Volta e meia me vem uma sensação de estranheza com certas
palavras. Em meio a uma frase são quase como um vício de linguagem que nada
acrescentam ao que se diz ou lê. A gente não as considera. Mas eis que um belo
dia sabe-se lá por que, reboam, ressaltam e fazem pensar. Escutava eu o noticiário na televisão. Eu
sei que o verbo escutar parece estar mal colocado. Na televisão tudo é visto
também e portando eu deveria estar “assistindo” ao invés de só escutando. Mas acontece
que aqui em casa as coisas se passam diferente. Quase sempre é a televisão que
me assiste e não eu a ela. Escuto como um som ambiental enquanto meu olhar se
volta para outras paragens mais convidativas.
Mas como eu ia dizendo, escutava eu o noticiário quando a
palavra “apenas” dita sem muita ênfase pela moça bonita e estranhamente
sorridente, me deixa embasbacada: dos
quatrocentos jornalistas mortos em serviço “apenas” duzentos e cinqüenta estavam trabalhando em campos de batalha. Tá legal. Entendi o sentido, é claro. Estatisticamente deve ser pequena esta
proporção embora assim não me pareça. Mas será que “apenas” pode ser justamente
aplicado em caso de morte, qualquer que seja a quantidade? Mortes nunca
deveriam ser “apenas”.
E me dou conta de que a imprensa falada e escrita comete, quase
que diariamente, um paradoxo. Manchetes escandalosas ou palavras indignadas
descrevem alguns fatos que até nem mereceriam tanto clamor e no texto aparece
descuidada a mal aplicada palavra diminuindo sua importância: a vítima “apenas”
quebrou a perna; os assaltantes roubaram “apenas” jóias e dólares; o deputado sonegou “apenas” cem mil reais (esta última – confesso - inventei agora, mas si no e vero...). Quebrar, roubar,
sonegar são verbos que não deveriam ser modificados por “apenas”. São ações
totais qualquer que seja a proporção ou a dimensão.
Será que o uso desta pequena palavra não acaba por provocar
uma insidiosa sensação que estes fatos podem ser de somenos importância quando
não ligados a um volume significativo? Quais são os critérios que definem a
dimensão que dispensaria a palavra? Será que seu uso impensado faz com que se
crie um entendimento de que sendo “apenas” deveríamos dar graças por ser tão
pouco o que quer que seja? Cá pra mim imagino que a pessoa que quebrou a perna
ficaria indignada com o apenas. Caramba! É a perna dele! Dói muito; impede que
vá trabalhar; cria uma confusão em sua vida. E as jóias e os dólares? Não os
tenho, é verdade, mas imagino que se os tivesse e os visse surrupiados por
assaltantes ficaria desolada e quem sabe até numa situação econômico-financeira
pra lá de abalada. Vai ver eram o pé de meia de seus possuidores destinado a
lhes garantir uma velhice tranquila (velhice tranquila para mim é o máximo!).
Se fosse eu a dona deste tesouro e o visse rotulado como “apenas” me poria
enraivecida. E a sonegação do deputado que nos assalta a todos? Pode ser
“apenas”?
Sempre achei que palavras têm um enorme poder. Se repetidas –
creio - devem modificar subliminarmente alguma coisa dentro da gente. “Apenas”,
no sentido de que foi muito pouco, deve ser uma delas. O pouco não é atributo capaz de aliviar o sentido danoso, cruel e feio de alguns
fatos. Para os seres humanos que são atingidos por estes fatos que modificam
suas vidas, que viram tudo pelo avesso, que fazem sofrer, soa como uma
desconsideração vê-los avaliados como “apenas”. Parece-me uma falta de
sensibilidade e de realidade assim rotulá-los. Misturar vida com estatística é
muito perigoso.
E, nem por acaso, acabo de ler numa revista que no desabamento
da casa, numa favela da Bahia, morreu “apenas” o filho menor! O redator na
notícia parecia estar agradavelmente surpreendido com isto. Apenas o filho
menor! Tenha a gente a quantidade de filhos que tiver nenhum deles é apenas! Nunca!
Tomada por uma obsessão vou à cata da pilha de jornais com
que concorro para aumentar os rendimentos dos empregados do prédio. Começo a
busca aos “apenas”. E encontro uma quantidade espantosa. Não vou aqui
relacionar os exemplos. Todos conhecem. Todos já leram provavelmente sem se dar
conta, como eu até agora. Um alerta começa a surgir, será que estou ficando
gagá? Falta do que fazer, não é. Mil providências me aguardam e aqui estou eu
garimpando a palavra em jornais velhos me obrigando a ler as mais absurdas
notícias como a que me informa que uma BBB chorou “apenas” um pouquinho quando se sentiu injustiçada por seus iguais. Este é
um dos casos em que é impossível avaliar se a palavra está bem aplicada. Numa
total desinformação sou incapaz de formar um juízo a respeito do se passa
naquela jaula que transforma seres humanos em macacos.
O telefone me liberta da garimpagem: é um amigo. Daqueles a
quem, numa emergência, sempre se pode recorrer. Relato o que me parece ser o
início da formulação de uma teoria. Ele escuta atento sem se manifestar.
Estranho porque é sempre muito opinativo e pergunto: E aí? O que é que você acha disto? E vem a resposta firme e
definitiva: ora, você está “apenas”
divagando! Não tem a menor consistência isto! Bom, quem sabe, pelo menos
neste caso, o “apenas” pode estar bem empregado.
2007
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