Voltando
da padaria vejo Ricardinho no pilotis. Ele parece me esperar. O rosto reflete
uma seriedade diferente da que demonstra habitualmente. Há um quê de tristeza.
O tom é de recriminação:
- Você
não tava em casa. Bati muito a campainha.
- Fui
à padaria. Mas agora já estou aqui. O que é que você quer falar comigo de tão
urgente?
- Vamo
na sua casa. Lá eu falo.
Intrigada, demando o elevador, seguida pelo
menino. Sinto que será inútil qualquer pergunta. O assunto deve ser sério
mesmo. Mais uma surpresa ao entrar:
Ricardinho se instala no sofá, coisa que nunca fez. Nossas conversas são sempre
na mesa de jantar. Sento-me na poltrona em frente e aguardo. A declaração vem
num tom agressivo. De ameaça, mesmo.
- ‘Tou
indo embora, viu?
- Para
onde, Ricardinho?
- Meu
pai vai trabalhar num trabalho em São Paulo. Nunca mais eu volto. Você não vai
me ver mais, viu?
- Ah!
Ricardinho, que pena!
Sinto
que meti os pés pelas mãos: deveria dar o tom de “coisa boa”, mas não consigo.
Não posso imaginar o pilotis, a vida mesmo, sem Ricardinho. Ele me olha
ansioso.
- Você não quer que eu vá. Eu achei que você
não ia querer mesmo.
- Não quero, não. Não quero mesmo. Vou sentir
muita saudade de você.
- Eu achava que ia.
Esqueço
da criança e me dirijo ao amigo.
- Por que? Por que você achava?
- Por que eu achava, ora!
Ricardinho
abaixa a cabeça. Parece não querer me encarar e dispara:
- Eu acho que você gosta de mim.
- Muito. Gosto muito. Desde que você queria me atropelar com velocípede.
Um
sorriso bonito aparece no rosto do menino.
-
Você lembra disso? Eu era muito pequeno.
-
Claro que me lembro. Lembro de tudo.
-
Tudo o quê?
- De nossas conversas e de como você me
explicou que Papai Noel existe e não existe. Foi muito legal aprender isto.
-
Você aprendeu coisa comigo?!
-
Muito. Aprendi muito com você.
- É por isso que você gosta de mim?
- Por isto e por muitas outras coisas. A gente
nunca sabe bem por que gosta das pessoas.
- Você não tem vontade de morar
em São Paulo?
- Se eu não tivesse tanta gente por aqui de
quem eu gosto acho que até me mudava para ficar perto de você.
Ricardinho
ri.
-
Você tá é pregando mentira.
- Não estou não. Você é meu amigo. E um amigo é coisa muito importante.
-
Você acha engraçado velho ser amigo de
criança?
-
Não. Acho bonito. Você acha engraçado criança
ser amigo de uma velha?
Sério
ele não responde. Depois de um enorme silêncio, diz:
- Agora eu queria beber água de côco. Eu não
vou mais beber com você quando eu “ir” para São Paulo.
Em
silêncio bebemos. Ricardinho se levanta solene e estende a mão.
-
Agora eu vou s’imbora.
Aperto
a mão do menino. Nossa relação sempre se revestiu de certa formalidade. Acompanho a figurinha até o elevador. Já dentro, ele se volta para mim.
-
Eu acho bom ser amigo de velha.
A
frase seguinte vem com algum esforço, a mão já apertando o botão para descer.
-
Eu nunca mais vou ter amiga velha.
E lá
se vai pra sempre meu pequeno amigo. Vontade de rir e de chorar. Não me deu
endereço, não me pediu o telefone, não disse que vai escrever. Sou uma página
virada em sua vidinha. Sábio menino. Vai me fazer falta. Muita. Mas me resta o
orgulho de ser a única amiga velha.
2010
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