terça-feira, novembro 12, 2013

PARTIDA DE UM AMIGO

Voltando da padaria vejo Ricardinho no pilotis. Ele parece me esperar. O rosto reflete uma seriedade diferente da que demonstra habitualmente. Há um quê de tristeza. O tom é de recriminação:

-  Você não tava em casa. Bati muito a campainha.
-  Fui à padaria. Mas agora já estou aqui. O que é que  você quer falar comigo de tão urgente?
-  Vamo na sua casa. Lá eu falo.

Intrigada, demando o elevador, seguida pelo menino. Sinto que será inútil qualquer pergunta. O assunto deve ser sério mesmo.  Mais uma surpresa ao entrar: Ricardinho se instala no sofá, coisa que nunca fez. Nossas conversas são sempre na mesa de jantar. Sento-me na poltrona em frente e aguardo. A declaração vem num tom agressivo. De ameaça, mesmo. 

-  ‘Tou indo embora, viu?
-  Para onde, Ricardinho?
- Meu pai vai trabalhar num trabalho em São Paulo.  Nunca mais eu volto. Você não vai me ver mais, viu?
-  Ah! Ricardinho, que pena!

Sinto que meti os pés pelas mãos: deveria dar o tom de “coisa boa”, mas não consigo. Não posso imaginar o pilotis, a vida mesmo, sem Ricardinho. Ele me olha ansioso.

- Você não quer que eu vá. Eu achei que você não ia querer mesmo.
- Não quero, não. Não quero mesmo. Vou sentir muita saudade de você.
-  Eu achava que ia. 

Esqueço da criança e me dirijo ao amigo.

-  Por que? Por que você achava?
-  Por que eu achava, ora!

Ricardinho abaixa a cabeça. Parece não querer me encarar e dispara:

-   Eu acho que você gosta de mim. 
- Muito. Gosto muito. Desde que você queria me  atropelar com velocípede. 

Um sorriso bonito aparece no rosto do menino.

-   Você lembra disso? Eu era muito pequeno.
-   Claro que me lembro. Lembro de tudo.
-   Tudo o quê?
-  De nossas conversas e de como você me explicou que Papai Noel existe e não existe. Foi muito legal aprender isto.
-   Você aprendeu coisa comigo?!
-   Muito. Aprendi muito com você.
-   É por isso que você gosta de mim?
-  Por isto e por muitas outras coisas. A gente nunca  sabe bem por que gosta das pessoas.
-  Você não tem vontade de morar em São Paulo?
-  Se eu não tivesse tanta gente por aqui de quem eu gosto acho que até me mudava para ficar perto de você.

Ricardinho ri. 

-   Você tá é pregando mentira.
-  Não estou não. Você é meu amigo. E um amigo é  coisa muito importante.
-   Você acha engraçado velho ser amigo de criança?
-   Não. Acho bonito. Você acha engraçado criança ser    amigo de uma velha?

Sério ele não responde. Depois de um enorme silêncio, diz:

-  Agora eu queria beber água de côco. Eu não vou mais beber com você quando eu “ir” para São Paulo. 

Em silêncio bebemos. Ricardinho se levanta solene e estende a mão.

-   Agora eu vou s’imbora.

Aperto a mão do menino. Nossa relação sempre se revestiu de certa formalidade. Acompanho a figurinha até o elevador. Já dentro, ele se volta para mim.

-   Eu acho bom ser amigo de velha.

A frase seguinte vem com algum esforço, a mão já apertando o botão para descer.

-   Eu nunca mais vou ter amiga velha.

E lá se vai pra sempre meu pequeno amigo. Vontade de rir e de chorar. Não me deu endereço, não me pediu o telefone, não disse que vai escrever. Sou uma página virada em sua vidinha. Sábio menino. Vai me fazer falta. Muita. Mas me resta o orgulho de ser a única amiga velha. 

2010



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