segunda-feira, setembro 30, 2013

DA AVÓ, DA MÃE E DO FILHO

Já vão mais de trinta anos. O filho é hoje um senhor de cinqüenta e dois, bom profissional, bom filho e bom pai. A avó se já foi e ele se revelou um bom neto até sua morte. Mas nada indicava que assim seria. Até os vinte se meteu em peripécias que fariam o encanto de qualquer psicóloga especializada na infância ou na adolescência. Era o preferido da avó, que lhe fazia todas as vontades; da babá que o idolatrava tendo conseguido desbancar todos os anteriores “babasados” por ela desde muitos anos na família e... responsável por sustos e noites sem dormir da mãe espaventada com as conseqüências de seus atos.
Na verdade até hoje ela não se refez de um deles ocorrido aos dez anos do filho. Os pais separados, havia já algum tempo, se entendiam bem no dizia respeito aos filhos. Foi assim que se deu uma reunião do ex-casal, num dia em que o pai veio buscá-lo para passar o fim de semana. O tema era a decisão sobre o que fazer para vencer o estado de obesidade em que ingressava o pimpolho. Tudo já havia sido tentado. Regime nem pensar. Babá e Vovó encarregavam-se de prover uma alimentação suplementar secreta que seria mais apropriada a um elefante bebê. A mãe havia tido notícia de um SPA infantil e era sobre esta possibilidade que discutiam sem perceber que eram escutados pelo menino atrás da porta. Não chegaram a um acordo naquele dia e o pai partiu com o filho.
A mãe dirigiu-se ao quarto do menino para, resignada, arrumar a desordem costumeira sempre encontrada e também para enfrentar quaisquer outras surpresas que vez por outra incluíam a presença de seres vivos. Em cima da cama encontra um manuscrito em letras garrafais. Tratava-se de uma lista de ameaças, devidamente numeradas e justificadas pelo cabeçalho: CASAIS QUE SE SEPARAM DEVERIAM DISCORDAR SEMPRE! SE VOCÊS ME INTERNAREM NUM SPA, EU VOU... Seguia-se a lista que começava com um terrível prognóstico. CRIAR BARATAS NO MEU QUARTO e terminava com a ameaça maior e que até hoje assombra a pobre mãe: NUNCA VOU TER COMPLEXO DE ÉDIPO. Babá e Vovó gostaram muito da lista mesmo porque eram totalmente contra o SPA que rotularam de nazismo, de tortura e de ação digna de uma abominável madrasta. Que engraçadinho, disseram elas. Ele é tão inteligente.
A obesidade foi resolvida pela ação de uma excelente psicóloga embora a primeira consulta tenha sido traumática para a mãe. O consultório era perto de casa não justificando a ida de carro. E foi assim que os passantes na rua se divertiram com a cena da moça atracada ao filho muito gordo tentando fazê-lo mover-se enquanto ele se agarrava em portões, grades, postes e o que mais houvesse, pela recusa em comparecer a uma médica de malucos (assim definida por ele).
E assim foram vivendo, numa multiplicidade de extraordinários incidentes, até a adolescência quando já um belo rapaz de dezoito anos apaixonou-se por uma menina um pouco mais moça. A menina era órfã e criada por uma tia com a qual não se entendia bem. A esta altura da vida o rapaz também fazia declarações inflamadas contra o “sistema”. Argumentos poucos. Era contra e pronto. A mãe até achou que isto era o menor dos problemas e jamais poderia imaginar o que se seguiu em função desta nova diretriz.
Num sábado de manhã acorda de bem com a vida. Havia comprado um novo carro, o primeiro que possuía com ar refrigerado. Fazia um lindo dia e pretendia ir à praia. Ao passar pela sala dirigindo-se para cozinha para tomar café, vê um cartaz colado na porta de entrada, com um grande coração desenhado: MÃE! VOU ABRIR! LEVO COMIGO MEU AMOR. LEVO TAMBÉM SEU CARRO QUE EU AVISAREI EM QUE ESTACIONAMENTO ESTÁ (NO PAÍS). TE AMO, MUITO, MUITO!
Em estado de choque liga para as duas primas que sempre funcionaram como suas irmãs. Estas se fazem presentes de imediato. A mais moça e mais prática começou uma busca no quarto do fujão para ver se encontrava alguma pista. A outra, sempre inesperada, munida de um queijo brie obrigava a mãe a engolir pedaços enormes em cima de torradas mínimas. A busca da prima prática deu frutos: um endereço em São Paulo. Imediatamente esta se dirige ao telefone para pedir a outro primo que lá morava para que fosse ao endereço encontrado visando localizar o carro, o filho e a namorada.  Mesmo desorientada a mãe segue ansiosa a conversa ao telefone e percebe que à medida que esta prosseguia a expressão da prima ia ficando cada vez mais desanimada. Ela desliga o telefone e comunica: ele não vai fazer nada. Disse que você tem é sorte. O filho dele fugiu para Serra Pelada!
À noite um telefonema do filho. Vai voltar porque decidiu ir morar, fora do sistema, em Arraial da Ajuda, na Baia. De fato assim o fez. Devolvido o carro ele parte com as bênçãos da mãe, mas com a advertência de que quem “sai do sistema” tem que aprender a viver sem as benesses deste. Portanto não haveria dali por diante qualquer ajuda financeira para financiar uma decisão com a qual não concordava. E lá se vai o casal para morar numa casa de pescador e viver da venda de bolinhos de aipim na praia! 

Um dia em casa da avó, a mãe a encontra na companhia de uma amiga. Diverte-se com a pergunta que lhe faz a senhora imaginando o assombro e a censura que causará a resposta: e seu filho mais moço? O que está fazendo? Antes que a mãe pudesse responder a avó interrompe.  Com um encantador sorriso, plena de orgulho, lança o mais extraordinário eufemismo: Está na Bahia. Montou, imagine só, aos dezoito anos, um empreendimento no ramo de alimentos!!

domingo, setembro 29, 2013

PARA JOANA, SOBRE VERBOS

Muitos adjetivos poderiam aparecer ao lado de Joana: querida, esperada, amada, linda e que mais sei eu. Todos expressariam verdade, mas nenhum deles chega perto do que está contido em seu nome quando dito por mim. No caso, escrito por mim. Palavras são símbolos e você, Joana, simboliza o que um texto pequeno como este não poderia conter. Nem mesmo um muito maior poderia. Há sempre uma enorme perda de qualidade entre o que se imagina e o que se consegue traduzir escrevendo ou dizendo.   
No dia 17 de abril de 2011 vi você pela primeira vez. E, neste dia, pela primeira vez, você viu o mundo. Não tenho como saber o que causou em você esta visão. Primeira coisa que fez foi chorar. O pediatra gostou disso. Mas ele não sabe de nada. Tenho pra mim que é de medo e de susto que se chora ao nascer. O que viria pela frente - tornar-se pessoa - assustou você, não foi? Mas sei bem o que causou em mim a visão de você pessoa. Emoção? Claro. Todos sentiram: sua mãe, seu pai, seus avôs, tios moços e velhos, bisavós e até, a então benjamim da família, Maria Clara, sua prima e minha neta. Mas em mim, a decana desta mesma família, foi muito mais. Você com 1 dia de vida e eu com 29. 649. Olha só o tempo que nos separa!
E eu me peguei pensando que isto devia servir para alguma coisa. Conselhos? Acho que não. Não gosto muito deles. Têm sempre um quê de didático tornando a coisa impositiva. Mas quem sabe um apenas dizer de coisas que descobri ao longo deste montão de dias. Você vai por em prática se quiser, é claro. E também não precisa ser agora. Um dia, muito mais tarde, a Carta da Bisavó será encontrada em alguma gaveta por sua mãe ou seu pai e você vai achar engraçado ler. Não importa quando e muito menos como. Importa muito para mim dizer.
A vida não é, minha linda, toda esta complicação de que falam.  Não é também coisa simples. Tem momentos muito bons e momentos muito ruins e o que importa é como a gente se comporta em cada um deles. Importa, comporta. Rima pobre no texto e indispensável na vida. É um binômio importante este. Você não sabe o que é binômio ainda. Mas já sabe que “importa” ter fome e, vai daí, se “comporta” chorando. Comportamento mais que adequado. Agora eu pergunto: chorar é correto? É bom? Faz bem? Faz mal? Ninguém pode afirmar nem uma coisa nem outra porque depende do que “importa”.  Depende sempre. E é isto que eu queria dizer a você. É indispensável avaliar o “importa” pra poder decidir o “comporta”.
É por isto que os verbos (você mais tarde vai aprender o que é isto) nunca indicam coisas boas ou ruins. E até rir pode ser ruim. Veja só! Nestes 29.649 dias foi uma sucessão de verbos que você nem imagina. Procurei ver neles, no momento em que apareciam, o que importava. Quando eu via (e nem sempre isto ocorria) conseguia sair do outro lado da melhor maneira. Você também não sabe ainda o que é “sair do outro lado”. Quer dizer, não sabe que sabe, porque quando põe a boca no mundo Mamãe corre para alimentar você. E como é isto que você quer e precisa quando abre o berro, sai airosamente do outro lado. Complicado? Nem um pouco. Difícil? Às vezes. Nem sempre você vai acertar o comportamento certo. Sossega: ninguém acerta sempre mesmo. Com treino a gente vai acertando mais. Mas tem uma maluquice: às vezes a gente sabe que está errando e assim mesmo se comporta mal. Isto acontece muito com alguns verbos especiais.
Amar, por exemplo, pode resultar num erro monumental. Existem situações em que o único jeito é fugir deste verbo tão bonito pra não sofrer. E outras em que se pode encontrar um paraíso. Depende, como eu já disse, da avaliação: importa ou não? Outra mania maluca que os verbos têm é a de despencar em cima da gente sem que tenham sido chamados. Alguns a gente domina, quer dizer, faz acontecer o melhor, e outros dominam a gente. A avaliação destes últimos não é impossível, mas escolher o comportamento certo pra dar conta deles é que é o buzilis.  Você não sabe o que é buzilis, não é? Acho que ninguém mais sabe... Não vejo mais dito nem escrito.  Esta sua Bisa sabe por que viveu 29.649 dias. A avó dela falava assim.
Por que, veja só Joana, eu tive também avó e bisavó. Esta última não conheci. Antes as pessoas morriam mais moças. Agora morrem mais velhas. Foi esta uma das muitas mudanças neste mundão de dias. Você tem três bisavós e um bisavô vivos! Eu só tinha um bisavô quando nasci e eram poucos os verbos com que eu lidava naquela época. Como você agora em sua vidinha. Pelo que observei em você neste primeiro dia de vida, percebi que analisou o que importa com a maior competência adotando o comportamento perfeito para cada verbo que surgiu. Como comer, dormir e chorar.
Continue assim, minha linda, e a vida será bem mais fácil e bonita. Se não acertar sempre (e isto vai acontecer) não se lastime. A sua Bisa nos 29.649 dias errou muito e mesmo assim deu conta. E, sobretudo está percebendo o quanto você “importa”! Pode ser que este seja um dos meus últimos acertos: amar você que surgiu por ter eu sabido lidar com este verbo. 
2011


sábado, setembro 28, 2013

JANTAR DE GALA DA SEGUNDO TENENTE

A descoberta de que a patente de meu marido poderia ser a mim também conferida foi uma das muitas surpresas que tive ao ingressar, aos dezenove anos, no ambiente militar da Base Aérea de Natal. E não foi das mais agradáveis. Esta patente era a mais baixa na cadeia hierárquica de oficiais e naquela idade eu me julgava o máximo. Isto causou um enorme descompasso entre poder e ser naquele mundo para mim tão estranho.
Logo de saída fiquei sabendo que as casas reservadas para oficiais não eram para meu bico. Eram destinadas a capitães e daí pra cima. Felizmente os americanos, construtores da base, durante a segunda guerra, haviam deixado abandonadas umas edificações que com poucos ajustes poderiam se transformar em pequenos apartamentos. Não foi muito fácil convencer meu marido a solicitar permissão para adaptar uma delas, mas ao final de algum tempo estava eu agindo como mestre de obras comandando a reforma. Nos fundos um enorme matagal que eu, imaginosa que era, descrevia como floresta. Ficou linda nossa casa dotada de uma varanda que fechei com treliças pintadas de branco. O local era ermo e distante de qualquer vida próxima e só muito tempo depois os demais segundo tenentes, seguindo nosso exemplo, para lá se mudaram.
Logo que nos instalamos não havia telefone e a solidão preocupou meu marido que se afligia em me deixar sozinha quando de suas constantes viagens. Para sua tranqüilidade conseguiu que um sargento, em sua ausência, dormisse num barracão que existia a poucos metros da casa e ao alcance de meus possíveis gritos de socorro. Que certamente jamais ocorreriam já que única ameaça era a existência de minúsculas rãs que surgiam aos pulos quando se acionava a descarga do banheiro! O perigo real, que sequer imaginávamos, era o próprio sargento que se revelou um cruel assassino matando e esquartejando o marido da amante que mantinha na cidade!
Meses após este sanguinolento evento uma Missão Aeronáutica Francesa veio visitar a Base. Um imponente “Maréchal de l’Air fazia-se acompanhar de sua marechala e de outros oficiais também acompanhados de suas femininas patentes. Esta visita provocou um impasse: as senhoras dos oficiais superiores brasileiros não falavam francês e o inglês que balbuciavam não ia além do “the book is on the table”. Era imperiosa uma falante presença feminina no jantar. Os homens conseguiam se virar em inglês, língua obrigatória na profissão. Mas mulher que falasse francês e inglês, só eu mesma, a recém chegada segundo tenente, quase adolescente.
Era uma subversão da hierarquia, mas o jeito foi admitir minha presença à mesa do jantar de gala entre o Marechal francês e o Brigadeiro Fontenele que havia sido diretor da Escola da Aeronáutica. Este último era adorado pelos ex-cadetes, agora recém promovidos a tenentes, seus pupilos num passado recente. Era carinhosamente (pelas costas) chamado de Fon Fon.
Eu estava me sentindo nas nuvens, finalmente tendo reconhecida a importância que eu me atribuía. Meu marido já não se sentia tão confortável habituado que estava a presenciar muitas das minhas manifestações impróprias. Ele sabia que quanto maior meu entusiasmo, maior a probabilidade de baixar a personalidade “clumsyque até hoje se manifesta. Filho de franceses dominava a língua como se nativo fosse e por esta razão sentava-se entre a marechala e a senhora do comandante da Base, bem em frente a mim. Tudo ia indo muito bem e fui até elogiada pelo marechal e por Fon Fon por minha desenvoltura em francês. Bem melhor teria sido se o que eu falasse não fosse compreendido porque quando a conversa versou sobre como por vezes nos enganamos com as pessoas, deu-se a tragédia.
Espevitada e falando alto para humilhar as senhoras de patente superior que se expressavam por mímica, declarei num francês impecável a seguinte pérola: a gente se engana demais com as pessoas. Imaginem que todas as vezes que meu marido viajava, eu dormia com um sargento encantador, que veio a matar e esquartejar o marido da amante. E eu que dormia sempre com ele nunca desconfiei de nada! O silêncio foi sepulcral e eu, percebendo a barbaridade que havia dito, olhei em pânico para meu marido. A palidez que ele apresentava era impressionante e eu pensei até que fosse desmaiar o que seria ótimo porque desviaria assim a atenção de todos.
A marechala apresentava uma expressão de horror e o marechal deglutiu todo o copo de vinho pedindo reabastecimento imediato que também bebeu de um só gole. Rezava eu para que fosse acometido de coma alcoólico quando escuto a voz do querido Fon Fon num esforço para desviar a atenção da catástrofe. Ou, mais provável, visando identificar o marido daquela doida para determinar à imediata transferência para algum remoto posto,
Ele perguntava: a senhora é casada com qual de meus meninos? Ensaio um gesto para indicar Jean, logo em frente, quando horrorizada vejo a ponta do dedo dele aparecendo na beirada da mesa sacudindo energicamente de um lado para outro exigindo uma não identificação. Sua expressão era de fúria incontida. Apavorada e sem saber o que responder fiz um gesto largo e vago e sai-me desta entaladela, entrando em outra, declarando em alto e bom som: com um destes ai!

2009

sexta-feira, setembro 27, 2013

DIREITOS IGUAIS

        Foi lá pelo final dos anos 70. O filho mais moço não pertencia à geração dos mais velhos. Estes – os mais velhos – já haviam tomado seu rumo. Ele – o mais moço – ainda morava com ela. Viviam só os dois naquele apartamento enorme. Á parte pequenos desentendimentos mais que normais entre mãe de quase 50 e filho de quase 20, reinava a paz. Ela trabalhava o dia inteiro e ele estudava idem.
       Naquele tempo ainda não se perdia o sono esperando e rezando para que nada acontecesse quando o filho saía à noite. Daí o sono dos justos enquanto o filho saracoteava nas baladas não intituladas assim naquela época. Ele exercia com uma enorme freqüência e competência o direito de ir e vir. A coisa começou a pegar quando este direito começou a tomar somente o sentido “vir” e vir acompanhado! Complicou a guerra.
     A porta do quarto trancada, o som a uma altura ensurdecedora e ela lá do lado de fora incorporando duas mães: uma moderna, compreensiva, em dia com os usos e costumes que haviam se implantado geral; outra, conservadora, repressora e positivamente furiosa. O esquizofrênico diálogo que as duas travavam era exaustivo. Ser duas mães é pirante. O pior é que não conseguia que uma das duas ganhasse a discussão ou apoiando a conduta do filhote ou exigindo outro comportamento. Assim que a repressora se colocava, irritada, lá vinha a compreensiva alegando: a casa é dele também. Ele cumpre com seu papel. Estuda, é carinhoso, atencioso e blá,blá,blá.  E quando se dava o vice-versa o mínimo que a outra dizia era: uma falta de respeito. A casa é minha. E blá,blá.blá.
    Certo dia, num ato heroico, conseguiu que o som diminuísse. Foi uma vitória, mas não trouxe lá muita alegria. Porque o problema era mesmo a porta trancada. Quer dizer, ela não podia afirmar que fosse trancada. Mas era positivamente fechada. Sempre. A frequentadora do quarto variava e todas eram apresentadas como: “uma amiga, mãe”. O nome raramente era mencionado. Exceção de duas que se manifestaram, sorrindo: Amélia, prazer; Joana, prazer. As outras eram mudas mesmo. O eufemismo “amiga” não conseguia tranquilizá-la.
    Convocou os outros dois filhos, solicitando ajuda. De nada adiantou porque a filha declarou: Relaxa, mãe. É normal nos tempos que correm. Mas me deixa fora disso. Tá? A esta adesão à mãe compreensiva foi contraposta à manifestação do filho mais velho, incentivando a repressora: Ora, mãe, dá um basta! Você não quer é pronto! Se eu for falar, você perde toda autoridade. Mas me deixa fora disto, tá? Elas – as duas mães - serviram um cafezinho aos filhos não solidários e... os deixou fora disto. Fazer o quê?
    Mas a coisa piorou. Piorou muito. Um dia – um sábado – levantou-se alegre, sabe-se lá por que. Estava na cozinha fazendo café e antegozando a leitura do jornal quando um oi, mãe fez com que se voltasse sorrido. E... o mundo caiu! Ao lado do filho, com o rosto bonito marcado pelo travesseiro, sorria uma “amiga”. Os indícios de pernoite eram indiscutíveis. Palavras e ações violentas passaram por sua cabeça, mas ela não executou nenhuma. Ficou muda enquanto o filho, animadíssimo colocava mais pratos e xícaras na mesa da cozinha. Tudo que conseguiu dizer foi: vou tomar banho e trancou-se no banheiro. Dali não sairia até que “aquilo” desaparecesse. Sabe-se lá quanto tempo depois uma batida na porta seguida do grito alegre: Mãe, vou pegar uma praia. Não me espera para almoçar.
    O dia foi pleno de emocionadas discussões: as mães se digladiaram, com argumentos inteligentíssimos, definitivos e apaixonados, até que surgiu não se sabe de onde outra mãe, esclarecida e decidida. As outras se foram e esta se aboletou no sofá, calma, serena e digna à espera do filho para uma conversa séria. E ele chegou alegre, queimado de sol, lindo de morrer e... morto de fome. E lá apareceu a mãe compreensiva: Meu filho! Sem comer até esta hora! A mãe repressiva profundamente irritada resolveu esperar que almoçasse. Não era coisa para ser discutida comendo. Certa solenidade se impunha para respaldar seus irrefutáveis argumentos, construídos e devidamente ensaiados, gesto por gesto, palavra por palavra, durante a espera. Terminado o almoço, foram-se as duas mães originais e a recente se manifestou solene: Precisamos ter uma conversa séria. O “chuta aí, mãe” destoava do tom com que pensava conduzir a fala, mas tudo bem.
    Numa voz pausada e grave desfilou suas razões: a casa, sem dúvida era de ambos. E por isto mesmo ambos tinham direitos e deveres iguais. Havia ficado surpresa ao acordar com uma pessoa estranha na cozinha (pessoa e cozinha haviam sido palavras cuidadosamente escolhidas). Os dois, até aquele dia, tinham conduzido a vida em comum do mesmo modo (o que era uma deslavada mentira). Naquela manhã havia sido evidenciado por ele um comportamento unilateral, o que não era correto nem justo com ela. Ao terminar, e para seu enorme espanto, o filho desolado e contrito responde carinhosíssimo: Puxa, mãe, você está certíssima! Desculpa, desculpa mesmo. Pisei na bola, né? Eu não podia ter feito isto com você. Melhor mãe do mundo.
    Anjos começaram a entoar cânticos maviosos enquanto sinos festivos badalavam e as três mães embevecidas olharam o filho com lágrimas nos olhos até que veio a declaração final: é claro que os direitos são iguais! De hoje em diante você pode trazer quem quiser para dormir aqui. Eu vou ficar meio cabreiro, mas aguento!

2005

quinta-feira, setembro 26, 2013

FARAÓS E ABORÍGENES

Conta-nos Platão que quando Hermes (que seria o inventor da escrita) apresentou sua extraordinária invenção ao Faraó Thamus, este se indignou e bradou aos céus: com sua invenção, meu caro, as pessoas não serão mais obrigadas a se valer da memória! Não será um esforço interno que vai fazê-las lembrar-se das coisas e sim um auxílio externo. A memória é uma dádiva e devemos mantê-la viva!
E eis que milênios depois, as palavras de Teócrito Abritta, (em seu delicioso artigo Do Rádio de Galena à Internet publicado no Mombläat), acalmam o pânico do alarmado Faraó: … “felizmente a inteligência e a produção intelectual estão acima de qualquer tecnologia, devendo o homem não se descuidar do desenvolvimento de raciocínios lógicos e intuitivos”... E, sem dúvida, isto é uma verdade, mas não toda a verdade. O felizmente transforma-se em infelizmente quando, conclui Abritta: “existe o perigo de ser gerada no mundo informatizado uma geração de analfabetos, sem raciocínio lógico, sem domínio da escrita e... exímios apertadores de botões!
Já lá vai tempo em que contava eu aos estagiários de análise de sistemas um fato verídico que ilustra as decepções e os perigos causados pelo uso da tecnologia por pessoas despreparadas: pouco depois da Segunda Guerra um grupo de sociólogos deslocou-se para o norte da Austrália para estudar a cultura de uma tribo de aborígenes que beirava a Idade da Pedra. Ficaram intrigados com uma cerimônia que lhes pareceu religiosa e que se repetia sempre num mesmo dia de cada semana, embora este conceito de tempo não fosse ali conhecido.
Um pequeno grupo deslocava-se para uma clareira levando um objeto retangular pouco maior que uma caixa de sapatos e uma enorme vara. Lá chegando depositavam o objeto no chão e fincavam a vara ao lado. Um deles inclinava-se sobre a caixa dizendo frases curtas e entrecortadas por silêncios durante os quais, parecia, tentava escutar algum som como resposta. Os demais, cabeças para o alto, observavam céu como que procurando nele ver alguma coisa que aparentemente lá não se mostrava. Passado algum tempo, e com uma expressão de tristeza e desânimo, desmontavam a geringonça e retornavam à suas moradias.
Levou tempo para que os sociólogos descobrissem o extraordinário significado desta cerimônia: durante a Segunda Guerra um pequeno grupo da área de comunicações da Força Aérea Americana ali montou um posto de avançado de radio para orientar a rota dos aviões DC3, que faziam operações de transporte. A enorme dificuldade de acesso ao local fazia com que fossem abastecidos pelo ar e, semanalmente, comunicavam-se pelo rádio (naquela clareira) orientando o lançamento dos pára-quedas portadores dos víveres, remédios e outros que tais. Estes bens eram, numa política de boa vizinhança, partilhados com os aborígenes que nunca haviam vivido um tempo de tanta fartura. Ao final da guerra se foram os soldados, mas ficou o “conhecimento” do milagre! Era só falar com a caixinha, e esperar olhando para o céu, que boas coisas de lá viriam! Mutatis, mutandis, apertavam o botão...
Vejo hoje com tristeza que o apertar o botão, olhando para o céu, é praticado com muita freqüência e por uma espantosa quantidade de pessoas.  Mas, ao contrário dos aborígenes, não são estas tão ingênuas e têm um poder aquisitivo considerável. E porque existe um “conhecimento” mais abrangente, os praticantes e usuários de tecnologias que não dominam, produzem, e como produzem, um manancial de loucuras, impropriedades e absurdos. 
Os dados não processados por uma real cultura,  disponibilizados “para o mundo”, não se transformam em informação, não  geram qualquer conhecimento. Quem sabe ainda acreditam que é uma verdade o desgraçadamente infeliz nome dado em seus primórdios ao computador: cérebro eletrônico!  A escrita que o Faraó tanto temia inunda a Internet com informações pretensamente científicas e que podem causar muitos danos. Vejo citados, por pessoas ditas preparadas, os mais absurdos conceitos, as mais disparatadas afirmações. E, o que é pior, estas são distribuídas a torto e a direito instando-se para que os endereçados as utilizem e por sua vez, as redistribuam!
Longe de mim negar a importância da Web, do laptop, do celular. São instrumentos maravilhosos... mas são apenas instrumentos e não “engenhocas” fantásticas capazes de pensar ou gerar conhecimento espontaneamente.  
Lembro-me de um episódio em que atestei esta “humanização” do computador. Designada para treinar os empregados da área administrativa do SERPRO em micro informática fui surpreendida pela exclamação indignada de uma excelente secretária que tentava executar um exercício que eu havia preparado para a turma: Anna Maria, faz alguma coisa! “Ele” não quer fazer o que eu estou mandando. O dos outros obedeceram, mas o meu não “quer” fazer. Que me perdoe o Deputado Aldo Rabelo a citação em língua não pátria: Faraós e aborígenes... “plus ça change; plus c’est la même chose”!  

2008

quarta-feira, setembro 25, 2013

A REDENTORA LÓGICA DE RICARDINHO

A esta altura da vida já me conformei: sou incapaz de providenciar a compra dos presentes relacionados na “Lista de Natal” com a antecedência que me garantiria tranqüilidade. Nem mesmo a Lista é preparada com a calma necessária a evitar os esquecimentos dos quais só me dou conta no momento que alguém grita: está na hora de distribuir os presentes! Faltando apenas alguns dias pego o elevador desejando estar em Tombuctu onde com certeza não conheço ninguém e poderia passar os feriados de Natal lendo a montanha de livros, empilhados na mesa de cabeceira, sem qualquer culpa. Nos pilotis, Ricardinho avança:
-    Você já vai sair?
-    Vou, Ricardinho. E ‘tou com pressa.
-    Aonde você vai?
-    Vou comprar presentes de Natal.
-    Pra mim?
Pronto! Danou-se. Ricardinho não está na lista! Como é que eu esqueci deste tão importante amigo? Minto descaradamente:
-    Para você também.
-    O quê?
-    É surpresa.
Ricardinho olha para mim em silêncio. Ou não gostou da resposta ou está tentando adivinhar qual será o presente. Mas o olhar denuncia um pensamento em outras paragens e, como sempre, ele me surpreende num tom de extrema gravidade:
-    Não tem Papai Noel.
Complicou! O que é que ele espera que eu responda a esta séria afirmação? O silencio agora é meu.
    -    Você não sabia?!
-    Sabia, Ricardinho. Há muito tempo que eu sei. Mas seria bom  se tivesse, não é? Às vezes eu até finjo que tem.
-   Você é fingida?
-   Não! 
-   É sim, Você finge que tem Papai Noel. 
-   Você não finge que sua bicicleta é um foguete?
-  Você não entende nada! Minha bicicleta é um foguete. Foi  Papai Noel que me deu.
-   Ué! Então tem Papai Noel.
-   Falei que não tem. 
-   Ricardinho, Ricardinho, tem ou não tem Papai Noel?
-  Você não entende nada que eu falo!  Eu não já falei que tem porque ele me deu a bicicleta e que ele não pode me dar mais nada porque agora não tem? 
Que raio de lógica é esta? As conversas com Ricardinho são sempre complicadas e eu sempre me sinto em desvantagem. Deus que me Perdoe, mas foi irritada que respondi:
-   Mas você falou que ele deu a bicicleta. Então tem. 
     -  Você não entende nada mesmo. Eu não já falei que não tem?
Desisto. E me despedindo de Ricardinho demando às compras acrescentando mentalmente à lista o nome de meu pequeno amigo, imperdoavelmente esquecido. Pelos corredores do shopping a lógica de Ricardinho me atormenta e eis que de repente a luz se faz: não tem mais, mas tinha quando tinha.  Quando Ricardinho ganhou a bicicleta tinha Papai Noel. Quando eu ganhei a minha primeira também tinha. Tinha também quando ganhei toda a coleção dos livros da Condessa de Ségur. As capas eram vermelhas e douradas com ilustrações a bico de pena.  Nunca os vi em livrarias. Pudera! Eram fabricados por Papai Noel. Anos depois os livros da Bibliothéque Rose e o Tesouro da Juventude, iguaizinhos a qualquer outros, foram comprados por Papai. É por que ai já não tinha mais. É isto! Ricardinho está certo, como sempre: no tempo que tinha, tinha. Percebo encantada que ele não usou o verbo “existir”. Usou o verbo “ter”. Porque não se tratava mesmo de existir ou não. O “não existe Papai Noel”, revelação dolorosa que pais e mães vêm fazendo através dos tempos sempre foi errada. Tem Papai Noel! Só que de repente não tem mais. E não são tantos os “não têm mais” da vida, trazidos pelas novas idades? Mas “tinha” antes. E a gente aceita numa boa o “não tem” porque crescer tem lá suas vantagens e, sobretudo pelos “tinha”. Papai Noel quando teve, teve. Faz-se urgente, procurar Ricardinho para dizer que entendo. Entendo, sim. Entendo e agradeço este presente não esperado em tão provecta idade. E aos que me lêem, quem sabe confusos como eu fiquei, só posso repassar a frase de Ricardinho: vocês não entendem nada mesmo. Eu não já falei? E espero que, como eu, terminem por perceber a sabedoria de meu pequeno filósofo e sintam-se tão bem quanto estou me sentindo agora. 


terça-feira, setembro 24, 2013

HISTÓRIAS DE FAMÍLIA SÃO SEMPRE VERDADEIRAS

Não sei onde escutei ou li esta afirmação. O fato é que me volta de tempos em tempos. Sobretudo quando escrevo sobre minha família e sobre meu Pai, origem da maior herança que recebi. Papai deixou-me um tesouro aumentado em valor e importância por pessoas especiais brotadas nos galhos da árvore materna: tios, primos, mãe, avó e até o avô, que nem conheci. Deste, repetida pela Avó, até escuto a voz!   
Hoje, sabe-se lá por que passei a manhã relendo meus escritos. Onde fui encontrar tanto assunto? E nesta releitura uma descoberta: os autores verdadeiros são meu Pai e os outros. Encarapitados em meu ombro ditam tudo! Até quando falam de coisas que não viveram. Como poderiam vive-las? Já se foram todos, faz tempo. Mesmo assim conversam comigo explicando o inexplicável, rindo de minhas dúvidas, escandalizando-se ou rindo quando meto os pés pelas mãos, ensinando sem didática os mais diversos truques. Sempre o fizeram mesmo sabendo que a vida para mim não seria apenas um adestrar potros, jogar bridge, xadrez e pôquer, tirar tatu da toca, fazer goiabada cascão em tacho de cobre, criar cobra jiboia na trave do telhado do paiol, castrar coelhos, curar cólica de cavalos, ler Proust e Anatole France, amar matemática e exercer uma infinidade de outras atividades tão díspares quanto estas.
Hoje percebo que esta salada maluca era intencional. Visava me fazer curiosa diante da vida para que esta se tornasse uma aventura. E foi assim que prazeres surgiram e ainda surgem. Mas, a maravilha maior é que, ainda hoje, me dão colo e, se estou sofrendo, vêm mansas as palavras mágicas: vai passar, minha nega. E um colo aos mais de oitenta anos é a glória, não é?
Entre a frase anterior e esta que se inicia se passaram muitas horas. Fui tomada de uma urgência irresistível: conversar com meu primo que mora em Miguel Pereira, num lindo sítio. Zezé, que nunca foi José Paulo para mim, tem minha idade. Meses mais velho era um companheirão.
Mil aventuras vivemos juntos. Lembro-me do dia em que fomos expulsos do circo mambembe que havia aportado em Miguel Pereira. Pedimos bis várias vezes exigindo o retorno de um balé grotesco executado pela trapezista e a mulher gorda. Ao perceberem que era uma gozação, nos puseram para fora aos gritos, frente a toda platéia que nos vaiou. Na noite escura, de volta para casa, cavalos emparelhados e ao passo, nos censuramos rindo: foi mal! Naquele tempo não se usava esta expressão. Mas o sentido do nosso acesso de riso era exatamente este: conscientes do erro, não arrependidos mas profundamente divertidos. 
Hoje conversei horas com ele. Espantoso! As mesmas palavras e os mesmos códigos de mais de sessenta anos atrás. O “lembra?” pontuou palavras de lá e de cá entremeadas de informações e comentários do “hoje”, também de lá e de cá, dando a sensação de que não havia a distância criada por tantos anos passados. Vai ver esta não existe mesmo. Memória tem lá parâmetro, gente? É como o pó de pirlimpimpim da Emília: pula-se de lá para cá em segundos. Dou-me conta de que preciso ir vê-lo. Abraçar gostoso e conversar na varanda junto a todos que se foram. Por que onde estivermos eles estarão provocando risos e sorrisos.
Eu deveria - se não fosse agnóstica - agradecer diariamente a Deus por esta santa família que me desvendou, muito antes de Nelson Rodrigues, a vida como ela é. Dizem (sei lá eu quem “dizem”) que angustias do passado impedem que se viva sem angustia no presente. E não é que eles me salvaram deste horror com uma terapia preventiva? Maluca, mas muito eficaz. Quando morreram já me haviam dado alta. Não pintaram a vida cor-de-rosa, não! Longe disto. Mas jamais criaram angustia. Criavam, sim, a consciência de que mesmo quando fosse difícil não seria o fim do mundo.
Lembro-me de meu pai dizendo que livre arbítrio só existia no momento em que se tomava uma decisão ou um caminho. A partir da decisão que eu tomasse estaria irremediavelmente condenada a tudo de bom e de ruim que estaria nela embutido. E alertou: fica de olho. Bom e o mau sempre fazem parte das conseqüências de qualquer decisão! Sei lá como conseguiu deixar isto claro sem causar a tal angustia impeditiva de um futuro livre dela. Talvez por que desde que nasci me havia feito presente de armas e instrumentos (que foram mudando a cada idade) para que eu pudesse enfrentar os “ruins” sem que isto impedisse usufruir os “bons”. Neste mesmo sentido (nem sempre tão explícitos, mas na prática) também se empenharam os outros.

E foi assim que aportei nos oitenta, nas crônicas, na bisavó, na vida profissional, nos filhos, nas netas e nas histórias de família tão verdadeiras. O bom e o ruim aconteceram – e como! – mas fui dando conta. Nem sempre da melhor maneira ou com total competência. Longe disso! Mas o bastante para impedir amargura, culpa, frustração e desânimo. Que gente legal aquela. Anjos da guarda que me fizeram entender, muito depois de terem partido, o sentido do que me disse um muito querido amigo, Alcione Araujo: implacável o tempo não para; mas, cá pra nós, a vida é ruim, mas é muito boa! 

domingo, setembro 22, 2013

A LÓGICA DO CONFORME

Acho que nem Ionesco não seria capaz de produzir este extraordinário diálogo que mantive com um rapaz coberto de tatuagens no posto de gasolina do Humaitá. Até hoje não me refiz, confesso, ao perceber que a lógica que tanto me encanta pode tornar-se um total absurdo.

-   Tia, tu tem um celular aí pra me quebrar uma? O telefone do posto tá fora. 
-   Não! Mas, meu querido, eu não sou sua tia.
-   Eu também não sou seu querido.
-   Touché!
-   Quê?
- Estou dizendo que você tem razão. Que acertou na mosca, ou melhor, em mim.
-  Essa palavra quer dizer tudo isso? Caraca! É francês, né?
-  É.
-  Saquei! Estudei isso. Mas essa palavra, não dei, não.
-  Imagino! 
-  Tu é francesa?
-  Não.
-  Então por que tu tá falando francês?
-  Saiu sem pensar.
-  E quando tu não pensa, tu fala francês?!
- Não! Quer dizer, falo. Ora, sei lá. Que conversa mais idiota. (...) Moço! Me vê aí um pacote de Free maço. 
-  Pacote?! Caraca! Tu vai fumar tudo isto?!
-  Vou. Quer dizer, não. Ora, é pra ter em casa. Sabe o que é mais? O que é que você tem com isto?
-  Foi mal. Foi mal. Eu não fumo.
-  Ótimo! Não deve mesmo.
-  Se tu acha isso por que é que ta comprando cigarro?.
-  Me deixa em paz, garoto! Vai cuidar de sua vida!
-  Menos, tia, menos. Manéra!
-  Já falei que não sou sua tia.
-  Tu pode falar francês e eu não posso falar tia? Qualé?
-  Não gosto de ser chamada de tia, só isto.
-  Os filhos de tua irmã te chamam de que?
-  De nada. Não tenho irmã.
-  Nem irmão?
- Os filhos dele me chamam de tia porque são meus sobrinhos. Você não é. E pára de me fazer perguntas idiotas!
-  De vó, pode?
-  O que?!
-  Chamar de vó, pode?
-  Você não pode me chamar de nada! Não conheço você e você não me conhece. Eu só vim comprar cigarro e você não sei o que veio fazer aqui além de me aborrecer.
-  Tá legal. Tô mesmo de bobeira. Mas saca só uma: tu fuma e não pinta os cabelos.
-   E daí? O que tem uma coisa a ver com a outra?
-   Só tem.
-   Tem o quê?
-  Agora é tu que tá me fazendo pergunta, sacou? Ai diz que não é pra falar.
-  É que você disse uma coisa sem sentido.
-  Jeito maneira! Eu sei da coisa.
-  E que coisa é esta que você sabe?
-  Prestenção! Uma minha vó não pinta cabelo e não fuma.  Outra minha vó pinta cabelo e fuma. Sacou essa?
-  Não. Não saquei essa porque não faz o menor sentido.
-  Pra tu não faz sentido porque tu quer fumar. Tu não tá sendo conforme. Agora te peguei!
-  Pegou o que, garoto? Que negócio é este de conforme? 
-  Tu não sabe?! Tu fala francês e não sabe? Caraca, tia! Tu não é conforme mesmo.
-  Escuta, você não tem mais nada pra fazer, não?
-  Não! Tô esperando uma gatinha. Conheci na praia.
-  Bom pra você. Agora boa noite, tá?
-  Sei não...
-  O quê é agora?
-  A gata... ela sapeca uns troço no cabelo. Deu pra sacar. Acho que pinta eles.
-   E fuma?
-   Não!
-   Ah! Ah! Quem te pegou agora fui eu! Ela também não é conforme!
-   Tu não saca mesmo nada, tia! Esse conforme que eu to falando é só das tias! 
2005


sábado, setembro 21, 2013

UM EXTRAORDINÁRIO PROFISSIONAL

Rodolfo não é seu nome verdadeiro. Uso o verbo no presente, mas não sei se ainda está entre nós. De qualquer modo acho que devo preservar sua real identidade embora ele próprio se orgulhasse muito da estranha e rara e profissão que havia escolhido e que exercia com maestria. Rodolfo graduara-se em “amigo de rico”.
Quando o conheci, colega de classe no científico do Andrews, já ensaiava os primeiros passos nesta profissão, usufruindo das benesses que as fortunas de alguns poucos colegas ofereciam: lanchas, festas e casas de verão eram freqüentadas por Rodolfo com uma freqüência espantosa. Claro que havia um preço a pagar: copiar pontos, responder chamada, dançar a noite toda com as feias irmãs dos colegas abonados, encantar as mães com frases de rapaz bem educado e respeitador, e que mais sei eu.
Justiça seja feita não era só a parte financeira que o interessava. A “cultura” dos ricos o fascinava. O que possuíam, o que usufruíam, era um sério objeto de estudo para Rodolfo que se empenhava para adquirir o “savoir faire em toda e qualquer situação vivida pela classe favorecida. Isto é claro, não lhe deixava tempo para se dedicar às matérias escolares tornando improvável  o ingresso numa faculdade. Preparava-se então para garantir o sustento na profissão a que se dedicava. Fala-se muito hoje no “enochato”, mas nos meados dos anos 40, Rodolfo já era um.
O perdi de vista quando terminei o científico que ele tentava sem muito sucesso concluir. Como última lembrança me havia ficado um incidente ocorrido em Cabo Frio quando a turma por lá passou um fim de semana. Ao passarmos em frente à casa do Magalhães Pinto, na hora do almoço, podia-se ver através do portão várias pessoas em volta de uma mesa, numa refeição ao ar livre. Rodolfo, hipnotizado pela visão, maravilhado, sai-se com esta: os Olha só os Magalhães Pinto! O que será que eles comem?!
Anos depois, já casada e morando em Salvador, vim ao Rio passar férias e num jantar encontro Rodolfo acompanhado de um paulista quatrocentão, riquíssimo. Melhor seria dizer acompanhando por que segundo me contou grudara-se ao sujeito do momento em que o conheceu. Encontrara nele uma verdadeira mina. O homem aportara no Rio, em depressão, por ter sido traído pela mulher e encontrou em Rodolfo um delicado e compreensivo ouvinte de suas desventuras.
Rodolfo organizou um programa de recuperação, caríssimo e de grande efeito: pequenas viagens, teatros, concertos, jantares requintadíssimos e fins de semana em Cabo Frio aliados às apresentações feitas a toda “carteira de ricos” que ele havia formado durante anos. Partimos amanhã para Bariloche, disse-me um Rodolfo, radiante. Para maior comodidade o senhor o havia convidado para instalar-se no Copacabana Palace, onde havia se hospedado e, pela manhã, à beira da piscina, elaboravam planos para o dia. Um grandor! A meta confessou-me, Rodolfo, era Paris. Mas obedecendo a um gradativo “upgrade na programação das viagens Salvador estava prevista. Procuraremos você, disse-me ele condescendente já que eu, de direito, não figurava no elenco de pessoas nas quais valia a pena investir. Creio que meu marido meio francês garantia certa importância.
De fato, nos procurou. Mais do que isto nos convidaram para jantar no Anjo Azul, uma espécie de “cave” que embora não inacessível no preço entrava na categoria do pitoresco. Neste jantar ocorreu o episódio que demonstrou o profissionalismo de Rodolfo. Já alterado pelo vinho, caríssimo e raramente consumido ali, como denunciou a expressão do garçom, desmancha-se o quatrocentão em elogios a Rodolfo garantindo mesmo que lhe havia salvado a vida. O teor etílico provocou confidências impróprias para nossos ouvidos de quase desconhecidos. Chegara ao Rio um farrapo humano e aos poucos foi readquirindo a alegria de viver. Pensara nunca mais voltar a São Paulo, dilapidando a fortuna da família em orgias e bebidas e agora, tinha certeza, poderia reassumir os negócios de cabeça erguida e com entusiasmo. Ao ouvir esta última declaração Rodolfo empalideceu. Via escapar-se das mãos um verdadeiro tesouro.
Foi aí que competente e decidido, numa voz pausada e coberta de carinho, esquecido de nossa presença, passou a alertar para o perigo deste retorno. Não era prudente. O mundo é cruel e as pessoas mais ainda. Marido enganado leva anos para se livrar desta pecha. É por muito tempo um ser ridículo. É injusto, mas é assim. Mais que isto a distância tem o dom de mascarar sentimentos. Voltar a São Paulo significaria certamente rever a adúltera que ele pensava ter esquecido. Não! Isto leva anos para ocorrer! Este retorno só deveria se dar quando pudesse voltar por cima, vitorioso, acompanhado por uma bela mulher que sobrepujasse em tudo a pecadora que havia causado tanto sofrimento.
À medida que escutava o pobre homem foi se rendendo e uma expressão de dor passou a figurar em seu rosto até então radiante. E ele murmurou desanimado: Esta mulher não existe, Rodolfo. Ao que este retruca entusiasmado: claro que existe, amigo! Em Paris! E nós vamos a procura dela!

2008

sexta-feira, setembro 20, 2013

MEMÓRIAS DO PROSTÍBULO

Sempre ouvi dizer que na velhice vive-se de memórias. Embora eu não “viva” delas lá vem um dia que ela - a memória - faz das suas. Será uma choramingação geriátrica? Não importa. Hoje dela. A esta altura, pelo título, vocês podem estar imaginando que vou brindá-los com um relato escabroso deixado escapar pela idade em que a censura nos abandona. Não é bem isto mas a memória de um prostíbulo é  bem viva em mim. Não! Eu não o frequentava! Morava em frente a um.  
Aconteceu assim: tendo meu marido sido transferido para Recife para lá me mandei pioneira, para providenciar moradia. Eu  procurava uma casa perto da praia e da Base Aérea. Para meu espanto encontrei uma maravilhosa (tinha até um lago com repuxo), numa rua de terra, perpendicular à Praia de Boa Viagem. O valor do aluguel era inacreditável de tão barato. Escarafunchei tudo para descobrir um defeito. Nenhum! O lugar era um tanto deserto o que era ótimo pelo silêncio. Em frente uma enorme casa que me pareceu inabitada. Aluguei na hora e me mandei de volta para providenciar a mudança e trazer as crianças.
No dia em que a mudança chegou a casa em frente ainda parecia deserta. Isto é, até as seis horas da tarde quando se abriram as janelas e um movimento de carros intenso começou. Era um prostíbulo! Explicava-se o valor do aluguel. Resignei-me: certamente não me incomodaria, nem eu a este.
Poucos dias depois da mudança, as crianças já no colégio, ouço palmas no portão. Duas “meninas” da casa, aflitas, perguntavam se eu tinha telefone. Uma das moradoras havia despencado de uma escada ao mudar a lâmpada de um lustre que também despencou. Estava toda cortada por pedaços de vidro, esvaindo-se em sangue. Telefone eu não tinha. Mas tinha carro. Vai daí que me ofereci para levar a infeliz acidentada ao Hospital da Aeronáutica. Elas, constrangidas, acharam que por lá não seriam atendidas. Escandalizei-me: como não seriam atendidas? Eu garantia (coisa que não poderia fazer, claro). Os olhares dos médicos e enfermeiros denotaram espanto e horror. Mas – creio – a fama de protagonista de eventos esquisitos havia precedido minha chegada a Recife e minha enfática cobrança de atendimento fez efeito.
Devidamente costurada e medicada a “menina”, retornamos. Recebi agradecimentos em profusão e dei por encerrado o episódio. Pensava eu! Dois dias depois novas palmas. Agora quatro “meninas” estavam no portão, sorridentes, portando uma panela com uma galinha de cabidela (galinha ao molho pardo). Era meu pagamento pelos bons serviços prestados. Convidei para entrar. Fazer o quê? Elas, que sabiam das coisas, inicialmente recusaram o convite. Minha insistência venceu e o cafezinho de lei foi servido em meio a uma conversa animada na qual se informaram de minha vida.
Os relatos de suas vidas vieram aos poucos, bem depois. Sim, porque passaram a freqüentar minha sala durante a tarde. Histórias tristes, engraçadas, comoventes, me foram contadas numa sinceridade e numa abertura espantosas. Não exagero ao dizer que ficamos amigas e que eu sentia falta quando não apareciam. Delicadas, tinham o cuidado de jamais me convidar para ir “lá” (designação que usavam para o prostíbulo) e de nunca aparecerem quando meus filhos estavam em casa. Mas perguntavam muito por eles. Pediam para ver fotos, queriam saber o que como eram, o que faziam e estranhamente pediram para ver seus quartos e brinquedos.
Uma delas presenteou minha filha com uma família de bonecas de pano. E recomendou séria: diz pra ela que foi uma tia que ela não conhece que deu. Mas fala assim mesmo: tia. Não esquece! Obedeci. Minha filha nunca conheceu esta tia tão carinhosa. Pena! Chamava-se Iolanda, a tia. Não era o nome verdadeiro: um dia distraiu-se ao me contar um episódio em que a mãe ao falar a chamava de Severina. Fingi que não percebi. Iolanda é mais bonito, né?
Lembro-me da emoção que foi o sumiço da Das Graças. Assim da noite para o dia. A Madame ficou fula porque ela estava devendo. Como o seu mais fiel freguês também sumiu todas concordaram que ele havia tirado Das Graças da vida, mandando-se os dois para bem longe. É que se vai ter vida junto, pode ficar aqui não, disseram elas. Tudo que é gente ia lembrar que é uma decaída. As pessoas são tudo ruim, sabe? Eu sabia, sim. Os comentários que ouvia de algumas senhoras de oficial sobre minhas “amizades” assim denunciava. Mas garanto que nenhuma delas seria capaz do exemplo de delicadeza e bom gosto que me deram as “meninas”.
Convidei-as para um lanche quando soubemos de nova transferência para Salvador. Ia sentir falta delas. Foi então que a morena Jurema fez um pequeno discurso de despedida que quase me levou às lágrimas. Comovida, sob o sorriso de concordância das outras ela falou: nós queria dizer o que tu é pra nós. Então a gente reuniu e pensou o que ia fazer tu ficar alegre e feliz. E nós todas estamos falando aqui uma verdade jurada que seu marido nunca foi “Lá”. Verdade ou não, que belo presente! Talvez o mais bonito e o mais delicado que já ganhei. 
2011 

quinta-feira, setembro 19, 2013

É HORA DE RESSUSCITAR DON QUIXOTE

Sinto que é hora de ressuscitar Don Quixote. Mas não o Sancho! Este está vivo. Vivíssimo. Clonado em seu óbvio conformismo em milhares de cidadãos, sobretudo naqueles que deveriam nos orientar para um mundo melhor. Me dirão que é necessário ser assimracional. Mas, cá do meu lado, o que ando sentindo e querendo – querendo muito – é sonhar o sonho impossível. É preciso, necessário, imprescindível mesmo que meio a tanta feiura sejamos capaz de, loucos, identificar o inimigo nos moinhos de vento. Porque o inimigo real não está valendo uma luta, dentro dos conformes.
Os moinhos, tão poderosos em sua capacidade de domar o vento e torná-lo seu escravo, são exatamente aqueles que nos fazem tanto mal e que, camuflados, tentam impedir que sejamos capazes de identificá-los. Sejamos poetas em nossa revolta. Heróicos em nossa postura diante do impossível. Deixemos que em vão os Sanchos tentem nos explicar o que vai por aí. Vamos ver o que nossa loucura enxerga.
Num corcel pífio, porque outro não temos, e que seremos capaz de ver como lindo, vamos cavalgar por este país afora pregando a luta mágica, porque a real já não surte efeito. E este Rocinante tupiniquim nos levará às grandes e pequenas cidades e nós soltaremos o brado: vocês foram enganados. Sancho dirá que é assim mesmo. Mas não vamos escutá-lo. Ou melhor, vamos dar a ele a explicação mágica na qual ele não vai acreditar, mas o que importa? Sanchos são assim mesmo. Tanto os de esquerda, quanto os de direita. Proliferam, dão explicações, razões, motivos. Falam demais. Explicam, esquadrinham, investigam, justificam e chegam... ao nada.
O desamando, a ignorância, a doença, a injustiça, o desânimo, a dor, objetos de pífios projetos, leis, intenções, discussões, propostas, tudo parecendo nos conformes e até posto no papel timbrado e com fé pública, são exibidos e divulgados nas esquinas das cidades e nos rincões longínquos onde esquina não há sem que efeitos se façam. 
Vamos nos perder de amores por Dulcinéia que “teve assomos de dama, de Don Quixote foi chama e glória de sua aldeia”. Importa lá se estes assomos de dama não são vistos, reconhecidos e louvados naquelas que não damas habitam estes rincões tão longínquos? O que vamos sentir será real e nos trará momentos de ardor. Não de raiva, não de desânimo, não de impotência. Por que estes já nos cansam sentir. Não que Sancho seja mau, ou mesmo desonesto. Não! É apenas conformado com o que existe. E isto é terrível.
Me vem, de longe, a voz doce de e Seu Teófilo, sábio caipira de muita saudosa memória: “Devêra" de ser assim mesmo...  Não! Não "devêra". Nada deve ser assim mesmo. D. Quixote não deixaria que assim fosse. Iria lutar. Esbravejar. Gritar e avançar valoroso, incitando Rocinante a que o levasse a batalha. Debalde? Até pode ser... Mas como tentar valeria a pena! Justificaria uma vida como ocorreu com ele – D. Quixote. Valeu para ele que até hoje vive em sua história que sabemos, lemos, compreendemos, admiramos, nos emocionamos, mas somos incapazes de repetir.
Vamos nos tornar surdos aos apelos de Sancho que nos chama à razão. Razão que impede que dentro de nós a indignação que existe, se mostre, tome corpo e torne-se ação perdendo o início da palavra que a impede, sufoca e faz mal. Por que faz. Muito mal. Indignação sem ação “é maus” como diriam meus mais jovens conhecidos. E é, sobretudo, a estes jovens que falo. Vocês, na coragem e na falta de prudência que lhes é própria são capazes de mudar o sentido da palavra “quixotada” e torná-la significativa de uma ação de dar gosto.  Esta ação pode começar por um simples plástico colado a um carro, a uma moto, a uma bicicleta. Estes carros, estas motos, esta bikes, fazendo o papel de Rocinante, percorrerão esta cidade, e outras e mais outras e quem sabe até aqueles rincões longínquos onde a esperança há muito deixou de existir porque o “devêra" de ser assim mesmo instalou-se pra ficar.
Nestes rincões seria melhor que ao invés de plástico o grito, o alerta, o chamamento tomasse corpo nos pára-choques dos caminhões que por lá transitam mas não param carregados de comidas, frutas e até flores, mostrando a aqueles que deles só aproveitam a poeira, que em algum lugar neste País chegam para alguns estes bens que garantem a vida e a beleza do viver. 
E os olhos dos que não têm mais esperança desviariam o olhar da lona que cobre a carga, símbolo do impossível alcançar que diariamente os massacra ao passar, para a frase que resgata esta esperança: QUE SE VAYAM TODOS!  

2005