sexta-feira, fevereiro 28, 2014

QUEM AMA O FEIO...


            Só namoro homens bonitos” dizia Cremilda. Bonita que só ela jamais havia encontrado dificuldade em manter esta máxima que mais era uma promessa.  Até que surgiu Jacinto. Feio que só ele. Um susto mesmo! O aceitar o convite para dançar no baile de formatura da Rosa foi assim como uma caridade. Surpreendeu-se pensando “como ele dança bem!” enquanto girava em seus braços. Pouco falaram. Ele disse o nome; ela disse o dela e ficou por ai.

Depois o viu dançando com Soninha que ria muito de alguma coisa que ele havia dito. Isto a perturbou: com ela não havia falado praticamente nada. Coisa esquisita. Curiosa perguntou à Soninha: “quem é?” Ficou no espanto da resposta: “é um sujeito incrível. Divertidíssimo. Marcamos um cinema amanhã". Aquilo, sabe-se lá por que, a incomodou. Jacinto não havia demonstrado o menor interesse por ela.

Dias depois, na praia, Jacinto aparece na barraca acompanhando Soninha e, num à vontade incrível, enturmou-se de estalo. Encantador parecia ter sempre pertencido ao grupo que o aceitou de imediato. Fora um “como vai?” distraído e sorridente, não lhe dirigiu palavra. Isto a deixou embasbacada. Havia-se habituado a ser o alvo das atenções dos rapazes e a aparente indiferença de Jacinto era desagradável. Inexplicável mesmo. A coisa piorou quando ele pediu emprestada a prancha de surf do Pedro... e deu um show! Soninha encantada com o sucesso de Jacinto, deitou falação: “ele morou muito tempo na costa oeste dos Estados Unidos. Fez universidade lá”.  Não resistiu e perguntou à Soninha: “você tá ficando com ele?” Ela sorriu e não respondeu. “Vai ver tem vergonha de dizer”, ela pensou, “ele é tão feio”.

A tarde já ia caindo quando a turma saiu da praia combinando o encontro para mais tarde à noite. Ai ela não agüentou e perguntou: “você vai?” E não entendeu porque ficou decepcionada com a resposta: “não vai dar...” Naquela noite a reunião da turma no bar de sempre foi uma droga. Jacinto não saia de sua cabeça.  Insistiu com Soninha: “você está ou não está ficando com ele?” Ela riu e respondeu: “bem que eu queria. Ele é o máximo. Mas acho que tem alguém na jogada”. E ela, contrariando sua máxima resolveu: ia procurar se aproximar dele. Mas não contava com o sumiço. Porque ele sumiu, evaporou-se! Atacou Soninha de perguntas. E ela ou fez-se de desentendida ou não sabia mesmo onde ele andava. Fato é que nem o número de telefone foi conseguido.

E Jacinto virou uma obsessão. Já nem dormia direito e, quando dormia, sonhava com ele, feio daquele jeito, sobre as ondas, surfando. Um dia, saindo da Faculdade o viu de longe, na direção de um carro estacionado bem em frente.  O coração parou e ela dirigiu-se para o carro disposta a abordá-lo... e ele engrenou uma primeira e partiu sem perceber sua presença.  Ficou ali tremendo, quase chorando. Podia aquilo? A partir daí todos os dias deixava-se ficar sentada na escadaria da Faculdade, por horas a fio, na esperança de que ele reaparecesse. E nada. Ficou triste, muito triste. Tão triste que pensou até em não ir à festa que Soninha dava todo fim de ano e que era um estouro. Soninha escandalizou-se: “só faltava mais esta! Tem que ir! Qual é!”

E ela fez das tripas coração e lá se foi sem mesmo caprichar no visual. Deixou-se ficar na varanda, olhando mar que ele dominava tão bem. De repente uma voz a acorda do sonho: “como vai?” e ela foi às nuvens. Era ele! Sorrindo para ela. Sem dizer palavra ele a pega pela mão e saem dançando. Ali mesmo na varanda onde se deixaram ficar por horas. Foi tão estranho. Parecia que sempre haviam se falado. As palavras vieram soltas, sem censura, verdadeiras. Foi bom. Foi tão bom. Quando à meia noite foram chamados para cantar o parabéns pra você, entraram na sala de mãos dadas como se estas sempre estivessem estado unidas. Viram o dia amanhecer juntos, muito juntos.


Dias depois ela achou que deveria apresentá-lo aos pais. Afinal o namoro estava firme e até faziam planos para o futuro. E ele veio, convidado para um almoço. Com sempre encantou a todos. Houve somente um pequeno incidente. Quando ele se foi ela encheu os pais de perguntas. Queria, precisava muito saber o que haviam achado.  Radiante ouviu dos pais e do irmão os comentários mais que favoráveis. Até o momento em que a mãe incauta declarou: “pena que é tão feio!”. Furiosa, agressiva até, ela responde aos gritos para espanto de todos: “Feio?! Ele?! Pois fiquem sabendo que Jacinto é um gato!” 

quinta-feira, fevereiro 27, 2014

FATAL ERRO DE JULGAMENTO

           Rosalinda e Peter formam um lindo casal. Por onde passam olhares acompanham com admiração as deslumbrantes figuras que se rivalizavam em beleza. Difícil dizer qual dos dois o mais bonito. Ela, negra brasileira de olhos verdes; ele, sueco de cabelos louros e olhos azuis. São tão bonitos que nem os mais preconceituosos ousariam condenar a formação do casal que se complementa em tudo. Até na maneira de ser: Rosalinda é expansiva, risonha, comunicativa e fala pelos cotovelos; Peter doce, calmo e calado. Muito calado. Até mesmo com a mulher pouco fala. Seu amor, do qual ela não tem a menor dúvida, revela-se através de gestos carinhosos e olhares apaixonados que demonstram o deslumbramento que a mulher lhe causa. Ao invés de falar prefere ouvir as confidências de Rosalinda. Estas são, quase sempre, sobre o sonho e o desejo que mantém desde criança: atuar em um filme.

O mutismo de Peter, estranhamente, não ocorre quando fala ao telefone! Nestas ocasiões ele é capaz de falar longamente. Nunca se soube por que razão é assim. Mas o fato é que é e sempre que necessário um maior tempo de discurso liga para a mulher e deita falação. Isto não incomoda Rosalinda que até vê certo charme nestas comunicações telefônicas. Em todos os anos de casados apenas um pequeno senão havia balançado as certezas de Rosalinda sobre o marido: um comentário inusitado que ele havia feito sobre Amanda, a mulher de um amigo. Peter surpreendera a todos ao comentar os lindos cabelos da moça. Um absurdo para quem nunca, mas nunca mesmo, emite qualquer opinião sobre alguém. Rosalinda sentiu um aperto no coração. Os cabelos da amiga eram lisos e lhe caiam pelos ombros num movimento leve, delicado, suave. Os cabelos de Rosalinda, cuidadosamente tratados, também são lindos formando uma perfeita moldura para seu rosto, mas não são lisos e muito menos longos. Ao contrário formam um capacete negro que fazem com que Antunes, o profissional que deles cuida semanalmente, se dirija a ela como “rainha etíope”. O elogio nunca surtiu efeito.


Rosalinda guarda dentro de si um desencanto: o marido não gosta de seus cabelos e desejaria que os tivesse diferentes. Jamais ousou perguntar. Uma das maiores qualidades de Peter é uma extraordinária sinceridade. Vai que ele confirma suas desconfianças? Seria insuportável saber a verdade; ouvi-la de seus lábios. Vai daí que ela guarda esta mágoa em silêncio. Ontem, Peter ao acordar comunica que um amigo de infância, um grande amigo, está no Rio de Janeiro e ele o havia convidado para jantar no dia seguinte. Pede então a ela que se prepare em sua melhor forma e, horror dos horrores, sugere que vá ao salão para arrumar os cabelos. Coração sangrando Rosalinda marca hora para o dia seguinte.

E é uma Rosalinda destroçada que entra no salão de Antunes. Olhando-se ao espelho ela toma coragem e decide: pede a Antunes que providencie um perfeito alisamento em seus cabelos colocando apliques que os torne longos, muito longos. Em vão Antunes tenta demovê-la deste propósito. De todas as suas freguesas Rosalinda é a que mais lhe causa orgulho. Em vão: Rosalinda exige. E é um Antunes triste que se desincumbe da tarefa de eliminar o volume majestoso da cabeça de sua mais querida freguesa. Obra terminada Rosalinda pensa o quanto Peter ficará orgulhoso de exibi-la ao amigo. Finalmente o único senão que havia entre eles havia sido eliminado.


Neste momento o celular toca. Ela sorri: é Peter que, com certeza, precisa comunicar alguma coisa que merece uma falação mais longa. Vai ver quer discutir sobre qual restaurante merece a ida de um sueco recém chegado ao Brasil. E Peter começa a falar excitado. Não vai conseguir guardar o segredo até a noite. Precisa contar a verdade. Seu amigo, um cineasta sueco, procurava uma negra brasileira belíssima para protagonizar seu próximo filme. E Peter pensou: mais bela que minha Rosa Linda impossível. Então ele havia enviado fotos dela e o amigo havia enlouquecido. Estava vindo ao Brasil para conhecê-la e, certamente, contratá-la. Peter comenta: você é exatamente o que ele havia sonhado. Ficou maravilhado com seus cabelos!!! E completa o horror: como eu, meu amor, são lindos! Em desespero Rosalinda olha sua imagem no espelho.  

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

O ROSTO DESEJADO

Maria do Socorro escondida no quarto chora em silêncio. Choro manso de muitos anos. Em seu ateliê Maurício pinta mais um retrato. As telas encomendadas por noivos, maridos e pais revelam belos rostos que a atormentam. Nunca, nunca mesmo, o marido a quis retratar. E isto dói! Um dia, ficou arrasada com a pergunta que lhe fizeram: ele não pintou  um retrato seu? Antes que pudesse responder Maurício adiantou-se como se a pergunta fosse a ele dirigida: pra quê?  Ele me acha feia, ela pensou, e felizmente não esclareceu o “pra quê”. E então veio o medo de que um dia ele, distraído, verbalizasse toda a verdade.

No casamento de muitos anos Maurício era de pouco falar. Vivia lá pra dentro de si mesmo, pensando sabe-se lá o quê. Às vezes o pegava olhando para ela com uma expressão estranha. Um dia tomou coragem e quis saber a razão daquele olhar mudo. Vai ver significava a comparação de seu rosto com todos aqueles outros. Tão lindos. E ela feia, tão feia. Mas apenas riu. Ele era assim. Nunca dizia nada. A paixão com que ele a possuía nas noites, muitas noites, era por ela entendida como o desejo provocado pela beleza daquelas moças. É isto. Ele as deseja. E como não as pode ter as recria em meu corpo. 

Passou a odiar as telas. Era um alívio quando as via sair porta afora levadas pelos noivos, maridos e pais. Menos uma, pensava. Mas não adiantava porque surgiam outras e outras. Resolveu não entrar mais no ateliê.  Era insuportável a visão do que era criado pela paixão, pelo desejo do marido. Sofria ao ver a volúpia com que o pincel e a espátula – extensões de suas mãos – acariciavam a tela onde os rostos pareciam  mais vivos do que os modelos. As moças – tão belas -  não representavam uma ameaça. Iriam desaparecer nos braços de seus pais, maridos e noivos. Mas as imagens na tela, estas não. Pertenciam a Maurício, para sempre. Ficariam gravadas em sua imaginação de criador.

Naquele dia o sofrimento se fez maior: todos os fantasmas que a atormentavam seriam expostos e ela deveria acompanhá-lo ao coquetel de abertura do evento. Tentou desculpar-se. Melhor seria não ir. Inventou um motivo tolo que provocou em Maurício aquele olhar mudo e esquisito.  Seria um suplício vê-las num conjunto ameaçador e, o que seria pior, ser vista por Maurício e por todos, numa comparação cruel. No espelho, o rosto coberto de lágrimas não ajudou. Feia! Sou feia! Sabe-se lá porque de repente se viu possuída por um sentimento novo. Raiva. Era raiva, sim, o que sentia. Pela primeira vez resolve partir para o ataque.

Enxuga as lágrimas e sai à procura da beleza que tanto lhe falta. Volta horas depois com um enorme embrulho. De novo em frente ao espelho olha esperançosa a profusão de produtos de maquilagem que vão garantir o milagre da beleza.  Frenética começa a obra. Mas nada parece dar certo. A ideal da beleza vai ficando cada vez mais distante. A depressão e a tristeza tão suas conhecidas de novo se instalam e as lágrimas voltam aos olhos borrando mais ainda a obra imperfeita que suas mãos inábeis criam ao manejar as sombras, as bases, os lápis, os batons.


E é nesta desolação que escuta a voz de Maurício: vem. Já estamos atrasados. Derrotada, ela pensa: desisto!  Um dia teria que acontecer. Nem se preocupa em lavar o rosto. Abre a porta e se revela a Maurício: sou feia, não sou? Diz! Fala. Mais uma vez aquele olhar estranho e mudo. Para sua surpresa ele a pega pela mão e delicadamente a faz sentar-se frente ao espelho. Com enorme carinho começa a modelar seu rosto. Por suas mãos mágicas os cremes, as sombras e os batons realizam o milagre da beleza. E ela é a tela. Maravilhada, vê surgir no espelho a imagem de uma mulher bela. Maurício já terminou a obra, mas estranhamente não parece surpreso com sua criação. Seu olhar é o olhar de sempre. Aquele que ela não entende. Aquele do qual tem medo. E ela suplica: não me olhe assim. Por uma noite você esqueça que sou feia. Você conseguiu. Todos que lá estiverem  me verão bela. E é deslumbrada que escuta a revelação na voz do marido, que se faz doce, tão doce: É!  É isto eu que eu mais temia. Eu sempre te soube linda. Mas te queria só pra mim! Se eu te transpusesse para tela, as outras, todas as outras, se veriam feias. 

terça-feira, fevereiro 25, 2014

O BROCHE DE DONA OTÍLIA

D. Otília vive seus últimos momentos. Ao redor da cama todos os membros da família Mendonça aguardam ansiosos. O testamento da velha prima, podre de rica, nunca havia sido revelado guardado que estava a sete chaves numa firma de advogados. Durante anos esperavam por aquele momento. Afinal eram os únicos parentes. Nos últimos dez anos, quando a velha não mais se levantava, revezavam-se em visitas relâmpago, cada um procurando suplantar o outro com frases feitas e declarações fingidas. A velha a tudo escutava muda, mas sorrindo. Um sorriso muito estranho, mas não de menos, um sorriso. E este acalmava as dúvidas: era evidente que havia entendido.  Vai ver não falava, impedida pela emoção. Ou, de tão velha, esquecera-se das palavras. O fato é que não falava.

O médico se aproxima da cama e se inclina sobre a velha senhora. Levanta-se encarando a família e murmura: acabou. Os Mendonça mal disfarçam a alegria. Uma única pessoa se entristece: Margarida, a acompanhante que a tudo assistia a um canto do quarto. Afeiçoara-se à velha. Foram anos de convívio e de conversas. Conversas, sim. Com Margarida o sorriso se traduzia em palavras. E foi assim que ao longo de intermináveis noites e dias trocaram histórias de vida. Margarida encontrou na velha uma ouvinte como nunca havia tido.


Criada num orfanato havia aprendido a calar-se sobre si mesma. Lá não havia o individual. Apenas o coletivo importava. Maravilhou-se quando logo nos primeiros dias de convívio D. Otília ordenou, quase severa: fale-me de você. E ela percebeu, pela primeira vez na vida, que existia como pessoa. E deitou falação. Falava de tudo, do que sentia, do que pensava e, sobretudo, falava de Jonas! Jonas, o bombeiro por quem havia se apaixonado. E foi correspondida! Tanto que se casaram. Nos últimos anos, o assunto ainda era Jonas.  D. Otília se interessava e curiosa perguntava: nada lhes falta agora, Margarida? E a moça: nada, D. Otilia, nada mesmo.  D. Otília duvidava: alguma coisa vocês hão de querer!  A moça ria gostoso: deixa pra lá, D. Otília.

Margarida adorava as histórias de que a senhora lhe contava. Lembranças da infância, juventude e, sobretudo, do casamento muito feliz com o Comendador que já se fora há anos. Depois de sua morte Margarida havia sido sua única amiga. Faziam-lhe bem as conversas com a moça. Como Margarida, não havia tido filhos e, também como ela, havia tido uma infância solitária. Família apenas aqueles primos distantes que a tinham como louca. E ela ria, ria muito, imaginando o que dela pensavam. E perguntava à Margarida: nunca ouviu qualquer comentário deles sobre o broche? A moça bem que tinha escutado, mas se absteve de falar. Não era uma leva e traz! Mas mesmo ela achava esquisito aquele broche de chumbo sempre, pregado à camisola de linho finíssimo. Por várias vezes quis perguntar a D. Otília o porquê daquilo, mas continha-se. Afinal era a única manifestação de insanidade da velha e não fazia mal a ninguém. O broche, uma bijuteria muito antiga, representava um enorme macaco com olhos de pedras falsas vermelhas. Um horror.

E eis que chega o dia da abertura do testamento. Estarrecidos os Mendonça escutam: todos os meus bens para o asilo em que Margarida foi criada. Todo o valor deve ser usado para que as crianças tenham todas as possibilidades, sobretudo a de serem escutadas. Uma única exceção: o meu broche deverá ser dado à Margarida e a Jonas. E este deverá providenciar para que seja derretido. Foi um Deus Nos Acuda! Os primos tentam, sem sucesso, embargar o testamento. Impossível. Os advogados, ainda que o achassem estranho, atestam a sanidade da senhora na época em que havia sido redigido.


Margarida exulta com a doação ao orfanato. E confidencia a Jonas: quando ela me perguntava o que eu queria eu tinha vontade de dizer que era isto. Mas nunca tive coragem! Envergonhada confessa: eu também queria dizer que a gente queria comprar uma casa. Mas ela podia pensar que eu estava pedindo, não é? Jonas riu: ela bem que podia ter adivinhado isto também! Mas vamos lá derreter o macaco. Os dois, solenes como numa cerimônia fúnebre, assistem o desfazer do broche numa panela sobre o fogão. Espantados escutam o riso maroto e alegre de D. Otília, no momento em que da cabeça do macaco surge um enorme diamante!  Outro logo depois é revelado na barriga. Dentro da panela, reluzindo, estava a nova casa.  

segunda-feira, fevereiro 24, 2014

POR UM FIO


Foi mesmo por um fio (e não é força de expressão) que a vida de Claudionor se transformou num inferno. Tudo começou com um sonho que, como todos os sonhos parecia irrealizável, mas era tão gostoso imaginar que um dia, quem sabe... Sonho de artista. Por que Claudionor era um. E dos melhores. Como tal havia se revelado desde muito pequeno. Foi um espanto quando aos quatro anos, munido de uma tesourinha sem ponta, realizara um corte nos cabelos da boneca da irmã com tal perfeição e requinte que deixou a todos abismados.

À medida que os anos passaram deixou de lado as bonecas e passou a ser responsável pelo corte dos cabelos da irmã, das primas, da mãe e depois de quem mais aparecesse buscando sua mágica tesoura. Foi inevitável a sua profissionalização aos dezoito.  Em pouco tempo tornou-se dono do salão mais badalado da região. Por que sua fama havia extrapolado o bairro e até mesmo a cidade.

Foi ai que o sonho se tornou obsessão: a procura da cabeleira perfeita. Aquela que pelo brilho, textura, volume e cor prescindisse de qualquer tratamento e fosse digna apenas de uma tesoura: a sua. Só então seu talento poderia ser revelado em toda plenitude. Claudionor não era um homem reservado e descrevia a torto e a direito, a quem quisesse ouvir, os encantos daquela mulher ideal dotada com a mágica cabeleira. Em sua imaginação era linda, deslumbrante mesmo e no dia em que a encontrasse com ela se cairia de amores. E, mais ainda, não tinha dúvidas quanto à retribuição deste amor pela bela sonhada.

Em suas horas de folga andava pelas ruas, olhar atento, fixado nas cabeças passantes que por vezes afastavam-se com medo, tal a expressão de angústia do rapaz. Na verdade ele sofria. E muito. Alguma coisa lhe dizia que ela estava perto. Muito perto. No salão tremia quando a atendente informava que uma nova freguesa havia reservado uma hora. Acendia-se a esperança: é ela! E nunca era.

No pequeno restaurante ao lado do salão, onde almoçava todos os dias, os frequentadores habituais sabiam da obsessão do rapaz e divertiam-se com sua aflição na observação das moças que passavam pela calçada. Em sua mesa, sempre em frente à janela, mal olhava o que estava comendo obcecado na busca de seu objeto de desejo. O que ele não sabia e nem sequer pressentia era que ali, era ele também era objeto do desejo de alguém. Socorro, a garçonete, uma moça muito triste e calada, morria de amores por Claudionor. O bom dia distraído que ele lhe endereçava era como poesia. Ela vivia cada noite na esperança de ouvi-lo no dia seguinte. Sabia que era o máximo que poderia obter dele e até se conformava com isto. Só não suportava a espera que lhe causavam os dias de segunda e domingo, quando não o via.

Em seu quartinho, à noite, com um prazer sensual, acariciava uma caixinha de madeira onde guardava todas as moedas que lhe haviam sido dadas, como gorjeta, por Claudionor. Eram para ela como jóias. Mais bonitas que as da rainha da Inglaterra, pensava. E o único momento em que se permitia ser feliz era quando suas mãos trêmulas de amor e desejo as tocavam. Pudera! Haviam sido tocadas pela mão dele! Mas logo lhe vinha à lembrança a bela mulher dos cabelos perfeitos descrita com detalhes por Claudionor. Então se olhava no espelho e chorava.

Sofrimento maior ainda estava por vir. Socorro recebe um telegrama de casa informando a morte do pai e convocando-a para que retornasse imediatamente para cuidar da mãe. Era a separação para sempre. À noite prepara-se para partir com um estranho ritual: feita a mala com seus poucos pertences, vestida com esmero nunca visto, coloca-se em frente ao espelho e retira da cabeça o lenço branco que sempre, sempre mesmo, lhe esconde os cabelos. E deixa cair sobre os ombros uma luxuriante cabeleira que por promessa feita a Santo Expedito das Causas Perdidas, só seria revelada a aquele que seria seu marido. O rosto, sempre triste, tão triste, emoldurado pelos cabelos tornara-se belo num passe de mágica. Mas estava coberto de lágrimas. E foi neste momento que veio a raiva. Muita raiva. Raiva que lhe traz um desejo de vingança contra quem lhe traíra sem saber.


No dia seguinte Claudionor não se dá conta da ausência de Socorro e nem mesmo percebe seu rosto descomposto na janela do ônibus que passa em frente, levando-a para sempre. Neste momento aproxima-se o dono do restaurante com um envelope a ele endereçado informando que haviam deixado em baixo da porta. Pálido e trêmulo ele retira do envelope um longo fio de cabelo. Exatamente aquele com que sempre havia sonhado e que jamais seria tocado por suas mãos num corte mágico. Era a desesperança e o fim do sonho perdido por um fio. E, ao mesmo tempo, já com uma grande distância entre os eles, Claudionor e Socorro choram em desespero.  

domingo, fevereiro 23, 2014

O PODER DO SONHO

      O que havia de mais extraordinário naquela pequena cidade eram as donas do único salão de beleza. Eram quatro e desde crianças, amigas de fé. Rosa, negra lustrosa de olhos grandes; Misuko, nisei doce e calma; Fátima, bela morena filha de libaneses e Jandira, cabelos negros e escorridos herdados dos avós índios. Acrescentando mais tempero a esta salada de raças cada uma delas caiu-se de amores pelo irmão de outra e foI correspondida.  Casaram-se no mesmo dia e as famílias, que faziam gosto, deram nó em pingo d’água para conciliar a fé de cada uma à cerimônia.

     Passaram a viver como uma comunidade em que os filhos, lindas crianças mestiças, tinham em cada um deles pais tão carinhosos quanto os próprios. Porque havia um aspecto os tornava iguais: haviam aprendido desde cedo a aceitar e valorizar a riqueza das diferenças. As quatro se rivalizavam em competência e talento. Mais que isto se tornaram especialistas na criação de penteados que levavam toques de suas raças. O sucesso foi tanto que foram ficando mais ousadas: passando a agregar aos penteados objetos de adorno de suas origens que chamavam atenção naquele interior tão pacato. Quem chegasse à cidade espantava-se ao ver desfilar senhoras ostentando sobre os cabelos primorosamente arrumados penas, pentes de marfim, pedras brilhantes e conchas.

      O salão que havia sido criado para complementar o salário dos maridos na fábrica de tecidos, única razão de ser da cidade, passou a ser a principal fonte de renda e fervilhava de clientes vindos de cidades vizinhas bem mais importantes. Tudo ia às mil maravilhas até que D. Arminda, senhora do Prefeito, caiu em depressão. Era ela a líder social da cidade e uma das mais entusiastas clientes do salão. Era triste de se ver aquela mulher tão vaidosa, tão ciosa de sua aparência, transformada num frangalho: desgrenhada, metida num roupão velho e imóvel numa cadeira do quarto, apenas chorava. O médico, o padre e a família tentaram de tudo e nada funcionou.


      Foi ai que as quatro amigas resolveram entrar em campo: apresentaram-se na casa da senhora carregando misteriosas sacolas e trancaram-se no quarto com ela sem dar qualquer explicação. Durante muito tempo a família, grudada na porta pela curiosidade e pela aflição, escutava apenas murmúrios. De repente uma risada gostosa e quase caem de espanto. Era sem dúvida o riso de Arminda! Agora riam todas, falando ao mesmo tempo! E a porta se entreabre deixando passar Rosa que ordena a todos que coloquem em semicírculo como para assistir a um espetáculo. Num gesto teatral apresenta D. Arminda que surge vestida com um quimono luxuriante (traje de casamento da avó de Misuko), trazendo ao pescoço um colar de pedras da mãe de Fátima tendo os cabelos num penteado afro adornado por um cocar de luxuriantes penas coloridas. Radiante ela declara: eu havia esquecido de sonhar.

      A notícia correu célere pela cidade. E, no início, timidamente e depois mais audaciosas, as clientes do salão começaram a exigir uma sessão de sonhos. Saiam do salão travestidas nos mais estranhos aspectos... mas lindas. Estavam ousando sair da rotina entregando-se à fantasia. Filhos, maridos, irmãos passaram a ver nelas outras pessoas: mais alegres, mais moças, mais felizes. Foi uma reação em cadeia. Até a fábrica, tão cinzenta e triste, coloriu-se com operárias ostentando penteados e roupas extraordinárias. No início houve certa reação dos encarregados até perceberem que todas trabalhavam mais e melhor.


      E eis que o Governador do Estado resolve visitar a cidade. Ao descer do carro seu olhar demonstrou o espanto ao ser recebido também por D. Arminda que, como todas as demais senhoras presentes, havia passado o dia anterior no salão e apresentava uma de suas criações mais requintadas. Foi discreto, no entanto, e saudou o Prefeito perguntando: acredito que o senhor tenha agendado uma visita à fábrica. Antes que este pudesse responder, D. Arminda adianta-se: a qual das duas o senhor se refere, Governador? O Governador espanta-se: Duas?! Só tenho notícia de uma. A de tecidos. E D.Arminda sob os aplausos da população que cercava a comitiva responde: Temos outra. Muito mais importante. A fábrica de sonhos! Lá aprendemos que somos todos iguais.

sábado, fevereiro 22, 2014

ESTÁ NA MODA


Nenhum dos muitos projetos do arquiteto Adalberto Brandão lhe causava tanto orgulho quanto o da reforma de Sarita, sua mulher. É... Sarita era um projeto. Bem sucedido como todos os que lhe saiam das mãos. Fazia tempo que a havia visto pela primeira vez, naquela pequena cidade do interior. A espera do conserto do carro, afinal, havia se revelado proveitosa! Havia finalmente encontrado aquela que poderia transformar, esculpir, educar e sobretudo, vestir. E ele, esquecido do compromisso que o aguardava, partiu para o ataque. Sem chance, Sarita sucumbiu. Adalberto era um belo homem e ainda por cima rico e de sucesso.

Mas, acreditem, não foi por isto! A verdade é que Sarita caiu-se mesmo de amores e foi assim que se deixou transplantar para cidade grande, feliz que só ela. Passaram-se meses até a inauguração de Sarita. Confinada no pequeno apartamento em que Adalberto a havia escondido, passava dias e noites sendo “remodelada” por profissionais de beleza, comandados por Adalberto. Ela via nisto uma prova de amor e empenhava-se e como se empenhava. Até que se deu o grande dia em que foi apresentada por Adalberto, a seu circulo de amigos, como namorada titular.

Numa história confusa sua origem foi modificada o suficiente para evitar que a curiosidade dos amigos revelasse a origem humilde de Sarita. E foi assim que a namorada passou a noiva e de noiva a mulher. Filhos nem pensar. Sarita tinha uma missão definida: aparecer. E como aparecia! Adalberto havia tomado gosto pela coisa e, ao longo dos anos, continuava empenhado na educação de Sarita que, ótima aluna, passou a ditar modas. No princípio apenas comentadas e seguidas pelas invejosas mulheres dos amigos de Adalberto. Aos poucos foi sendo citada nas colunas sociais e num piscar de olhos ascendeu às revistas e, maravilha das maravilhas, tornou-se capa da Vogue.

Adalberto não cabia em si. Remodelou toda a cobertura para que se tornasse uma moldura digna do objeto Sarita. Cada cor de parede, cada móvel, foi escolhido buscando a harmonia perfeita com a moça que brilhava cada vez mais. Mas lá por dentro de Sarita nem tudo era perfeito. Foi lá pelos cinco anos de casamento que começou a surgir, insidiosa, uma insatisfação esquisita. Falta de alguma coisa que ela nem sabia o que era. Só falou disto a Mauro, o pária do grupo de amigos. Mauro era mesmo um estranho no ninho. O sócio de Adalberto era tolerado apenas por seu talento como arquiteto. Um esquisitão, diziam. Mas era o único com quem Sarita conversava de verdade. Fazia-lhe bem o sorriso calmo, a ausência de ostentação, o modo tranqüilo de ser.

Quando ela falou Mauro apenas sorriu e murmurou: é uma fase. Acontece. Vai passar. E ela aliviada pela doçura das palavras, acreditou, e ficou mais ligada a ele. Conversavam muito, Assuntos bem diferentes daqueles que povoavam as conversas baldias do grupo que, extrapolando o vestir, discutiam comportamentos os mais esdrúxulos. Estes também podiam estar na moda... ou fora dela. E conforme fossem classificados eram ou não aceitos.
Um belo dia programou-se um fim de semana numa bela mansão em Itaipava. Sarita se encantou quando soube que estava escalada para ir no carro de Mauro. A “moda” naquela estação era separar casais. Um imprevisto fez com que se retardassem, partindo um pouco depois da caravana, já meio a uma tempestade. E eis que pela segunda vez, o acaso dá uma reviravolta no destino de Sarita. A conversa corria solta e gostosa quando ela num gesto nada elegante, tira os sapatos e coloca os pés apoiados no pára-brisa. Mauro sorri: você está linda assim. Parece uma menina. E ela recorda do tempo em que fazia isto na velha caminhonete do pai. E vem o grito mudo interior: Não sou feliz!


Neste momento em frente a eles desaba uma barreira bloqueando a estrada. Mauro freia a tempo. Atrás nenhum carro. O jeito é dar meia volta e avisar aos carros que porventura estejam subindo, mas outra barreira desaba atrás e os dois se vêm isolados do mundo entre duas montanhas de terra. E foi ai que dentro deles outras barreiras desabaram. Assustados e felizes, molhados pela chuva que agora caia fina, sujos de terra, lhes vem a certeza de que aquela sensação de felicidade plena havia chegado para ficar. Mauro preocupa-se: como revelar a verdade a Adalberto? Sarita sorri: deixar o marido pelo amigo? Ora, Mauro, está na moda!                   

sexta-feira, fevereiro 21, 2014

POR UM BATOM


Nem mesmo eles são capazes de recordar o porquê da discussão. Certamente não foi um motivo grave. Vinham brigando muito, naquele tempo. A troco de tudo e de nada. Mas naquele dia, vai ver porque estavam os dois mais irritados, mais intolerantes, a briga foi crescendo de intensidade e chegou a seu clímax quando ele descobriu o batom no fundo da gaveta onde procurava meias limpas.

Foi um Deus nos acuda. Os adjetivos mais leves com que ele a rotulou foram: perdulária e irresponsável! O que ganhava mal dava para o aluguel e para o armazém (ainda não existiam naquele subúrbio, os supermercados). Como é que ela tinha tido a desfaçatez de comprar um batom! Provavelmente caro. Caríssimo. Tão caro que o havia escondido sabendo do malfeito que estava cometendo. Ela, até então perdida em lágrimas, reagiu. Havia comprado com as economias que fazia para se tornar bela para ele. Para ele! Não merecia! Não merecia mesmo!

Foi então que ele passou dos limites. Duvidou que fosse para ele! Vai ver, enquanto trabalhava como um condenado para sustentar a ela e a casa, ela se embonecava para outro! Foi a gota d’água. Na revolta da acusação, ela gritou: Canalha! E, de tanta raiva, nem ouviu o estrondo da porta que bateu quase se soltando das dobradiças, no momento em que ele saiu. Gente! Acreditem! Saiu para sempre. Só ao cair da noite, hora em que ele habitualmente chegava foi que ela se deu conta de que havia sido abandonada.

Começou a sofrer... e não parou mais.  Mas não foi atrás dele. Era uma mulher de fibra e o amor próprio falava mais alto. Com ele foi diferente. Na raiva, sem bagagem, tomou um ônibus para São Paulo. Abandonou tudo atrás de si: a mulher, o emprego, a vida de até agora. Iria começar tudo de novo sem confiar mais nas mulheres. Com a ajuda de um amigo que tinha por lá recomeçou mesmo. E põe recomeço nisto. Mudou da água para o vinho: era um homem pacato, caseiro. Em São Paulo transformou-se num farrista de alto bordo. O que ganhava com o novo emprego que arrumou, gastava na noite: era o rei dos forrós e das serestas.

E as mulheres? As conquistava às dúzias sem o menor critério de escolha. Caia na rede, era peixe. Não se prendia a qualquer uma delas. Julgava-se feliz mas... não se dava conta que sua constante atividade noturna não lhe dava tempo para pensar. Em que? Em nada. Nada mesmo.  Mal parava no quarto em que morava numa república.

Mas eis que um dia começou a se sentir mal. Muito mal. O amigo chamou um acadêmico de medicina, companheiro das noitadas. Hepatite!. Que droga! O raio do tratamento era sobretudo repouso e durante muito tempo. E foi ali deitado sem ter o que fazer que teve início aquela coisa esquisita. Perfumes começaram a invadir o quarto. Isto mesmo: perfumes. Perfume de sabonete, de rabada com agrião, de cabelo lavado, de roupa de cama lavada com patchuli  e de mais um outro que não conseguia identificar, mas que era o mais constante. Estou ficando maluco, pensou ele.

Ao amigo que o visitava nada confidenciou. Comendo a quentinha que lhe vinha da pensão ao lado ele ruminava sobre os perfumes. Que diabo é isto? Estavam se tornando cada vez mais fortes. Chegavam acordá-lo. Pode isto? Seria efeito da hepatite? Cauteloso perguntou ao acadêmico que veio avaliar seu estado. O rapaz riu muito e respondeu: isto é falta de mulher, cara!.Tu tá sentindo é cheiro de mulher! A informação caiu como um raio! Era sim, cheiro de mulher. De sua mulher! Dela! Deu-se conta de que aquele que não identificava era cheiro do batom. Daquele batom que lhe havia destruído o casamento que agora sabia feliz.

Pela primeira vez na vida, chorou. Chorou muito. Saudades dela. Do perfume dela. Mas no dia seguinte, reagiu. Desobedecendo às ordens do acadêmico levantou-se e mais uma vez resolveu recomeçar. No ônibus que o levava para o Rio de Janeiro agarrava-se ao embrulho do presente que havia comprado. A vendedora da loja nem havia acreditado quando fez o pedido. Esbaforido quase põe abaixo a porta da casa. Em nenhum momento teve medo de que ela não o houvesse esperado. Sabia do seu amor. Tinha certeza.

Ela abre a porta e olha para ele. Ficam imóveis, olhando-se, sem se tocar. Ele abre o embrulho e deixa cair no chão as dezenas de batons de todas as cores, marcas e formas e diz: pra você ficar bonita pra mim. Pra sempre. 

Há anos isto ocorreu e durante todos estes anos ninguém entende porque a cristaleira da sala, ao invés de copos, exibe uma espantosa quantidade de batons.  

quinta-feira, fevereiro 20, 2014

NÃO CARECIA

A notícia deixou tristes, muito tristes, todos os moradores da Rua das Acácias. Nem mesmo a turma da tão esperada pelada de domingo, se animou a jogar. Pequenos grupos reuniam-se frente às casas modestas murmurando: não é possível Coisa estranha porque era mais que possível: Vovó Cacilda tinha quase cem anos. Ela mesma não sabia exatamente quantos. O que importava é que Seu Euzébio - o marido - tinha mais dois que ela. Agora desorientado ele não deixava o lado da cama: Vovó Cacilda ia morrer.

O médico falara claro: uns poucos dias, se tanto. Dê a ela todo conforto. É só o que se pode fazer. Euzébio não entendeu: conforto?  Falando assim como se fosse uma coisa nova pra dar. Maluquice. Há mais de setenta anos juntos as palavras conforto, amor, amizade nunca haviam sido ditas. Dizer pra que? Foram vividas. No dia-a-dia. No toda hora. Precisava falar não. E ele sorriu por dentro lembrando-se da única altercação que tiveram.

Já lá iam tantos anos... Foram os cabelos da Anita. Lindos. Compridos até a cintura. Brilhantes. Chegavam a ser azulados de tão negros. Distraído ele havia elogiado. Vai daí que Cacilda chorou três dias e três noites. Uma febre tifoide em criança havia rareado seus cabelos. Na verdade a cabeça parecia a de uma boneca velha. A paixão de Euzébio, revelada aos 15 anos, havia eliminado o desgosto de tê-los assim. Mas logo depois do casamento apareceu Anita, a vizinha, com aqueles cabelos de motivaram o comentário de Euzébio. Ele deu nó em pingo d’água para desfazer o mal causado pela distraída admiração. E, para falar a verdade, nunca conseguiu inteiramente. Durante todos aqueles anos, vez por outra ela declarava: se não fosse pelos cabelos da Anita eu teria sido a mulher mais feliz do mundo. Ah! Se eu pudesse ter os cabelos assim! Em vão Euzébio renovava as juras de amor, em vão se desesperava acariciando os ralos cabelos da amada: os de Anita eram um fantasma recorrente.

No mais, escandalosamente felizes, vieram os filhos, netos, bisnetos e um tataraneto. Todos muitíssimo queridos, educados e cuidados. Mas nenhum deles conseguiu prioridade no coração dos pais. Hoje os dois moravam sozinhos, olhando um pelo outro, olhando um para o outro. Como haviam começado. Gostavam das visitas freqüentes de todos, mas se bastavam. Na verdade até achavam um tanto aborrecido o afastamento momentâneo a que eram submetidos pelos telefonemas diários da tropa familiar. Tratavam de encurtar a conversa sempre com uma frase que se iniciava por: ele (ou ela) está me chamando para...  Isto era até motivo de riso na família que fazia apostas sobre o intervalo de tempo que decorreria entre o atendimento à chamada e a formulação da bendita frase.

Por esta razão causou o maior espanto o telefonema de Euzébio à bisneta mais velha convocando para viesse imediatamente. Reuniram-se todos para esperar seu retorno, curiosos sobre o motivo da convocação. E ela voltou muda: não posso falar. É segredo! Ele só pediu que ninguém ligasse para lá hoje à tarde. Tenho que providenciar uma coisa! E partiu em direção à rua.  O sumiço durou o dia inteiro. A noitinha voltou dizendo: ele vai ligar. E de fato ele o fez num tom de voz muito estranho. Parecia feliz. Mais estranha ainda foi a afirmação: minha Cacilda está ótima... e linda. Euzébio ao falar com qualquer membro da família jamais se referia à Cacilda como sua mãe, sua avó ou sua bisavó. O possessivo na primeira pessoa sempre vinha antes. E acontecia assim com ela também.

Na madrugada o filho mais velho gelou ao som da campainha do telefone. Boa coisa não podia ser. E não era mesmo. Cacilda havia partido. Foi só o tempo de avisar a todos antes de correr para a casa dos pais. Apressaram-se tanto que chegaram todos juntos num cortejo de carros que acordou os moradores da rua. E estes imediatamente dirigiram-se à casa dos velhos.

Em frente à porta do quarto Euzébio montava guarda como que esperando alguma coisa. Uma pequena multidão formou-se na sala transbordando pelo jardim. Euzébio rompe o silêncio: estão todos aí? Os amigos também? Um murmúrio de afirmação se escuta. E ele diz: não carecia. Não carecia mesmo. Eu nunca me importei, mas ela sim. Ficou tão feliz. Partiu sorrindo e nem foi pra mim o sorriso. Numa fila indiana todos vão entrando e se deparam com Cacilda, morta. Emoldurando o rosto enrugado, lindos e brilhantes cabelos negros lhe chegam à cintura: iguais aos de Anita. Nas mãos cruzadas sobre o peito um espelho redondo. Último a vê-la com vida.


   

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

O FRACASSO DOS SENTIDOS

Não havia a menor dúvida. Até mesmo a turma da sinuca, conhecida por não levar nada a sério, admitia: o olhar de Rodolfo era imbatível. Era só lançá-lo e mais uma conquista se fazia, sem o menor esforço. Como se isto não fosse pouco numa só mirada Rodolfo conseguia avaliar cada detalhe da presa, chegando ao absurdo de, sem erro, avaliar as medida da cintura, dos quadris, do busto e ainda a idade do objeto de desejo. Dados estes importantíssimos a seu ver. Rodolfo era um esteta. Um centímetro a mais ou a menos reprovava sem dó nem piedade a coitada que a estas alturas já se encontrava capturada pelo olhar. Com o tempo um verdadeiro exército de rejeitadas suspirava a sua passagem, sempre acompanhado pela última conquista. Mas esta durava pouco já que o rapaz amava a variedade.

Até que ocorreu o inesperado, o improvável: Madalena aportou no bairro para morar com a tia. Uma deusa era Madalena e, entre todas, seria a mais bela conquista de Rodolfo. Apenas um pequeno senão. O poder do olhar não poderia ser exercido: Madalena era cega! Cega e linda! Linda e inteligente! Inteligente e doce! Doce e bem humorada! Bem humorada e feliz! A turma da sinuca cobrou: e agora? Rodolfo vangloriou-se: moleza. O papai aqui se garante Existem 5 sentidos e nela só falta um. Me garanto nos outros quatro. Vou matar a gata com minha voz. Me aguardem.

E passou a treinar modulações e entonações que a fariam delirar. Deu o bote numa festa em casa de Laurinha. Caprichou no tom quando se aproximou de mansinho convidando-a para dançar: me daria o prazer? Sorrindo ela abre os braços, aceitando e dizendo: sua voz é igual à de meu avô!  Droga! Avô é demais. Com voz de avô não vai dar pé.

Mas ainda existiam três sentidos. E tome hidratante no rosto. Quase acabou com o pote de creme da irmã. E, suplicante, na primeira oportunidade pede a ela: passe as mãos no meu rosto. Veja como eu sou.  E as mãos suaves de Madalena percorreram seu rosto. E vem a tragédia: você tem a pele muito oleosa. Acho mesmo que uma espinha está se criando aqui. Lava bem o rosto com  sabonete. Depois de uma pausa continua: você deve ser o que chamam de bonito.  E ele se deu conta de que a beleza não seria um trunfo.

Durante dias Rodolfo penou atormentado pela cobrança da turma da sinuca: e então? Ganha ou não ganha a moça? E ele cada vez mais sem jeito. Sobrando só o olfato e o paladar partiu para o ataque. Encomenda pela Internet uma água de colônia francesa, caríssima. Segundo a propaganda nem Gisele Bündchen resistiria. Mas Madalena, alérgica, espirrando, suplicou que ele se afastasse.

Em desespero suplicou à mãe que fizesse o famoso picadinho que a todos enlouquecia. Iria convidá-la para um jantar à luz de velas, mesmo sabendo que esta luz ou outra qualquer não faria diferença. Mas o clima o ajudaria, certamente. Em vão. Madalena comeu o picadinho como se fosse o cachorro quente do vendedor da esquina. E este foi último encontro. 

E foi ai que Rodolfo entristeceu. Já não olhava as moças que passavam. Já não dormia. Já não comia. Que diabo está acontecendo comigo, pensou. Nunca me senti assim. A turma da sinuca tentava animá-lo. Vai ver ela gosta de alguém. Vai ver deixou um namorado por lá onde morava. Até que o Zeca teve uma ideia. A irmã dele havia ficado muito amiga de Madalena. E se ela sondasse, assim como quem não quer nada, para saber o que Madalena achava de Rodolfo. Alguma dica poderia surgir dali. E assim foi feito.

Dias depois Zeca, às gargalhadas, comunica à turma: Madalena estava inicialmente interessadíssima em Rodolfo. Mas de repente ele começou a falar esquisito, pedindo que ela passasse as mãos em seu rosto de pele muito oleosa, usando um perfume insuportável. Para coroar tinha aprontado um jantar em que o gosto da comida se misturava com o cheiro de velas, enjoando. Uma pena. Ela, que nunca havia se interessado por alguém, tinha tido tanta esperança. Pena mesmo.


Rodolfo, se dando conta de que toda aquela tristeza só poderia significar uma coisa absurda: estava amando. E parte de cara lavada e voz verdadeira, em busca da amada. Já lá vão vinte anos. Os filhos de Madalena e Rodolfo não se cansam de ouvir a história da conquista. E naquela casa onde não se usa água da colônia, nem se come a luz de velas, eles são felizes para sempre.   

terça-feira, fevereiro 18, 2014

LANTEJOULAS

A hora do jantar se aproxima e Camilinha está muito infeliz. Vai recomeçar tudo: a irritação do pai, a discordância da mãe, as gracinhas do irmão, a avó alheia a tudo, completamente fora do ar.  Ah! Se eu pudesse sumia daqui. Pra sempre. Com este pensamento lágrimas lhe vêem aos olhos: será que alguém vai perceber quando eu for embora? No dia da festa alguém vai se dar conta de que eu não estou lá? Claro que não! Ninguém vai perceber... ninguém se importa comigo... E vem a terrível certeza: estou só no mundo!

Esta constatação leva a infelicidade de Camilinha a um espantoso patamar e às lágrimas se juntam soluços incontroláveis fazendo com que ela desabe sobre a cama em desespero encharcando o travesseiro. Só percebe a presença da mãe quando escuta a voz severa: de novo!  Isto está se tornando ridículo!  Lave este rosto e venha jantar!  A porta se fecha atrás da mãe e ela passa do sofrimento à raiva. Muita raiva.

Levanta-se de um salto e dirige-se para a sala com um andar duro, batendo os pés no chão com força. Os outros já na mesa conversando animados nem olham para ela: eles vão ver só! Muda! É isto! Vou ficar muda como Vovó. Pra sempre! Nunca mais minha voz será escutada nesta casa. Imediatamente após ter tomado esta importante decisão declara solene, em tom de desafio: resolvi que quero ir para um colégio interno. A irritação de sempre transparece na voz do pai: e a senhora poderia me dizer quem é que vai pagar este bendito colégio? E a mãe emenda: mas se não temos dinheiro nem para comprar este infeliz vestido de época que você inventou?

A infelicidade volta: viu só?! Pouco se importam com a idéia de eu desaparecer daqui. Se tivessem dinheiro me mandavam hoje para este horrível colégio interno. Viu só como ele disse que era bendito? Eles me odeiam. Querem se livrar de mim.  Nunca, nunca vão entender a seriedade do problema. Também, como é que poderiam? São velhos, cansados, tristes. Como é que podem perceber o que é uma festa anos 30? Como é que podem sentir a emoção de encontrar lá o Nando? O Nando que disse pra toda a turma, mas olhando bem nos olhos dela, “eu vou dançar a noite toda com a menina que estiver mais bonita!”. Logo o Nando por quem ela suspira há mais de seis meses! Seis meses! Uma vida! Foi a primeira vez que ele pareceu se dar conta de que ela existia. Bem nos olhos! A cada dia de aula o sofrimento aumenta com os comentários das meninas que descrevem as roupas que estão sendo preparadas para a festa anos 30. Imagina se ouvissem a decisão da mãe: a gente improvisa! Ela iria morrer de vergonha se ouvissem isto. Melhor é sumir mesmo.

Mas a raiva volta e ela, em desespero, apela para o que ainda não confessou: O Nando! Ele só vai olhar para mim se eu estiver linda. Com um vestido com lantejoulas! O pai comenta: Nando era o nome daquele grande amigo de meu pai. Um chato. Não saia lá de casa! Quando... Para assombro de todos é interrompido pela voz firme da Avó que há anos não fala: “ah... as lantejoulas...” E, antes que alguém possa esboçar um gesto ela se levanta e parte em direção a seu quarto. Camilinha até esquece o drama em que está mergulhada e, junto com os outros. segue em silêncio atrás da avó que, no quarto, retira freneticamente uma quantidade espantosa de objetos, embrulhos e caixas do fundo do armário. O Pai ainda arrisca:  Mamãe... a senhora .. mas emudece pelo comando firme da velha: Calado! Em estupor a família se entreolha. O grito da avó os assusta: Achei!

Radiante, ela exibe um embrulho de papel pardo. Senta-se na cama e delicadamente desata os nós do barbante que o envolve e exibe um maravilhoso vestido coberto de lantejoulas prateadas. Camilinha, deslumbrada, se aproxima da avó e num murmúrio pergunta: era seu, vó? Até hoje não se sabe se o que foi dito numa voz espantosamente jovem, era uma resposta: eu havia chorado tanto... antes... ninguém entendia... e eu sofri muito...  ai, um dia  ele disse que achava lindo lantejoulas e depois... depois...  O grito sai de todos em uníssono: quem?  Severa a avó responde: o Nando...


Delicadamente estende o vestido para Camilinha, como que numa oferenda. Ela o coloca frente ao corpo e lágrimas correndo se observa no espelho da porta do armário. De costas nem percebe que o resto da família consternada tenta, inutilmente, provocar alguma reação na avó que inexplicavelmente retornou a seu mundo secreto. E nunca mais falou!  

segunda-feira, fevereiro 17, 2014

CABELOS VERMELHOS

A fama de Otávio Augusto como tinturista havia ultrapassado os limites do bairro e até mesmo da cidade. De longe vinham mulheres de todas as idades para entregar seus cabelos às mágicas misturas que resultavam em cores e tons jamais vistos. Horas eram marcadas com semanas de antecedência. Dava até briga!  Mas o sucesso parecia lhe ser indiferente. Otávio Augusto, nos seus mais de sessenta anos, era um homem triste. Muito triste.  Sua vida era um mistério. Não parecia ter passado e não lhe importava o futuro. De há muito os colegas e as clientes haviam desistido de entabular conversa. A única resposta que obtinham era um sorriso triste e gentil.      

Mas um comportamento diferente ocorria quando alguma cliente pedia que lhe pintasse os cabelos de vermelho. Nestas ocasiões podia-se perceber que a tristeza habitual revestia-se de uma grande emoção. Suas mãos eram possuídas de um quase imperceptível tremor e ele parecia afagar os cabelos que lhe eram entregues, retardando o momento em que os teria que deixar. E o resultado? Esplendoroso! Seus olhos tristes seguiam a cliente até que desaparecesse porta afora e neste momento a tristeza transformava-se em dor. Visível, sólida. Coisa esquisita comentavam todos.

Naquele sábado o salão estava em polvorosa. Casava-se Carmita, a neta do desembargador Padilha. O salão havia sido reservado para a noiva, sua família, madrinhas, damas de honra e algumas convidadas mais chegadas. Carmita havia passado os dias que antecederam a este sábado tentando convencer a avó, a doce D. Nininha, a arrumar os cabelos para cerimônia. Tarefa difícil esta porque D. Nininha jamais fora a um salão e empenhava-se em esconder a beleza, que ainda assim era visível, atando os cabelos brancos num coque severo. Este coque existira sempre.

Comentava-se na família a estranheza que havia causado o coque que apertara os cabelos de um vermelho intenso, quando da entrada na igreja da noiva de então. D. Nininha havia sido uma noiva triste. Sabe-se lá porque. O desembargador, então um jovem advogado, era um excelente partido, sobretudo para aquela moça de origem humilde.  A tristeza da noiva pareceu sumir com o nascimento dos filhos e netos a quem dedicou uma vida de carinho e atenção. Ela era por eles adorada.  Com o marido - a quem chamava Dr. Padilha – mantinha uma relação cordial que ele retribuía na mesma forma. Pouco conversavam. Mas isto não era muito notado.  Dr. Padilha era um homem de poucas palavras.

D. Nininha resistiu o mais que pode ao assédio de Carmita, a primeira neta e a preferida. Difícil negar-lhe um pedido. E foi assim que D. Nininha acabou capitulando. Na esperança de ser salva, no último momento, do que inexplicavelmente parecia ser um terrível sacrifício, chegou quando o salão já estava atendendo a última convidada. Otávio Augusto estava de saída arrumando o quarto onde preparava as tinturas. O cabeleireiro que havia sido instruído por Carmita para atender a avó, se adiantou para conduzi-la ao lavador. Neste momento Otávio Augusto sai do quarto. Seu olhar cai sobre D. Nininha e ele se imobiliza frente a ela como se houvesse visto um fantasma. D. Nininha, também imóvel, olha para ele. Sem dizer palavra Otávio Augusto delicadamente a pega pelo braço e a conduz a uma das cadeiras. O outro profissional se espanta ao ver que D. Nininha se deixava conduzir com um rosto radiante. Otávio Augusto retorna ao quarto das tinturas. O outro cabeleireiro se aproxima da cadeira, mas é imobilizado pela voz de D. Nininha que firme, declara: “Deixa! Ele vai me atender!”

Otávio Augusto retorna e com extremo carinho desfaz o coque de D. Nininha, acariciando os cabelos que se derramam sobre os ombros da senhora revelando uma linda e radiante mulher.  Duas horas depois, na igreja, a visão da avó ofusca a da noiva. D. Nininha para espanto e encanto de todos voltou a ter os cabelos vermelhos que lhe emolduravam o rosto aos dezoito anos. Na recepção D. Nininha irradiando felicidade era a rainha da festa ao contrário do desembargador que apresentava uma expressão estranhíssima. Parece estar em pânico, comentaram alguns.

A festa entra madrugada adentro e no dia seguinte os primeiros a acordar encontram o desembargador sentado em sua cadeira de balanço, olhar desamparado, com um bilhete nas mãos. Na letra trêmula de D. Nininha o lacônico texto: “cumpri meu papel e na cor de meus cabelos recuperei o amor de minha vida. Adeus”. E nunca mais se ouviu falar neles.         


DE NOVO AOS MEUS LEITORES

Nunca se deve dizer nunca! E eis que me encontro de volta com mais vinte crônicas! Explico: quando eu escrevia para o Montbläat, jornal virtual editado pelo amigo Fritz Utzeri, um dos leitores - Almir Lopes – telefonou-me fazendo um inusitado convite: havia assumido a editoria de uma revista trimestral destinada a divulgar produtos de beleza vendidos pela Casa Alpino – A Casa do Cabeleireiro, sediada em Nova Iguaçu, aqui no estado do Rio de Janeiro. Além da divulgação dos produtos a revista traria matérias e reportagens de interesse da mulher. Perguntava-me ele se poderia publicar, em cada edição, uma crônica já publicada no Montbläat. Eu seria “dona” na última página que se intitularia Com a Palavra Anna Maria Ribeiro.
Num primeiro momento o impulso foi explicar que as crônicas haviam sido escritas para o Montbläat e que Fritz era tão dono delas quanto eu. Mas eis que uma idéia introduziu-se como um raio em minha cabeça: e se eu escrevesse crônicas sobre mulheres envolvidas de alguma forma com a beleza? Daí a cair no universo de Nelson Rodrigues, minha paixão, foi um pulo. Uma Suzana Flag de Salão? Porque não? Fiz a proposta. Foi aceita. E foi assim que me tornei colaboradora da Alpino, revista primorosamente editada.
Antes de cada edição de Almir me informava qual a matéria de capa e eu elaborava uma crônica que com esta tinha a ver. A revista era distribuída gratuitamente em estabelecimentos de cabeleireiros, sobretudo da Baixada Fluminense e circulou por cerca de cinco anos sempre com a minha participação na última página.

Ontem numa tentativa de dar uma arrumação lógica aos arquivos que pululam em meu computador, encontrei estas crônicas. Sorrindo e por vezes rindo mesmo, as reli. Acho que vocês, meus leitores tão gentis, merecem conhecer este meu lado Rodriguiano, que convive com a “clumsy” e provecta cronista e que até o momento em que escrevi a primeira destas crônicas eu nem sabia existir.