do interior do Maranhão. Almoço, jantar, café da manhã, um canto pra dormir, e até algum para o cigarro e a pinga, eram dados em troca de suas fabulações. Personagens os tinha variados, empenhados em lutas, amores e aventuras heroicas  sempre no único cenário do sertão que conhecia desde o nascimento. Variavam conforme o público. Se de mulheres as deixava lacrimosas pelas desditas de moça a quem o dono da fazenda fez mal, lançada no mundo por um pai de grande crueldade e deixada a mercê da volúpia dos homens, num bordel em São Luiz ou nas “oropa”, (qualquer espaço geográfico que extrapolasse os limites da capital). Se homens, as emboscadas de matadores se multiplicavam, a mando de coronéis que se engalfinhavam por posse de terras. Se crianças, os relatos eram povoados pelos personagens do Bumba meu Boi numa adaptação livre onde o boi estimado via-se as voltas, ora em tom de comédia, ora em tom de tragédia, com o negro vaqueiro, sua cabocla e o homem branco aos quais se juntavam, dependendo do tempo dispunha e da fome que sentia, os vaqueiros, o Pajé, o Padre, o Médico, o Palhaço e a Burrinha. Raimundo Nonato anunciava-se, à porta de cada casa, com uma estrofe do catimbó: Cibilim de ouro, chuva fina não me molha. Se você não me quiser, outros querem e você chora. Ameaça vã. Todos o queriam. Afinal era a única diversão, o único momento mágico em que a imaginação tomava asas naquele sertão. Até que Salviano, o próspero padeiro, foi a São Luiz e voltou de caminhão com uma carga misteriosa que arrumou, caixote em cima de caixote, no espaço em frente à capela, pomposamente chamado de A Praça. Garantido por um gerador claudicante, estava para ser inaugurado O Cinema! Uma tela velha, roída pelo tempo, subiu atracada em dois mastros. Outros mastros delimitaram a platéia, cercada de um pano alto que impedia a vista da tela aos que não adquirissem a entrada, fixada em 20 centavos. Um projetor de 16 milímetros e rolos e mais rolos de antigos westerns garantiriam o espetáculo. A estréia foi um sucesso. Todo o povoado e mais gente vinda de longe, esgotaram a lotação. Raimundo Nonato apavorou-se: como lutar contra aquela coisa do maldito? Desconsolado, passou a observar o filme atrás da tela, já que os 20 centavos não lhe eram fáceis. Passada a novidade, a platéia começou a duvidar de aquilo ser uma real diversão. As legendas passavam muito rápidas, impedindo a leitura dos pouco letrados e a maioria era analfabeta mesmo. Vai daí que não entendiam nada. Além disto, não conseguiam reconhecer, naquelas figuras estranhas, os seus conhecidos personagens. Só reconheciam mesmo os cavalos e estes não falavam ou conduziam a história. Os índios eram certo atrativo, mas andavam vestidos. Coisa esquisita! Começaram a comentar e os comentários chegaram até Raimundo Nonato que continuava a esquadrinhar a imagem, atrás da tela, buscando inspiração para enfrentar o inimigo que lhe tirara o sustento. E ela veio! Deus é pai, não é padrasto! Ele esperou o momento certo e, na primeira noite em que uma razoável quantidade de não espectadores passou por seu ponto de observação, ele falou alto e dramático, fazendo às vezes do mocinho que, empunhava dois revólveres apontados na direção ao bandido: cabra da peste! Arreia o trabuco. Tô aqui a mando do Coronel Juca. Diz tuas oração e te aprepara pra morrê. Os passantes pararam para ouvir e se deixaram ficar até o fim do filme, transmudado e animado por Raimundo Nonato. A pequena platéia foi levada às lágrimas pelo defloramento de Gene Tierney (Rosinha, filha do Coronel Juca). Cena, que de acordo com a versão de Raimundo Nonato, não poderia ser mostrada na tela em respeito às famílias, mas foi relatada em palavras comoventes. Este triste fato levou à matança final, quando Robert Taylor (Cassiano Canindé) vingou a honra da amada, enfiando uma saraivada de tiros no vilão Dan Dureya (Floriano Mata Sete). Morte esta muito aplaudida na concordância com a fala final de Cassiano Canindé: morre cão danado! Só não te sangro como um porco como tu merecia pra não sujar minhas mãos. Careço delas limpas pra pedir a mão de Rosinha. No dia seguinte, num caixote, fazendo às vezes de bilheteria, Raimundo Nonato cobrava entrada para sua versão do espetáculo. Foi uma enchente. Além de mais barato (10 centavos), juntava-se à fome à vontade de comer: as deliciosas e familiares histórias de Raimundo Nonato eram agora enriquecidas pela imagem! O cinema atrás da tela passou a ser a grande atração: índios americanos assumiam lugar das personagens do bumba meu boi e dançavam catimbó antes da batalha; as moças do cabaré, agora quengas de respeito, levavam os homens à loucura ao dizer: se achegue, meu nego... A mocinha era amarrada pelos bandidos e deixada em meio à plantação de macaxeira brava ou atrás de moitas de araticum-cagão, enquanto o pastor, transvestido em prefeito da cidade, incitava os meeiros, agregados e alugados a não trabalhar nas terras do Coronel Quirino, que tinha parte com o demônio. Salviano desesperou-se. Viu desaparecer sua platéia, do lado direito, enquanto no avesso, as pessoas se acotovelavam por um lugar perto do narrador. E, não tendo outro jeito, deu sociedade a Raimundo Nonato que, finalmente, aos setenta anos tornou-se um dos poucos e bem sucedidos empresários do lugar, próspero sócio do Cinema pelo Avesso.

2005

Esta é uma das muitas histórias que resultaram de minhas andanças pelo interior deste tão belo e tão maltratado País, desenvolvendo e implantando sistemas na área de Reforma Agrária. Eu sempre viajava com um caderninho anotando fatos como este que me encantavam e por vezes entristeciam. Muitos serão relatados neste Blog. São todos absolutamente verdadeiros e conhecer seus protagonistas foi um grande privilégio. Foi em conversa com eles que consegui material para reproduzir suas falas, tão particulares e alguns dos acontecimentos relacionados com a história que não tive o prazer de assistir.

Importante: milagrosamente parece que consegui resolver o problema da impossibilidade de que sejam postados comentários ou quando postados a impossibilidade de que sejam exibidos para mim. Ficaria muito grata se um dos possíveis leitores deixasse um comentário mesmo que negativo.  


quinta-feira, julho 18, 2013

BRINCOS DE ARGOLA

Elas cantam. Com toda força dos pulmões, elas cantam. Dentro de cada uma, Elizeth Cardoso se manifesta. Não outra cantora. Porque de outra não sabem. Elizeth ficou no saudosismo de uma época em que eram jovens senhoras. Mas hoje, naquele ônibus que corta a estrada, a memória se faz expectativa: “O-Fim-De-Semana”! As informações vieram de todos os cantos. Tinha aquela amiga da amiga que conheceu , aquele senhor viúvo... Tinha o seu dentista que, em meio ao tratamento de canal, chocado, contou o caso da senhora encontrou o rapaz mais moço – escandalosamente mais moço - para quem hoje paga, entre outras facilidades, o tratamento de um idem canal... Bobo ele de ficar chocado! Tem motivo, não. Ela aprendeu com os netos: tudo é possível. Tudo pode!  Dizem que , mal se dorme de tanto o que fazer. No sábado - a Idália contou - foi até o dia amanhecer! Em volta do piano não sentiram a noite passar. Cantaram de tudo. Até tango! E ai – a Idália falou - tinha chocolate quente, lareira, vinho... Um grandor! Mas, sobretudo, Idália confidenciou sobre o pianista. Flertava com todas. Mas, numa hora em que ninguém estava olhando, lançou aquele olhar na direção dela, Idália, fazendo o coração disparar. Foi então que ele perguntou onde era o quarto dela. Se dava pra varanda... se era no anexo... Disfarçou, falou da vista, mas no fundo queria era mesmo saber a localização exata. Idália garantiu que se fez de ofendida. Mas na medida certa. Não podia ceder assim, sem mais nem menos, e ainda por cima havia a companheira de quarto, cafona que só ela, querendo se fazer jovem naquelas bermudas em pleno inverno! Mas conversaram muito naquela noite... A conversa foi um jogo de palavras, sutil, com duplo sentido... Mas de bom gosto. De muito bom gosto! E foi assim que a Idália percebeu que haveria uma outra vez. Ficou claro que ele precisava conhecê-la melhor antes de... enfim, antes de qualquer prosseguimento. Foi isto que ele insinuou quando se referiu aos feriados de São João. Mas Idália, a pobre Idália, não pôde vir: artrose, coitada. Mas ela, sim! Vai daí que está naquele ônibus que corta a noite, metida em seu novo conjunto que pinica, mas é lindo. Olha em torno. É a mais moça. Sem dúvida é a mais moça. Viúva hoje. Não é solteirona e nem um homem a deixou por outra mais jovem, como aconteceu com a maioria. A esta altura da viagem, já contaram tudo. Não sei como podem! Ela procurou ser generosa e não falou do casamento tão feliz. Tão feliz... Bom, nem tanto assim. Mas afinal melhor que muitos. Azevedo era muito calado. Nos últimos anos ficou mudo mesmo. Ela ficou surpresa quando, no velório, contaram que ele era a alegria das reuniões de aniversário de formatura da turma de 51. Parece que até contava piadas! E fazia versinhos engraçados sobre cada um! Disseram até que alguns eram apimentados! Que coisa! Nos últimos anos passava dias sem lhe dirigir palavra. A voz dele, ela só ouvia falando com os filhos, com os netos, e ao telefone. Mas, no todo, fora um casamento feliz e ele era educado. Muito educado. Nunca deixou faltar nada em casa, justiça seja feita!  Enquanto ele viveu, ela viveu para a casa, os filhos, os netos. Depois que Azevedo morreu, começou a surgir, insidiosa, aquela inquietação que se tornava presente após o término de cada capítulo das muitas novelas. Uma sensação indefinida, perturbadora, emocionante... Esta última palavra ela pensa com culpa. Esse negócio de emocionante, do jeito que ela pensa, tem alguma coisa de errado, de proibido. O relato secreto de Idália fez com que esta sensação tomasse uma forma sólida, objetiva. O fim de semana no Hotel Fazenda foi, durante muito tempo, o seu segredo. Perigava eles não entenderem... ou, o que seria pior, entenderem mal. Eles, eram os filhos, as noras (ai, as noras!) e os netos. Mas, vai daí, que tomou coragem e falou. Assim, de chofre, num dos almoços de sábado. Estranho! Não deram a menor importância. Nem mesmo quiseram saber mais. Só disseram assim: vai, mamãe! Vai, vovó! Vai, D. Sara! Estranho mesmo. Percebeu até uma esquisita reação de alívio, lá neles. Alívio de quê? Mas o fato é que ali estava ela, enfiada naquele conjunto que pinica, mas lindo, lindo. O motorista volta-se: estão chegando! O coração bate aflito. Dois senhores (um deles com um chapeuzinho engraçado) observam a chegada do ônibus. O do chapeuzinho olha para ela. Um olhar insistente. Intencional. Perturbador! Meu Deus! Já! Passa por ele pisando duro. Não pode deixar que perceba que ela percebeu. Também, não pode ser assim. No quarto hesita empacada no muda-não-muda de roupa para o jantar. Existem mais dois conjuntos na mala. Tão novos e tão lindos quanto aquele pinicante. Discretos, é verdade, mas muito bem cortados. Mudar de roupa pode parecer assim... assim... como é mesmo que os netos dizem? Over! É isto... Melhor não. Amanhã poderá surpreender com novas roupas. Hoje à noite se impõe certa discrição. Provavelmente todas vão se trocar e ela quer ser diferente.  Mas vai trocar os brincos... Isto sim. A alteração de um pequeno detalhe faz fino. Vai colocar os brincos de argola que comprou escondido. Foi uma extravagância. Nunca teria coragem de usá-los no Rio. Mas ali, eles, os brincos, são o atestado de sua ousadia! Os filhos, os netos e as noras (ai, as noras!) não perceberam nada. Mas é assim que ela está se sentindo: ousada. Muito ousada. Come pouco no jantar, perturbada pelos olhares, nada discretos, que o senhor do chapéu, agora sem chapéu, lança da mesa vizinha. Pelo menos teve o bom gosto de não ir logo sentando ao lado dela. É necessário um tempo. Sua vizinha fala sem parar, numa excitação nada condizente com a idade. Terminado o jantar, marca um ponto. Todas declaram não querer café. Não vão conseguir dormir se tomarem... Ela sorri, gentil, aceitando. Deixa-se ficar na mesa, saboreando o café que nunca toma à noite. “Ele” também tomou... e agora passa bem rente, ainda olhando. Tem certeza que o discreto sorriso é testemunho da percepção de sua jovialidade demonstrada pela aceitação do café. Ela vai andando pelo jardim na direção do som. Um piano acompanha vozes trêmulas, mas afinadas. A noite está linda. Tão estrelada... Há tempos não via as estrelas. Ora direis... Uma emoção gostosa toma conta dela. Sumiram os filhos, os netos e as noras. Ela é ela. Livre das lembranças, sentindo a vida que se anuncia bela, conduzida por milhares de estrelas. O som do piano é um chamado. Faz demorar o prazer. Pode ir quando quiser. E isto é uma sensação nova. Gostosa demais. Ela tem aonde ir e pode ir quando quiser. Mas este pensamento provoca urgência. E ela corre. Busca a aproximação da música, da vida. Entra com um sorriso discreto, estudado, e aí o choque! O homem do chapéu é o pianista! O pianista da Idália! Uma das senhoras, aquela simpática, faz um sinal amigável mostrando a cadeira vaga a seu lado. Ela se deixa cair, trêmula, pálida. A outra, solícita se aflige: está sentindo alguma coisa? Não! Nada! Nada, nada! Uma das senhoras toma o lugar no piano. Todas aplaudem e a cantoria recomeça com um piano bastante descontrolado na harmonia. Meu Deus! Ele está vindo para cá! Ele vai sentar-se a meu lado! Sentou! Vai falar! Falou! - É a primeira vez que te vejo aqui... - Já se levantando, e com um olhar gélido, digna em sua lealdade, ela fala, severa, grave e muito, muito triste: sou a melhor amiga da Idália!
Sob o olhar espantado do pianista, deixa a sala, escondendo das estrelas, as lágrimas que caem e caem. E ela entra no quarto buscando a lembrança dos filhos, netos e até das noras. Com gestos lentos, tira os brincos de argola e os deixa cair sobre a cama. 
2004

Importante: por uma falha que ainda não conseguir sanar está sendo impossível visualizar possíveis comentários feitos no blog. Agradeço se, caso queiram comentar, o façam para meu endereço de e-mail annadeassis@gmail.com.



quarta-feira, julho 17, 2013

TEMPO DE MICIOCÓ

Só há poucos dias percebi: o presente do indicativo não se aplica à terceira idade. Mas não se aplica mesmo! Com a maior sem cerimônia, as frases são lançadas, como grosserias não intencionais: Como você era linda!, diz o namorado da neta, sorridente, foto na mão, na certeza do elogio; você saía sozinha? pergunta a outra neta; mamãe era muito alegre!, lembra-se o filho. Bolas! Eu talvez não seja mais tão linda, mas saio sozinha! Não sei se fui tão alegre, mas, com certeza sou até pra cima! Hoje! Agora! Mas não adianta. Um desfilar de era, tinha, gostava, fazia, lia, pensava, comia, pontua o meu dia-a-dia. Um espanto! Como é que eu sou, tenho, faço, penso, como, bebo e ninguém percebe?! Mas existe coisa pior! Existe o diminutivo. De repente fiquei “ïnha”. Sobretudo para balconistas. Sabe-se Deus por que, tudo que quero comprar tem seu tamanho carinhosa e cretinamente reduzido: remedinho, sapatinho, vestidinho, bolsinha e que mais seja. O tom beira o tatibitate e soa mais alto porque, provavelmente, pensam que sou surda! Ontem o caixa do banco me pediu que digitasse a “senhazinha”. E existe uma, menor, mais reduzida, para pessoas como eu?! E olha que nem estava na fila dos idosos - a outra estava menor! E a familiaridade? Ah, a familiaridade! Todos se julgam com direito de me dirigir a palavra sem que os conheça! E existem até os que me tocam, amáveis, tirando um fio de cabelo que se grudou à roupa, caído, como muitos o têm feito ultimamente. E as verdades que me dizem?! Há coisa de um ano, resolvi trocar o plano de saúde. Munida de uma lista passei a telefonar para todos, em busca do melhor custo/benefício. Na verdade, nos tempos que correm, estava mais em busca do melhor custo qualquer que fosse o benefício. E eis que um deles, na voz de robô da atendente me informa que não me poderia ser dada a benesse de transferência sem carência, como anunciado. Ingênua e sem pressentir o que estava por vir, perguntei o óbvio: por que? A resposta veio curta e grossa: porque, na sua idade, sua expectativa de vida é muito pequena! Naquele momento poderia ser nenhuma se sofresse de algum mal cardíaco. Em sua certeza a mocinha nem me deu o direito da exceção, tornando a frase mais genérica. Era da minha expectativa de vida mesmo. E tem mais! Fui alertada por um amigo, sobre outro fato.  E olha que esse amigo é apenas quase lá, quer dizer, ainda não instalado de mala e cuia na terceira idade. Talvez já tenha a mala ou a cuia pousada por perto da fronteira. Mas certamente não as duas! Lembro-me muito bem: quando era um menino, eu era “mocinha”. Pois é, esse amigo quase lá, me falou do “olhar”. O olhar dos iguais! Os iguais terceira idade, quando se cruzam na rua. É um olhar rápido, mas profundo, carregado de significância. Olhar dos que se reconhecem numa situação especial, num mundo a parte, irmanados por algum mal a que estão condenados, pela idade. É! Esse olhar existe. Eu já havia reparado. Eles, os iguais, além de lançarem “aquele olhar”, carregado de um misterioso entendimento, semelhante ao de um músico de jazz quando “entrega” a outro o improviso, também avaliam o porte e a desenvoltura no andar do outro. E se estes forem julgados inadequados, isto é, se você anda rápido, sem curvar, o olhar se reveste também de censura, quase verbalizada no isto lá são modos?! E tudo isto ocorre do dia para noite. Um dia você é e no dia seguinte você era. Agora entendo porque algumas pessoas, numa tentativa vã, é verdade, procuram desesperadamente, aparentar menos idade. Elas não suportam! E, cá pra nós, põe insuportável nisso! Fazer o que? Há momentos que estas constatações me levam ao delírio. Nunca fui gregária, mas eis que me vem a revolta que cria o brado conclamatório: brasileiros de terceira idade! Uni-vos! Poderíamos, quem sabe, iniciar uma reação, usando e abusando do presente do indicativo, rejeitando todos os diminutivos e mandando um tapa certeiro na mão que tira o fio de cabelo que se grudou a nossa roupa. É verdade que vai se correr o perigo de passar por esclerosados ou, no mínimo, por excêntricos. Porque depois se atinge a terceira idade deixa-se de ser sem modos ou mal educados. A opção é só entre a esclerose e excentricidade. Mas a classe não é muito unida. Uma pena. A maioria aceita o tempo do verbo no passado, o diminutivo, a mão cutucadora - e pasmem - até gosta disso que aceita como um sinal de respeito. Mas quem sabe vale a pena tentar. Quem sabe poder-se-ia ter bandeira, sindicato, hino! Um hino seria o fino! Um hino que perturbasse. Que, hermético, intrigasse a todos e ao mesmo tempo se adequasse ao excêntrico atribuído. E me vem à cabeça, incessante, a cantilena “nonsense” que ouvia, muito pequena, não sei se da avó, da mãe ou das tias:

Tempo será de miciocó!
Laranja da china, tabaco em pó.
O pinto que pia: piri-pi-piu.
O galo que canta: corococó.
Morreu sua tia, ficou sua avó.
Quem é o durão aqui? Sou eu, só, só!

Agrada-me muito a avó ter “ficado” e, embora me entristeça com a morte da tia, tenho que admitir que o fato de ser anterior a da avó, evidencia uma subversão da ordem natural das coisas que, num simbolismo, é claro, é perfeitamente adequada à revolta que proponho. Mas o que mais me encanta é que, além do pinto piar e do galo cantar, este galinheiro existe no presente. E o durão está aqui, no presente, e não é duro, nem durinho. É durão! Um audaz e desafiador aumentativo! Está aqui de fato e de direito, indiscutível e conclusivo, no misterioso tempo de miciocó.   

2004


Importante: por uma falha que ainda não conseguir sanar está sendo impossível visualizar possíveis comentários feitos no blog. Agradeceria se, caso queiram comentar, o façam para meu endereço de e-mail annadeassis@gmail.com

terça-feira, julho 16, 2013

PODE NÃO PODE

É espantoso como, ao ingressar na terceira idade, um verbo e sua negação – “poder e não poder” - passam a ter uma freqüência e uma intenção inteiramente diversa da de até então.  A coisa acontece de repente, sem aviso, e se instala no diário num desfilar de podes e não podes, mais das vezes formulados por outros, embora existam as próprias formulações surgidas por descobertas de situações e objetos que, até aquela data, não eram percebidos. Ou pelo menos não eram percebidos como indispensáveis à vida. Um desses é o corrimão. Como corrimão é importante, minha gente! A descida de uma escada sem corrimão provoca a antevisão de tragédias, que se desenrolam como num filme de terror, gerando pensamentos que surgem consequentes e dependentes uns dos outros, ao insegura e heroicamente pousar-se o pé em cada degrau: vou cair... vou quebrar o fêmur... vou ficar numa cama pra todo sempre... na verdade, pra todo sempre vai durar pouco porque, deitada, vou pegar pneumonia...  e vou morrer. Morri! A chegada em segurança ao piso mais baixo, provoca a raiva: Quem foi assassino que projetou esta escada sem corrimão?! E aí vem o verbo: eu não posso descer uma escada sem corrimão! Porque – tem que se ser honesta - outros podem. Lembra-se do tempo em que descia, com extrema competência, pulando dois degraus de cada vez e pasmem: correndo! Na verdade ninguém vai se pasmar. Todos fazem isto, sem se dar conta de que um dia não farão mais. Esses “não pode” - os da gente mesmo – até que são válidos. Digamos, são frutos de uma sábia tomada de consciência. Mas os outros – os dos outros – nem sempre. Com esta idade ela não pode fazer isto! O “isto” se aplica aos mais diversos “não pode”. Tem, ultimamente, catalogado alguns que são freqüentes e inventado outros que, se ainda não ouviu, são com certeza proferidos em algum lugar, por alguém. Ela, nessa idade, não pode usar mini-saia. Esta ouviu mesmo, outro dia, numa noite de autógrafos. Fazendo um parêntese, já repararam que existe um público específico para noites de autógrafos? É muito parecido com o de “vernissages”. As roupas, as frases e os olhares são espantosos. Parece que esta gente mora num armário que só os deixa sair nessas ocasiões. No tempo em que estão trancados devem se ocupar elucubrando as frases, inteligentes e herméticas, que soltam por ocasião do acontecimento que as libera para o mundo. Ninguém conseguiria inventá-las solto por aí. Mas voltando à mini-saia da velha. Desculpem! Ser politicamente correta impõe-se: quis dizer “voltando à mini-saia da senhora de terceira idade”. Pois é! Vejam só! A senhora estava de mini-saia! É... Parece que não pode. Olhou as pernas dela. Da velha. Até que eram bonitas. Mais bonitas do que muitas de outras mini-saias, não terceira idade, que saracoteavam nervosas, dizendo aquelas coisas inteligentes e herméticas. Mas foi assim que ficou sabendo e anotou no caderninho mental. Mini-saia não pode. Não que ela as use, mas sabe-se lá, um dia pode dar vontade. Mas não pode. Não pode e pronto! Mamãe, vai vir um dia, em que você não vai poder morar sozinha! A voz da filha é pra lá de carinhosa e “vai vir um dia” até que adoça a declaração. Fica na dúvida, anota ou não? Essa é dose! Será que não vou poder mesmo? Posso tomar uma acompanhante, sei lá eu. Ou ficar sozinha mesmo e eles (os filhos) ficam telefonando regularmente para ver se está tudo em ordem, quando não puderem passar para um cafezinho. Um sobressalto: eu vou poder fazer um cafezinho, não vou? Não vou poder?! Não?! Eu vou deixar o fogo aceso? Eu?! Incêndio?! No prédio todo?! Você acha, é?! Tá legal. Tem mesmo que ir para o caderninho. Incêndio é coisa séria. Mas ainda não veio esse dia, né? Não pode ir a baile funk. Essa ela inventou porque morre de vontade de ir a um baile funk. Mas algo lhe diz que não pode do mesmo modo que não pode voar de asa-delta. Vocês sabiam? Que coisa! Pois ela não sabia e inocentemente candidatou-se a um desses vôos duplos. Foi recusada. Humilhantemente recusada. Pensava que podia. Afinal seria apenas carregada e nenhuma ação me seria requerida. Achava ela... E se a senhora tiver um treco lá em cima?! Gente, eu nunca tive um treco. Quer dizer... não que me lembre. Acende um cigarro (que também não pode) e rememora a vida. Queda de pressão... é treco? Capaz... Mas eu sempre tive! Desde. Sei lá eu! Ah! A espinha de peixe... Foi... foi um treco. Dos maiores. Todo mundo dava palpite: levanta a cabeça! Levanta o braço esquerdo e abaixa a cabeça! Respira fundo e tosse! Pula num pé só esticando o pescoço. Bate nas costas dela! Aí não! Mais em cima! Alguém dá um murro nas costas. O garçom trouxe um copo d’água que a Isolda me entornou goela abaixo enquanto marido da dita gritava que era melhor miolo de pão que, misturado a água lhe entupiu mais ainda, somando-se ao sufoco. Mas, péra ai! Foi um treco ou um acidente? Acidente é treco? Mas ela nunca pensaria em lançar-me no azul comendo peixe. E treco não deve ser reservado à terceira idade. E os jovens, que também devem ter trecos lá na vida deles, estão se despencando sozinhos ou acompanhados pedra abaixo, gozando os prazeres do vôo que lhe é negado. Pena. Vai para o caderninho. Aza delta não pode. Tem outra coisa que, desconfia, não pode: ir ao cinema sozinha a partir da sessão das oito. Na sessão das duas, pode. Aliás, na sessão das duas “tem que”. Deve ser obrigatório, haja vista a quantidade de senhoras e senhores que a frequentam  Este público, que vai rareando à medida que os horários progridem, desaparece completamente, a partir das oito. A menos que estejam acompanhados por filhos, netos ou sobrinhos que, carinhosamente, os ajudam a descer as escadas (sem corrimão), na saída. Andar depressa na rua, não pode. Pode andar devagar. Se você andar depressa alguém sempre lança um olhar de censura. Mais das vezes muda. Mas uma vez, esta censura foi até verbalizada: vai cair, vovó! Sua resposta foi absurda e ilógica – vovó é a sua mãe! Mas ao que parece foi generosamente aceita, como ultimamente acontece com tudo que diz. Taí uma coisa que se pode: falar absurdos. Até espera-se isso: imagina só o que vovó me disse? Não se dão conta de que sempre disse dessa maneira. Mas vai daí que sempre fez tricô e crochê e, de repente, é informada de que é uma coisa que “agora pode”. Na ânsia de gerar alguma fonte de renda – ideia fixa depois que se tornou uma “nouveau pauvre” graças ao INSS – fica imaginando se haveria mercado para uma publicação “Pode Não Pode” para orientar a terceira idade, dirigindo-a a um comportamento adequado e aceito, evitando assim críticas dos que ainda não lá chegaram. Mas me diga lá, mocinha, não pode mini-saia mesmo?  Por que?


2004

IMPORTANTE : POR RAZÕES QUE AINDA NÃO CONSEGUI DESCOBRIR COMENTÁRIOS PORVENTURA FEITOS SOBRE QUALQUER DAS POSTAGENS NÃO SÃO EXIBIDOS PARA MIM,  ATÉ QUE EU CONSIGA DESCOBRIR O MISTÉRIO PEÇO QUE CASO QUEIRAM DEIXAR ALGUM (AINDA QUE NEGATIVO) SERÁ MAIS QUE BENVINDO PARA O MEU ENDEREÇO DE E-MAIL: annadeassis@gmail.com