É
injusto! Profundamente injusto! O atribuir à avançada idade as peripécias em
que me meto, sabe Deus por quê. É absurdo! Sempre foi assim. Desde que me
entendo por gente, episódios similares, antecedentes e consequentes, à queda do
Ministro, ocorrem com certa freqüência. Na mais tenra idade eram descartados
com um sorriso complacente pelos adultos da família com a frase: coisa de
criança. Deviam ter prestado mais atenção, os adultos. Quem sabe, atacado a
tempo, o mal teria sido eliminado de minha vida, poupando-me, sobretudo,
poupando a outros, o envolvimento em situações pra lá de constrangedoras.
O
relato que fiz na crônica do episódio da queda do Ministro havia me dado certo
alívio. O colocar no papel, isto é na tela, exorcizou, sublimou o fato. Veio-me a sensação
de estar dele me livrando. Vai daí que pensei: vamos ver se funciona com outros
e, quem sabe, é este o medicamento para este mal, nos últimos tempos
atribuído à demência senil. Vai daí que
resolvi contar, senão todos, pelo menos os mais significativos. Decido: por
discrição vou eliminar os nomes reais. Afinal as pessoas objeto de meu
descompasso no comportamento social já sofreram muito. Pra que
acrescentar? Tenho sido perdoada, mas é
bom não exagerar.
A empresa estatal era outra, diversa daquela do Ministro. Mas eu era, como naquela
ocasião, relativamente graduada no ranking do corpo gerencial. Convocada para
uma reunião de chefias com o novo Diretor da área sentei-me ao lado de meu grande amigo (inacreditavelmente ainda o é, depois do ocorrido). Era uma
reunião pra lá de séria. Todas as divisões, na pessoa de seus chefes e
substitutos, haviam sido convocadas para decidir estratégias de sobrevivência.
O faturamento estava caindo! Cada chefia era conclamada a analisar a situação
dos serviços que vinha prestando e a razão da não ampliação do mercado
atendido.
Meu
pai não admitia orelhas furadas. Não! Não se trata de uma radical mudança de
assunto. Tem tudo a ver. Dizia ele – papai – que era coisa de índio. Nunca
proibiu, mas eu, morrendo de vontade de furar, não furava (fui fazê-lo muito depois de sua
morte, já com netas). Afinal ele sempre tivera razão. Devia estar
certo. Mas o não furar causava certo desconforto. Os brincos de pressão, depois
de algum tempo de uso contínuo, causavam a paralisação da circulação no lóbulo
da orelha, e isto chegava a ser doloroso. E era o que estava acontecendo em plena
reunião.
Discretamente,
tirei o brinco esquerdo na intenção de massagear vigorosamente o lóbulo da
orelha, restabelecendo a circulação, único remédio para o mal. Tão logo pousei
o brinco sobre a mesa para levar a mão à orelha, o Diretor dirigiu-me uma
pergunta direta. Deve ter sido este o fato gerador do que se seguiu. Comecei a
responder ao mesmo tempo em que massageava o lóbulo da orelha. Uma sensação
estranha se instalou: não estava melhorando. Para falar a verdade nem mesmo
estava sentido a massagem. Desta vez está bravo, pensei, enquanto
respondia.
Mas
alguma coisa muito esquisita estava acontecendo. Meu discurso provocava um
estranho efeito: todos, incluindo o diretor, olhavam em minha direção como se
estivessem presenciando algo de inacreditável. Surpreendi-me: havia me
preparado para a reunião e até tinha argumentos válidos e – acreditava –
inteligentes. Mas não a ponto de
provocar tanto espanto. O silêncio havia se instalado e nem uma só voz se
levantava para refutar ou concordar com o que eu dizia, como havia acontecido
nas manifestações que antecederam à minha. Alguma coisa está errada, pensei.
Discretamente voltei-me para o amigo ao lado. Quem sabe através do olhar
dele, tão meu conhecido e, portanto, revelador poderia ter uma dica do que
estava ocorrendo. Ao fazer isto, ainda pensei: esta orelha vai cair! Está
absolutamente insensível! Morreu!
O
rosto do amigo estava rubro e ele olhava para frente, duro, imobilizado numa
expressão de pânico! Que estranho! Volto mais a cabeça e... todo o horror se
revelou! Minha mão estava
massageando o lóbulo da orelha, dele!!! Isto explicava a insensibilidade de
minha própria orelha, explicava o espanto dos circunstantes, explicava o
constrangimento do amigo. Mas nada, nada no mundo, poderia explicar o
descontrole direcional da massagem. Dei um grito que foi saudado por um ataque
de riso generalizado. O Diretor, sufocado de riso, resolveu fazer um intervalo
e pediu uma rodada de café. Impossível retomar o clima de seriedade naquele
momento. Desculpei-me com o amigo que, baixinho, mandou-me um palavrão, seguido
de um murmúrio raivoso: depois a gente conversa!
O
café começa a ser servido e o colega da direita oferece-me uma caixinha com
sacarina ou coisa equivalente: aquelas pílulas minúsculas que se usavam à
época. Aceito agradecida e... coloco duas delas delicadamente sobre a língua e
viro o café de um gole, engolindo-as e dando término à reunião que não mais
conseguiu retornar ao rumo, porque foram todos acometidos de um “fou-rire”
incontrolável.
2005
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