À medida que os anos passam vejo com apreensão a aproximação
de um evento que - prefiro acreditar - não exista: o Juízo Final. Se existir
vou me dar mal perante toda a Corte Celeste. Pessoas que já lá estão e que em
vida me atribuíram qualidade ficarão
sabendo que esta não existe. Isto será causado, tenho certeza, pelo de um amigo
de infância que por lá paira há já algum tempo. A verdade dos fatos virá à tona
e ele vai relatar aquilo que me condenará. Creio que o fará gostosamente,
deliciando-se com a vingança.
Embora se trate de um baixo sentimento ele estará respaldado
pelo fato de ser obrigado, como testemunha, a dizer a verdade e nada mais que a
verdade e, pobre de mim, a verdade terá efeitos funestos. O crime de alienação
de afetos não é mais previsto no Brasil, mas o é em muitos países e não deve
ser aliviado pela Corte Celeste. Foi lá pelos idos de 1975. O amigo de infância
(infância mais dele do que minha já que três anos mais moço do que eu) era
talentoso dramaturgo, roteirista e poeta. Viamo-nos com muita freqüência depois que parei minhas andanças por
bases aéreas. Rara a semana que não passava para um cafezinho que se prolongava
por horas de intermináveis conversas.
Pois bem, durante os últimos encontros vinha ele se perdendo
em elogios a uma moça que havia conhecido e que iria se encarregar da produção
de uma peça que havia escrito. Sinto que
vai tornar-se uma grande amiga, disse-me ele, é interessantíssima. Falou
tanto e tão bem que me deu a maior vontade de conhecê-la. Foi ai que ele me fez
uma espantosa declaração: ela e o
namorado vão almoçar lá em casa no domingo. Mas eu não quero que você vá! O
não convite era tão espantoso e deselegante que nem comentei e raivosa pensei:
“pois sim que não vou!”
E para desgosto dele aportei em sua casa no domingo em hora
que me parecia adequada para o anunciado almoço. A moça e seu namorado já lá
estavam. A mulher do amigo espantou-se: Ele
não me disse que você vinha. Com um sorriso angelical respondi: não disse a mim também. A moça conviva
soltou uma sonora gargalhada, ao ouvir esta minha declaração que foi acompanhada
por um sorriso discreto do namorado. E foi amor à primeira vista.
Apaixonamo-nos, o casal e eu. Juro que não foi intencional, mas o fato é que
minutos depois estávamos os três sentados no chão em almofadas que preenchiam
um minúsculo espaço, uma espécie de saleta/varanda. E tome conversa. Não nos
demos conta de que os donos da casa não cabiam no referido espaço e,
desconsolados olhavam de longe excluídos da conversa. E excluídos ficaram até
que partimos juntos, os namorados e eu, já ao anoitecer.
Indesculpável, não é? O amigo nunca me perdoou. Até mesmo
disse: você se apoderou deles com a maior
desfaçatez! Naquele tempo eu não sabia que este “se apoderar” seria pra
sempre. Pois é. Apoderamo-nos, o casal e eu, de alguma coisa preciosa demais:
amizade. Daquelas sólidas, verdadeiras e descomplicadas. Casaram-se eles. Nasceram
filhos (deles), nasceram netas (minhas) e estes sem que a gente se desse conta
tornaram-se adultos e que adultos! E nós lá repartindo alegrias e tristezas com
o mesmo entusiasmo e constância. Fiquei velha e eles meia idade e nada mudou.
Foram-se eles para longe, muito longe e nada mudou. Telefone, Skype e correio
eletrônico substituíram a presença física com a mesma freqüência e as mesmas
baldias conversas. Adquiri amigos que eram deles. E aqui vale dizer que isto,
entre muitas outras benesses, valeu tornar-me cronista do Montbläat.
Socorremo-nos quando preciso foi e até mesmo quando não foi,
metendo o bedelho na vida uns dos outros. Assim será por todo sempre até que
chegue o terrível Juízo Final que poderá me lançar nas profundezas do inferno.
Mas, tenho certeza, esta estadia desagradável só terá duração até a chegada
deles, que certamente se dará muito depois da minha. Não tenho a menor dúvida
de que quando chegarem vão interceder por mim para que possamos nos instalar em
uma nuvenzinha, macia e gostosa como aquelas almofadas do primeiro dia,
continuando a conversa do ponto que a interrompemos, como sempre fizemos.
Eu sei que é maldade e que isto poderá agravar a pena, mas
não consigo deixar de imaginar que numa nuvem ao lado o meu amigo de infância
observará furioso a conversa como o fez naquele domingo em que nos conhecemos.
Será que o Todo Poderoso relevará a falta se eu pedir perdão? Por que eu o
farei, é claro, mas neste caso será que me vai ser exigido arrependimento? Ai
complica pra caramba. Eu sei que foi um
mal feito, mas como é que eu posso me arrepender do que me deu uma das coisas
mais gostosas que tenho na vida?
2008
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