sábado, agosto 31, 2013

DE MICOS E JOGADORES DE FUTEBOL

Será que você pode me dizer quanto custa um mico de três meses? Irritada, num primeiro impulso, pensa em desligar o telefone. Mas dá-se conta de que é a única culpada. A curiosidade, a maldita curiosidade que a acompanha há oitenta anos, aliada às mais absurdas informações fornecidas pelos vizinhos de poltrona nos muitos trechos BSB/RIO ou RIO/BSB (BSB é Brasília), fazem com que sua já lotada cabeça deixe sair pelo ladrão declarações esdrúxulas que motivam gracinhas como esta.

Quem mandou deixar escapar em meio ao jantar, e ainda por cima, com veemência: vocês não devem alimentá-los! É péssimo porque...  e enveredou pela explanação sobre o mal feito de alimentar micos quando percebeu a expressão  divertida dos amigos. Calou-se, mas o estrago já estava feito. De nada lhe valeu na vida o alerta que sempre fez aos estagiários: excesso de informação não gera conhecimento.Deste mal acabou sendo a maior vítima. 

Mal o avião decolou o companheiro ao lado lhe confidenciou: sou veterinário especializado em animais silvestres. Pronto! Deixa dada, a curiosidade atacou e as perguntas surgiram seguidas de respostas extensas, elucidativas, técnicas e até poéticas. Os micos são monogâmicos! O que tem isto a ver? Sabe-se lá, mas o fato é que são e apesar de viver em bandos são fiéis às suas micas. E tem mais! Os pais é que cuidam do bebê após quatro dias de nascidos.

Sentiu-se culpada! No laptop o modelo de dados que inicia o desenvolvimento do novo sistema exigia retoques! Procurou, no passado, razão para justificar seu interesse maior pelos micos: seu velho professor de filosofia insistia que tudo tem a ver com tudo. Tentou relacionar os micos ao modelo para sossegar a consciência. Não conseguiu e teve que optar. Venceram os micos! Quando as rodas do avião tocaram a pista, apressada, ainda formulou uma pergunta. A resposta veio do alto. Ele já estava retirando a mala do compartimento de bagagem e deixando-a cheia de perguntas não formuladas sobre esta espécie.

Prometeu-se não olhar para o lado, na volta. Se ele falar (é sempre ele e não ela. Por que será?) vai polidamente informar que tem que trabalhar durante a viagem. Mas... ele abriu um jornal do Maranhão. Mostrou a foto de um gol iminente e aponta: esse jogador é meu! Foi-se por água abaixo o raio do modelo, agora mais complexo, e ela perguntou: é do seu time? Pergunta pequena, inocente, mas abriu um mundo de informações. O sujeito era agente de jogador de futebol. Vocês sabem quanto ganha um goleiro de um time do Maranhão? Eu agora sei! Eles, os jogadores, moram numa república. É mais barato, sabe? E se você, quer dizer, ele, for zagueiro dá mais chance de aparecer na mídia, em fotos, porque quando marca um jogador como o Teves, as câmeras estão sempre apontadas em sua direção. Mesmo que seja zagueiro de um time do Maranhão. E quando dá sorte de ser dono de um que vai para a Europa? Nossa! A comissão (20%) é em Euro!

Tentou, obediente a seus mínimos conhecimentos filosóficos do científico (é... estudava-se filosofia no científico) juntar esta informações aos micos e ao modelo. Na verdade teria que acrescentar a estas, as obtidas do taxidermista do trecho RIO/THE (THE é Teresina) cujo mercado é voltado para colecionadores e pesquisadores. Até que dá para juntar alguma coisa. Micos e taxidermista guardam uma clara relação e relação tem a ver com modelo. Embora não conheça, devem existir pesquisadores e colecionadores que necessitam de micos empalhados e certamente de um sistema informatizado para tratar as informações sobre os ditos cujos. Mas a prática da taxidermia seria criminosa se adotada, por um agente, em um zagueiro.

No trecho RIO/POA (POA é Porto Alegre) observa o jovem, muito jovem, que coloca o cinto a seu lado. Este não vai nem falar comigo! Maravilha! Coloca o laptop no colo, pronta para ação.  A voz vem simpática, até carinhosa: a senhora parece com minha avó ela também adora computador. Brinca o dia inteiro fazendo paciência!  Um grande alívio a invade. Nenhum perigo. Que ela saiba não existe “especialização avó”, o que lhe garante a não ocorrência de um manancial de novas informações.

A voz continua doce: estou indo para casa dela. Tranquila  pergunta: vai de férias? E na resposta, carregada de orgulho, o horror que se anuncia: não! Sou campeão de skates. Vou para uma competição! Já no hotel, exausta, tenta conseguir o merecido sono, preparando-se para as muitas reuniões do dia seguinte. Em vão: micos machos, com filhotes empalhados às costas, jogam um novo tipo de futebol sobre skates que são dotados com o centro de gravidade baixo e de pegada larga, o que lhes garante maior estabilidade! 

2007


sexta-feira, agosto 30, 2013

A BATALHA DO CHIFFONIER

A ela parece um depois do almoço como tantos outros no sítio: a Avó, em sua cadeira de balanço, relê Proust; os tios literatos combinam uma ida ao Rio para encontrarem os amigos, na José Olimpio; o Tio Jogador, frente a um tabuleiro de xadrez está fora do mundo; sua mulher borda monogramas em lenços de cambraia; o Tio Eqüestre, também médico. desenha a pista do próximo torneio observado por sua mulher, linda Tia Sulista que ela idolatra; a Tia Pintora frente a um cavalete reproduz na tela o belo arranjo de flores que sempre adorna a sala; seu marido - o Tio Pediatra - furioso discute diretamente com o jornal, dando socos no mesmo; o Tio Ortopedista faz, como sempre, alguma ação julgada imprópria pela família, enquanto sua mulher – a Tia das Plantas - aparece e desaparece no pequeno bosque atrás da casa; o Pai (o Tio Socialista, para seus primos) tenta convencer a Mãe, sem muito sucesso, de que não tem a menor importância se ela – a filha - ganhar ou perder o torneio hípico.
Ela e os primos, adolescentes e crianças, vagam de tio em tio, esperando a hora em que poderão se mandar uns para a piscina e outros para os sítios vizinhos onde os esperam os recentes namorados e namoradas. Para isto terão que fazer uma manobra diversionista para escapar do Tio Jogador que certamente vai convocar três deles para a mesa de bridge tão logo servido o café.
E eis que o Tio Pediatra resolve mudar de oponente já que o jornal não está oferecendo resistência e volta o olhar para sua mulher. É linda, a tia e madrinha, e mais que isto vive de beleza. Uma Midas estética torna belo tudo que toca. A interpelação do marido, aos berros, sequer a faz voltar-se como também não modifica a postura dos demais presentes: minha mulher, onde estão minhas abotoaduras de madrepérola? Recuando um pouco para avaliar um traço na tela ela murmura distraída: na gaveta do chiffonier.
Há que se admitir que a fúria que se seguiu a esta resposta tinha alguma razão de ser. O belo chiffonier renascentista, (apelidado pela família de chafurniê) fica entre a sala de estar e a de jantar e nele acumula-se uma quantidade espantosa de pequenos objetos para os quais não se encontra melhor destino e é dotado de cinqüenta e sete gavetas!!! Portanto a indicação precisa de “na” gaveta soa como uma provocação! O tio emite um urro: que gaveta, pinóia?! A manifestação não provoca sequer um levantar de olhos dos membros da família. O “uma delas” que vem como resposta põe em alerta o bando jovem.
Está para ter inicio mais uma performance e eles marcham atrás do tio que investe para o móvel, numa cavalgada de guerra, gritando: hoje eu mato este chafurniê. Com enorme violência abre a primeira gavetinha (são mínimas) e após um rápido olhar em seu conteúdo, solta um sonoro palavrão para delícia dos jovens espectadores, mas não dos adultos que se até aquele momento haviam ignorado a cena agora se põem de pé indignados lançando sobre o faltoso olhares de terrível repreensão! Palavrão! Frente às crianças. Inadmissível! Ele mesmo parece assombrado com sua própria audácia e dirige um olhar culpado para a Avó que exibe uma expressão aterradora.
Mas o tio não se deixa vencer. Respira fundo e parte para a segunda gaveta com igual violência e tendo o cuidado de agora urrar sinônimos: cocô! Cocozão!  A partir daí cada gaveta aberta e devolvida com violência a sua situação de fechada, provoca combinações extraordinárias das palavras titica, bosta, cocô (que se desdobram em titica, cocô e bosta de vaca, de galinha, de porco de cavalo, e absurdamente, de javali). Como estas são palavras plenamente aceitáveis todos voltam a seus afazeres como se nada estivesse acontecendo.
Os jovens sentados no chão são acometidos de um paroxismo de riso. Os gritos se fazem cada vez mais retumbantes, mas nem as duas copeiras que tiram a mesa do almoço se dão ao trabalho de acusar o som. Como platéia ele conta apenas com as filhas e os sobrinhos que, meio a gargalhadas, incentivam: vai tio! Vai papai! Quebra logo este chafurniê! Só faltam poucas gavetas!  Ele já não mais olha para o conteúdo das gavetas provavelmente esquecido do que buscava. Apenas abre e as arremessa de volta proferindo além das imprecações já mencionadas, ofensas  dirigidas ao chafurniê, ameaçando-o de destruição total por fogo, por machado, por serrote, e estranhamente, por guilhotina. O infeliz móvel tornara-se um ser vivente dotado de cabeça! Como D. Quixote o tio enfrenta seu moinho!
E eis que, plácida, linda, e sorridente, aproxima-se a mulher. Ela passa pelo grupo de jovens afagando suas cabeças e vai diretamente a uma gaveta já massacrada e dela retira as benditas abotoaduras informando: Cá estão, meu nego. Veja só! Caiu um pedaço da madrepérola de uma delas. Melhor jogar fora. Como por encanto a fúria do tio passa e ele sorri para mulher: Faça isto, minha mulher, faça isto. Sempre detestei estas abotoaduras. E volta à sua cadeira e a seu jornal gritando: por que ainda não serviram o café? Serviçais incompetentes! Parasitas! Carinhoso, puxa um dos pequenos que o observava encantado: vem aqui pro colo do tio, seu tampinha. Gostosamente e confiante o pequenino a ele se agarra. E a Avó observa a cena sorrindo enquanto o cheiro de café inunda a sala.

2007

quinta-feira, agosto 29, 2013

INSÔNIA

Deitados na grama os primos olham o céu estrelado. Noite quente de verão, mas uma brisa suave move ligeiramente os galhos dos pinheiros altos, tão altos que parecem chegar até as estrelas que repartem. Por é isto que eles estão fazendo: repartindo estrelas. De há muito se apossaram do céu que foi dividido entre os quatro. Faz tempo. Eram pequenos. Desde então são proprietários do espaço celeste e não podem dele se descuidar.
É sempre assim: terminado o jantar naquela mesa grande onde a Avó reina soberana, correm para a grama. E a conversa rola mansa e séria. Muito séria. Sob o céu repartido falam de seus sonhos. Só que não os sabem como tal. Há uma certeza daquilo que vai acontecer. Talvez porque donos de um céu estrelado nada lhes pareça impossível.  Nem mesmo o haras que vão ter um dia. Só há uma pequena divergência quanto ao nome: Ventania. Tem que ser Ventania, insiste a mais velha. Os outros discordam. Por que o nome do cavalo dela? Ela não tem argumentos e vai daí que desiste da discussão deste pequeno detalhe. Porque não querem brigar. Nunca o fazem.
Como um só bloco agem e reagem desde o momento em que se encontram na estação para subir a serra, nas férias. São quase três meses de um convívio mágico naquele sítio para onde se mudam bem antes do Natal, assim que terminam as aulas. E a Avó assume suas vidas. Os pais e tios vêm e vão, chamados ao Rio por trabalhos e compromissos e eles ficam naquele mundo mágico onde tudo pode.
A repartição de cada lote celeste foi feita com a ajuda dos galhos mais altos das árvores que os viram nascer e que, observados do leito de grama, parecem tocar o céu definindo os limites. São estes os marcos de posse plantados no céu, mas não na terra. A terra do sítio é bem comum que exploram e percorrem sem cessar, em bando. Só voltam para casa quando o sino energicamente tocado pela avó os convoca. Foi tentado um toque para cada um. Inútil: à primeira badalada precipitavam-se todos, correndo para ver quem chegava primeiro. Jamais lhes ocorreu não responder ao chamado. A Avó, muito sábia, só os chama para coisas boas: almoço, lanche e jantar. Porque eles vivem famintos ainda que se fartem de frutas colhidas no pé e das cenouras cruas que dividem com os cavalos.
Conhecem cada palmo de terra do sítio e agora se empenham na exploração da mata da Boa Vista que só recentemente deixou de ser território proibido. Foi solene a comunicação da Avó de que já poderiam por lá se aventurar. Já eram “grandes”. Acompanhados por seu Teófilo entraram pela primeira vez para conhecer as trilhas, os buracos de tatu, os ninhos das seriemas, as moitas venenosas, os pios dos nambus.
Agora que já se aventuram sozinhos, lhes cabe o encargo de trazer palmito para o jantar. Nestas expedições as conversas são muito diversas daquelas da grama, à noite. Nem mesmo poder-se-ia chamar de conversa aquelas comunicações sobre o que vêem, sobre o que descobrem. As reflexões sobre o ocorrido só vêm à noite, na grama, quando voltam os olhos para seu pedaço de céu.  Ai, sim, filosofam sobre o que viram. Falam tudo que lhes vem à cabeça até que o sono se instale gostoso, dificultando a fala e o pensar, mas não o sentir. E é então que eles sentem que são felizes. Muito felizes.
Existe também a caixa de tesouros, escondida em baixo do cocho do abandonado rancho de sal. Nela amontoam-se achados e objetos preciosos. A alguns atribuíram mágicos poderes que invocados em horas de aflição, sempre surtem efeito. Foi assim quando Ventania ficou doente. Reuniram-se no rancho em torno da maçaneta de vidro colorida, um dos tesouros mais lindos, e pediram, pediram muito para que arribasse. E arribou!
Aquela enorme chave de ferro que encontraram naquela manhã, num oco de pau, na mata da Boa Vista, é mágica. Com certeza! Vai ver abre qualquer porta. Até a da despensa onde se enfileiram os potes de coalhada, cobertos por panos de filó com franjas de contas de cristal. Amanhã a chave será levada para se juntar aos tesouros. 
Um deles diz sorrindo: ah! Se a gente pudesse guardar nela pelo menos uma estrela. Os outros riem, mas pensam que seria bom se pudesse. Assim ao abrirem a tampa ficariam iluminados pelo brilho que se grudaria neles como poeira. E também eles se tornariam encantados. A chave passa de mão em mão. E eles inventam: se apertar bem, fechando os olhos ela atende qualquer pedido. 
O som das vozes dos tios, tias e pais que vem do lá dentro onde a luz do lampião pinta tudo de uma cor diferente, traz uma sensação de proteção que conduz ao sono e ao sonho. E então eles dormem sob o céu estrelado que lhes pertence.

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Não mais deitamos na grama; não mais olhamos o céu. Não há em nossa caixa de tesouros uma só estrela. E o sono, porque não precedido de beleza, não vem.

2006

quarta-feira, agosto 28, 2013

VERSÃO BAIANA DA GENESE MOSAICA

E Deus disse também à mulher: Afiigir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás sob a dominação de teu marido e ele te dominará. Pois é! Eu nunca fui agraciada com os vaticínios do senhor. Passados tantos anos ainda tenho esta frustração. A gênese não se aplicava às minhas délivrances. Eram tão emocionantes e bonitas as descrições dos nascimentos dos filhos das amigas: horas de dor e desconforto, maridos ao lado segurando mão, olhar terno e emocionado...
Comigo nada disto acontecera. Desde o primeiro (foram três) os nascimentos mais pareciam uma ópera bufa. Eu havia inventado o parto sem dor antes que existisse. Não só sem dor, mas a jato fazendo com que o médico tivesse o desplante de dizer em minha segunda gravidez: este você vai ter sozinha no gramado de sua casa. Não tem sentido me tirar da cama para você expelir esta criança no momento em que eu saio por um minuto da sala. E por pouco não foi no gramado! Mas em uma maca no corredor do hospital porque não deu tempo de chegar à sala de parto.
E marido emocionado nem pensar: no primeiro ele estava dormindo e disse um absurdo quando o acordei informando que a hora era aquela e que era melhor procurar o médico: dorme que passa!  No segundo, uma menina, que teve o mau gosto de nascer no corredor enquanto o pai estava fornecendo informações para internação na portaria.
Assim, quando se anunciara a chegada do terceiro, em Salvador, eu não mais esperava nada de normal. Era um temporão. Oito anos o separava da irmã e dez do irmão. Naquela casa da praia de Ondina e naquele mês de setembro de 1961 o rebento era esperado para qualquer hora com alegre expectativa. O clima político, instável, culminaria pela renuncia de Janio Quadros e a Base Aérea de Salvador entrava e saia da prontidão. Isto significava marido ausente. E eu pensei: vai ser agora, com certeza. Na casa não havia telefone e nem este existia nas casas vizinhas (todas também sem marido).
E o inevitável aconteceu. A bolsa d’água estoura às onze da noite do dia 14 de setembro. Fazer o que? O jeito era deixar os dois mais velhos com a vizinha e grande amiga e pegar o carro rumo ao hospital. De lá ligaria para o médico. O carro era uma caminhonete Renault que positivamente não havia sido projetada para mulheres em adiantada gravidez. Por mais que afastasse a cadeira do motorista a barriga era perigosamente acariciada a cada movimento do volante o que digamos não era muito confortável, sobretudo com um nascimento iminente.
E lá fui eu parando a cada contração. Quando isto acontecia cruzava os braços sobre o volante deitando nele a cabeça enquanto respirava fundo. Tão logo terminava a dança do ventre voltava a dirigir a caminho do Hospital Espanhol que ficava na ladeira da Av. Sete de Setembro. Na altura do Farol da Barra quando realizava uma das paradas escuto uma voz ao lado da janela: tá se sentindo mal, dona? Levanto a cabeça e dou com um jovem guarda de trânsito. Negro, com o rosto extremamente simpático, exibia uma expressão de real preocupação. Explico que estou indo para o hospital e que não dá para dirigir quando vem uma contração. O ar dele é de assombro: vai ter menino agora?! Vixe! Tento acalmar o guarda: vai dar tempo de chegar. E ele abrindo a porta grita: e não vai? Só se eu não me chamo Roque. Passa pra lá. E Roque me empurra sem dó nem piedade para o acento do carona assumindo a  direção.
Para meu espanto coloca na boca um apito e com a cabeça para fora da janela vai apitando furiosamente transformando a Renault numa ambulância anêmica que tresloucada avança pelas ruas totalmente desertas. Entra no hospital cantando os pneus e gritando: polícia! Socorro aqui! Uma horda de atendentes e enfermeiros me arranca do carro, colocando-me na maca.
Forneço o nome do médico que para minha sorte estava no hospital acabando de realizar um parto. Este não era o mesmo médico que me havia atendido nos dois outros partos que haviam ocorrido em Natal. Eu mal o conhecia. Portanto foi com surpresa que verifiquei ser ele tão louco quanto o anterior. O homem era fanático por ópera e resolveu compartilhar comigo esta paixão iniciando a récita por Ridi Pagliacci cantada a plenos pulmões. Leoncavallo jamais imaginou ver sua famosa ária como pano de fundo para o nascimento de um pequeno baiano.
Nos intervalos entre inúmeras árias o médico me informa que ópera o faz rir e chorar. Contenho-me para não dizer: a mim agora também. Como das outras vezes tudo se passa muito rápido e no momento em que o rebento aparece (momento em que o script exigiria exclamações de ternura de um marido) o médico grita com sua voz operística: Isto não é um menino. É um bezerro! A esta altura eu já estava achando tudo possível e aguardei um mugido ao invés de choro. Mas este finalmente veio e a emoção foi grande anulando toda a comédia de pastelão.
Como nos partos anteriores exijo ver, em todos os seus detalhes, o belo menino, verificando a presença de todos os dedos. E ele é levado pela enfermeira do berçário deixando um vazio. No enorme cansaço fecho os olhos enquanto a maca é empurrada para fora da sala. E ai vem o grito numa voz já conhecida. O rosto simpático e radiante do guarda Roque se debruça sobre a maca: nós teve um menino, dona! É um russinho! Dos mais bonitos que já vi. Hoje tô é com tudo! Bendito Roque: eu também estava com tudo!   
2010


terça-feira, agosto 27, 2013

PODER DE SÍNTESE

Sempre admirei a capacidade de síntese de que são dotadas algumas pessoas. Com pouquíssimas palavras conseguem se fazer entender dizendo tudo que tem que ser dito enquanto eu peno para reduzir a enxurrada de palavras que acaba por tornar tudo confuso. Tenho pra mim que ser sintético é uma qualidade nata: não se aprende. Nasce com a gente ou não. Síntese sempre me deu a sensação de certeza e verdade. É quase impossível pregar mentiras sintéticas. Mentiras devem sofrer, necessariamente, uma complexa elaboração para não deixar furos, embora estes sempre terminem por se fazer presentes. O “penso, logo existo” de Descartes é um dos exemplos clássicos de síntese. Contém um mundo em três palavras. Livros inteiros foram escritos concordando, discordando ou comentando esta afirmação. E ainda, aos milhares, existem os japoneses craques na arte da síntese, com os seus maravilhosos haikais. Houve uma época em que desesperadamente eu procurei criá-los com o esquema preconizado por Guilherme de Almeida: o primeiro verso rimando com o terceiro e o segundo apresentando a segunda sílaba em rima com a sétima. Os resultados que obtive foram patéticos como atesta uma de minhas muitas tentativas: 
O gato sonolento deu um mio
e no coração do avô
a sensação de imenso triste vazio
Tá legal, não precisam me dizer: gato com sono “dando” um mio é uma lamentável construção, indigna de um rebento nipônico de quatro anos (tenho para mim que quando começam a falar balbuciam haikais perfeitos). Vai daí que o mio do gato que causou o vazio no avô encerrou o ciclo de minhas infrutíferas tentativas me ficando como consolo o fato de que não tem o menor sentido ficar fazendo versos japoneses quando não os faço nem à moda pátria. O jeito foi continuar a morrer de inveja daqueles que conseguem ir direto ao ponto. Entre estes, com louvor, situa-se meu único sobrinho Pedro Paulo que aos pouco mais de dois anos foi capaz de uma proeza espantosa no terreno da síntese. Meu irmão contava histórias para os filhos na hora de dormir. Marina, um ano mais velha que Pedro Paulo, era uma matraca, quem sabe herdeira do DNA da tia. Pois bem, um dia ela arvorou-se em contar, ela mesma, a história noturna. Isto foi uma desgraça para Pedro Paulo que mal conseguia articular uma frase inteira embora compreendesse tudo. O brilho da irmã o deixava ofuscado, sobretudo porque a sessão de histórias passou a ter, habitualmente, dois narradores: meu irmão e Marina. Esta, cada vez mais, se esmerava numa riqueza de detalhes e palavras que só faziam piorar a impotência do irmão. À medida que os dias passavam o pai percebeu que era grande a angustia de Pedro Paulo, emudecido diante da verborragia e competência da irmã. Estava arrasado, triste, humilhado e ofendido pelo handicap negativo que apresentava, incapaz que era de se igualar à irmã. Foi grande a preocupação de meu irmão: tinha que encontrar uma solução que pusesse fim ao sofrimento do filho, tirando-o daquele abatimento. E eis que naquela noite, depois de contar sua história ele cassou a palavra de Marina, declarando: hoje quem vai contar uma história é Pedro Paulo! Vai, meu filho, conta pra papai e pra Marina. Vai! Você sabe! Papai tem certeza que você sabe uma história linda! O rosto de Pedro Paulo iluminou-se de alegria ao sentir tanta confiança expressa pelo pai que adorava. Mas isto durou pouco. Só um segundo e ele se deu conta da imensa responsabilidade e da dificuldade do ato que lhe era delegado. O rosto desabou numa expressão de enorme sofrimento. A procura das palavras, o esforço para encontrá-las era desmedido. Em silêncio Marina e o pai esperam: ela com um ar condescendente que só fazia piorar o martírio do irmão e ele sofrendo pelo filho em desespero e já arrependido da solução que havia proposto. No momento em que já ia desobrigá-lo da tarefa imposta percebe que o rosto de Pedro Paulo começa a apresentar uma expressão de histriônico horror e ele se contorce puxando literalmente as palavras com a mãozinha apertando a boca. E, num tom cavernoso e dramático, em ritmo lento, dividindo as sílabas, ele solta A HISTÓRIA, com um poder de concisão que nada fica a dever a Descartes:
BANCA DE NEVE!  (pausa longa e dramática) MÔDADE!
Exausto e vitorioso ele se cala esperando a apreciação da platéia que, depois do silêncio causado pela reflexão que se impunha diante da profundidade e da contundente concisão do relato, aplaude freneticamente. Estava assim descrito todo o horror relatado pelos irmãos Grimm, em mais de mil palavras.

2009




segunda-feira, agosto 26, 2013

O MENINO E A FINITUDE

A morte do Tupi, assim de repente, causa uma devastação na cabecinha do menino. Em seus quatro anos morte é um fato totalmente desconhecido e a compreensão de que cachorro que morre não late, não come, não pula e não lambe o rosto, é muito difícil, se não impossível.
O Pai e a Mãe desdobram-se em explicações e numa concessão extrema (já que não aprovavam mentiras) enviam Tupi a caminho do céu onde irá brincar com anjinhos, nas nuvens. O menino detesta esta idéia. Os anjinhos que arranjem outro cachorro pra eles!  Por que é que não levaram o cachorro do Tico? Numa última tentativa para acabar com aquele horror, ele pede: e se passar mercúrio cromo nele? Quem sabe aquele miraculoso remédio vermelho que não arde restabelecerá a normalidade, o todo dia gostoso, o acordar com uma lambida. Uma enorme sensação de insegurança se instala ao saber que nem mercúrio cromo cura aquela doença horrível.
Somem com Tupi e a casa fica em silêncio de dia. Coisa muito estranha: silêncio é coisa de noite. O Pai sai para trabalhar e a Mãe desvela-se em cuidados e atenções. E ele constata que quando Tupi morre ele pode tomar banho de mangueira, molhar o chão e comer fora da hora do almoço e não ir ao maternal que não acontece nada. Coisa mais esquisita. E ele não sabe, mas o que sente, pela primeira vez na vida, é tristeza. Mudo, ele anda pela casa vendo ausência em cada canto. Ele também não sabe o que é isto, mas sente.
A Mãe, preocupada, telefona para o pediatra. Nada a fazer, carinho ajuda. Vai passar. O primeiro contato é assim mesmo. O Pai chega do trabalho e o põe no colo. Fala que vai comprar um cachorrinho lindo que ele passa a detestar naquele mesmo momento.
Coisas muito estranhas acontecem por causa da morte de Tupi: ninguém fala na hora de dormir, ninguém insiste para que ele coma espinafre. Mais estranho ainda, o Pai coloca um colchão ao lado de sua cama e informa que vai dormir com ele!  E na mesma hora em que ele for dormir! E essa hora não tem hora!! Vai ser quando ele quiser. E de repente ele passa a querer só para ver o que de mais esquisito vai acontecer. Instalado entre as cobertas olha para o Pai que lê com a ajuda de um pequeno abajur, colocado no chão ao lado do colchão e se perde em pensamentos.
E foi ai que se instalou o horror. O menino faz, pela primeira vez na vida, uma inferência. E esta é trágica. Numa voz insegura, beirando o choro que havia se recusado aparecer até ali, ele chama: Pai!  O Pai levanta os olhos do livro e apavorado escuta a pergunta que temia e que em algum momento viria: Você vai morrer? Não vai dar pra mentir agora e, cauteloso, ele explica: vai morrer, sim. Mas vai demorar muito, muito tempo. Só vai acontecer quando estiver velho, muito velho e com vontade de descansar. Ele, o menino, vai estar velho também. Muito velho. Afirma categórico: você já vai ter filhos e muitos netos quando Papai morrer. Agora dorme.
O menino se ajeita nas cobertas e fecha os olhos. O Pai aliviado volta à leitura. Deu certo! Passam-se alguns minutos e lá vem a voz trêmula de novo: Pai! Mamãe vai morrer? O Pai, agora mais seguro com o sucesso na primeira explicação, anima-se repetindo a história e animado, acrescenta bisnetos à descendência que se fará presente na época em que se der a morte da mãe. De novo, carinhoso, pede: agora dorme, meu filho.  Comovido olha para o menino que obediente fecha os olhos e parece dormir.
Volta ao livro e um longo tempo se passa até que volte a voz na pergunta que o deixa gelado: Pai! Eu vou morrer? Agora danou-se, pensa o Pai. Esquecido de todas as regras que sempre se impôs de bem informar o filho dizendo a verdade, não só repete a descrição da morte do menino rodeado de filhos, netos, bisnetos e tataranetos, como assegura que ele partirá radiante porque irá ao encontro dele Pai, da Mãe e, sobretudo, de Tupi que lá o aguarda saltitante. Os três o estarão esperando numa casa linda cheia de macacos nas árvores (o menino adora macacos). Perde-se numa descrição mirabolante desta moradia celeste. E ao terminar, censurando-se pela covardia e muito culpado, implora: agora dorme, meu filho
O silêncio agora se estabelece por muito tempo e o Pai consegue se desculpar: o importante agora era trazer a paz para aquela cabecinha atormentada. Mais tarde a verdade se instalará, naturalmente, em toda sua crueza. Mas não precisa ser agora. Ele é tão pequeno! Está exausto. Amanhã as coisas estarão mais diluídas e quem sabe o novo cachorrinho... e é ai que escuta a voz que agora vem carregada de espanto monumental: Pai! Que loucura, heim?!

2008

domingo, agosto 25, 2013

A PARTIR DAÍ...

Faz tempo... Na noite sem lua as roupas de montaria não poderiam ser mais estranhas: palhaços, piratas, havaianas e odaliscas cavalgam em demanda ao baile de carnaval do hotel, naquele povoado recém promovido à cidade. Adolescentes, já não mais freqüentam o baile infantil. As idades agora variam entre quinze e dezoito.
Naquele verão, pares haviam se formado em emocionantes namoros: o primeiro para todos eles. Conheciam-se desde sempre e, surpresos e encantados, se deram conta de que a noite podia trazer coisas mais emocionantes do que procurar buracos de tatu na mata. Os cavalos, amarrados na cerca, estão resignados com a espera que será longa e observam com olhos tristes o bando que, aos pares mão na mão, entram no salão. Relegados agora à condição de meio de transporte sentem saudades do tempo em que eram incluídos nas brincadeiras, como se humanos fossem.         
Sentadas em cadeiras dispostas ao longo da parede, hóspedes idosas com um olhar crítico, observam os enlouquecidos foliões que, aos berros, perguntam cantando: “que rei sou eu, sem reinado e sem coroa! ... Não se dirá romântica, a marchinha do ano, e muito menos é o saracoteio a que leva, mas a esta altura tudo é romântico para a menina-moça que olho nos olhos do amado, sente-se como valsando. O arrebatamento não é só seu. O namorado, até pouco tempo atrás apenas o mais temido adversário nas provas de salto, está também perdido de amores. Tão perdido que, incapaz de se conter, a toma nos braços, beijando-a no melhor estilo dos filmes da época. A havaiana e o pirata transmudam-se em Clark Gable e Vivien Leigh, numa cena tórrida.
E foi este beijo que deslanchou o incidente que iria modificar para todo sempre sua vida – a dela. Uma das senhoras foi queixar-se ao gerente do hotel: aquilo era inadmissível! Um atentado à moral e aos bons costumes locais. O gerente chama o rapaz à parte e exige um comportamento mais adequado aos olhos das matronas presentes. Ele, indignado e altivo, parte para você sabe com quem está falando? A família dela vai saber disto e não quero estar na sua pele amanhã.
Os beijos cessam por prudência; a indignação, não! O grupo, ao voltar para casa, delicia-se com a mais que prevista reação do tio pediatra, famoso por sua fúria incontida. O gerente será trucidado!  Demitido! Banido da cidade! Na mesa do café ela conta tudo à família reunida. E o pandemônio eclode! É o cúmulo! Onde já se viu! É inadmissível! Que audácia!
No café da manhã o tio pediatra explode esfregando a mãos num gesto que simula a execução da terrível ameaça: vou trucidá-lo. Reduzi-lo a pó de traque! Como sempre, após a explosão dos tios e tias, vem o silêncio para o pronunciamento da avó: gentinha! É o que nos traz esta modernidade! Poremos um paradeiro nisto!  A menina, encantada com o apoio que nunca lhe faltou, ri alegre. Aquele gerente idiota vai ver só o que é bom!
Mas o riso morre com o horror e o medo que lhe causa o berro do pai: Sua aristocratasinha tola e vazia. Quem você está pensando que é? Um silêncio pesado cai sobre a mesa. Lágrimas começam a brotar de seus olhos. O pai nunca fez isto! Pior é que não pára por ai. Absurdamente ele parte em defesa do gerente, acusando a ela! Como ousa desdenhar dos costumes e usos do lugar? Como ousa ameaçar um homem que está trabalhando e fazendo cumprir regras determinadas por seu trabalho? Proíbo -  – escutou bem, mocinha? – proíbo que se faça qualquer coisa a respeito. Se há alguma coisa a ser feita é um pedido de desculpas. Suas! A senhora vai ter muito que aprender daqui por diante! E ele se levanta, abandonando a mesa, deixando a família embasbacada.
Numa situação nunca vista como esta, somente a avó poderá intervir. Os olhares se dirigem para ela que estranhamente fala deixando de tocar nas medidas corretivas destinadas ao gerente: trata-se de um comunista! Toda família tem um! Ainda bem que este é apenas cônjuge. O episódio está encerrado. Ninguém fala mais nisto. Vamos terminar o café em paz!  Paz? Como?! E o apoio da  avó que não veio? O mundo desaba sobre ela. O pai?! Logo ele que ela adora acima de tudo e de todos.
Levanta-se quase derrubando a cadeira e vai chorar na varanda. Mais estranhamente ainda a avó não exige o retorno à mesa, como seria de se esperar. E, na varanda, ela se entrega ao desespero até que braços carinhosos a envolvem. São os do tio jogador. Soluçando se agarra a ele. Há muito o colo dos tios não é mais um porto seguro. Mas hoje... é tudo que quer. Ele apenas acaricia seus cabelos sem falar nada.
Uma confusão enorme toma conta dela. Busca o apoio certo: quem tem razão? Ele sorri, um sorriso quase triste: seu pai. Ela se revolta: logo você? Você nunca concorda com ele! Você não concorda com nada do que ele falou! Eu sei! O sorriso volta ainda mais triste: somos uma raça em extinção, meu bem! Seu pai... é o futuro. E ele te adora, minha linda. Vá conversar com ele. Mas, olha só, nunca deixe de gostar da gente. E agora, meu bem, enxuga este rosto e vamos ao pôquer.
Ainda sem entender, mas sentindo que alguma coisa havia mudado, volta a sorrir. E foi ao pôquer e, naquela mesma tarde, foi ao pai. A partir daí, começou a longa conversa que só terminou quando ele se foi, muitos anos mais tarde quando ela já era mãe. Mas fiel ao tio jogador, nunca deixou de gostar - amar mesmo – aquela família tão maravilhosamente louca. 

2007

sexta-feira, agosto 23, 2013

ONTEM...

Rio de Janeiro de 1945. A turma da praia de Copacabana era formada de três casais de namorados e um avulso: Marcelo. Colégio, guerra, beijos na boca, filmes de Hollywood e leitura de livros "proibidos", construíam a vida e os sonhos daquela meninada até que Maria do Socorro, prima de uma das meninas, vem para o Rio estudar. E nada mais foi como antes: Marcelo apaixona-se perdidamente por Maria e ela por ele. E foi uma reviravolta na vida daqueles meninos. Namoravam, sim, mas ainda não havia descoberto o amor. E aquilo de Marcelo e Maria era amor. Amor pra valer. Seria apenas mais um lindo romance: namoro, noivado e casamento, mas uma carta anônima é enviada ao arcaico pai de Maria. Furioso ele proíbe o namoro da filha com "aquele pilantra". Findo o ano escolar ela irá retornar ao Ceará. Até lá colégio interno e nos fins de semana só pode sair acompanhada pela Tia. A notícia deixou a garotada aterrada e Marcelo desorientado. O fim do romance os deixaria órfãos de amor. Era urgente, descobrir uma forma de impedir a separação. Mas, como? Até que numa conversa restrita aos rapazes, um lança a bomba: “emprenha ela! Ai tem que casar”. Foi um Deus nos Acuda. A reação indignada de Marcelo inicialmente é compartilhada pelos demais que aos poucos se rendem à evidência: é a única solução. Comunicam às meninas. Estranhamente estas exultam: é isto! Mas ai a coisa complicou. Dois problemas seriíssimos surgem: onde? Como ter certeza de que Maria ficaria grávida? A desinformação era total: virgens - as meninas; inexperientes – os rapazes. Além disto, Maria estava proibida de botar o pé fora de casa. Para solução criaram-se comissões já que o assunto era escabroso demais para ser discutido por um parlamento misto: a das meninas e a dos rapazes. Era ainda necessário que Maria, que não mais participava das reuniões, fosse consultada e concordasse com este passo tão radical. A prima faz a consulta. Emocionados, em baixo de cada uma das barracas meninas e rapazes são informado: ela disse sim. E Marcelo chorou. A comissão das meninas vai se ocupar de como ficar-se grávida certamente; a dos meninos do local. As soluções propostas, inicialmente beiram o absurdo:

-   Diz que vinagre é tiro e queda.
-   Pra tomar ou pra passar? 
-   Não sei!
- Um travesseiro em baixo pra ficar inclinada e o espermatozóide desce pela gravidade!
-   Você tem coragem de dizer espermatozóide na frente dos     meninos, quando for instruir Marcelo?
-   Dou um jeito.
-   Dentro de um carro.
-   Mais respeito! Você está falando da mulher que eu amo!

Finalmente um dos rapazes, a contragosto, confessa que um seu primo é dono de uma garçonnière. Duramente repudiado pelos amigos por ter escamoteado esta informação até aquela data torna-se, no entanto, o salvador da Pátria. Já têm o local. E uma das meninas, filha de médico, obtém do pai a solução “científica” para garantir a gravidez: a tabela de Ogino e Knauss. A prima eximia imitadora de assinaturas, habilidade que lhe valia sair da enrascada de péssimos boletins, produz um bilhete da mãe que permite a saída de Maria do colégio para ir ao dentista. E chega o grande dia. A garconníère é emprestada por apenas duas horas, à tarde. Na Americana, num consumo espantoso de sundaes de waffles com maple a turma espera aflita. Na imaginação deles, Maria e Marcelo são protagonistas de um filme. Trasvestidos nos atores preferidos de cada um desenrola-se uma tórrida cena de amor.

-   Ela levou camisola?
-   Não!
-   Xiiii!

Eles estão atrasados. Será que o Pai descobriu? Baixa o pânico. Um deles tem a horrível idéia: e se eles se suicidaram? E eles chegam. Mão na mão. Olhares, emocionados, tão emocionados, se concentram no rosto dos dois que apenas sorriem. Sem palavra eles deixam a chave na mesa e partem. Mão ainda na mão. O grupo, num silêncio mágico, segue atrás. Foi ontem... há sessenta e cinco anos. 

2010

quinta-feira, agosto 22, 2013

EU, HEIM?! QUE DESPERDÍCIO!

Quase setenta anos, vários casamentos e uma enorme solidão. É... Ele poderia ser descrito assim. A isto, adjetivos outros poderiam se juntar. Mas em nada iriam alterar o quadro, ainda que charmoso, inteligente, agradável e excelente profissional. Por que o que pesava mesmo era a solidão. Podia-se notar, nos momentos em que não se policiava, uma tristeza no olhar que, mesmo capaz de produzir o brilho, negava esta possibilidade.
Ele a encontrou sem planejar. Nem mesmo estava procurando. Quer dizer, não estava procurando “a” mulher. Procurava “uma”. Sempre o fazia. “A” foi o acaso criado por um olhar descuidado e um sorriso maroto que lhe escapou à censura costumeira. ‘Tava desprevenido, sabe? Nem podia imaginar! Vai daí não teve jeito: aos poucos foi se envolvendo, encantado com as afinidades, mas, sobretudo com as diferenças.
Desfrutando apaixonado a beleza dos desejos da cama, da mesa... da vida. Podia até ser piegas, mas ele lia versos para ela, deslumbrado pela mutua compreensão do sentido, numa emoção da voz e do olhar. Ela era mais moça. Não escandalosamente mais moça. Mais moça, apenas. Era bonito de se ver e, para ele, bonito de sentir.
Mas toda esta coisa gostosa foi só no início. Porque quando ele se percebeu gostando de verdade, e pior que isto, sendo gostado pelo que era, o medo bateu. Bateu lá nele. Um medo indefinido que começou a se materializar em ações e omissões. Ele nem mesmo percebia esse distanciamento a que se obrigava, atacado por perguntas que não fazia, mas sentia. E se não der certo? E se for como das outras vezes? E se ela me deixar, assim, de repente? Que garantias eu tenho?
Para ela não dizia nada. Emudecia, cada vez mais. Uma pena! Uma pena mesmo! Os quase setenta anos de passado acumulado como entulho forneciam uma fonte inesgotável de razões que borravam a visão do pra frente. E ele se indagava como poderia assumir uma ligação com os problemas que tinha. Na idade que tinha. Porque problemas para ele, além de não poderem ser compartilhados, não tinham solução. E continuava o martírio: quanto me custará recomeçar? Quanto tempo ainda tenho? Engraçado! Ele não percebia que esta última pergunta não tem sentido, em qualquer idade. Em todas estas dúvidas ele encontrava razão para uma confortável e triste imobilidade, para não mudar, para não ousar, para não arriscar.
E vai daí que não mudou, e vai daí que não ousou e vai daí que não arriscou. E ela foi murchando. Sofria sem entender os sumiços, as palavras dúbias, o não dizer. Foi um bocado triste. E foi então que ela começou a desgostar. Sofria e desgostava. Sofria e desgostava. Primeiro numa proporção que pendia mais para o sofrimento, para a dor. Mas com o passar dos dias foi-se voltando para o desgostar. Desgostar até dela mesma.
E chegou o momento em que isso foi tão forte que exigiu um fim, para que ela pudesse viver, para que ela pudesse sobreviver. Mais ainda, para que ela pudesse guardar na lembrança as coisas boas - tão boas - sem raiva, sem mágoa. Para ele, o desenlace significou a retomada dos “quase setenta anos, vários casamentos e uma grande solidão”. Só que agora essa solidão parecia bem maior. E, porque não conhecia outra maneira de pensar as coisas, ele comodamente acreditou que todo o tempo havia estado coberto de razão. Viu só como ela se foi? Viu só?! Se tivesse arriscado teria dançado!
Esta é uma história comum. Comum no sentido de que é freqüente, usual e costumeira, sobretudo para aqueles que têm quase setenta anos e têm medo de ainda viver, para o que der e vier. Sobretudo para o que vier, assim num por acaso do olhar descuidado e do sorriso maroto.
Na apresentação de um belo documentário de Joaquim Assis sobre o medo há uma frase: “Existem pessoas que passam a vida impossibilitando o desejável para depois desejarem este impossível”. Eu, heim? Que desperdício! 

2005

CINQUENTA ANOS ME CONTEMPLAM

Sei lá o que os soldados de Napoleão sentiram ao ouvir que séculos os contemplavam das pirâmides. Mas sei de minha emoção causada pelos cinqüenta anos que me contemplavam do caderno de receitas, amarelado pelo tempo. Procurava eu uma receita de rabanada de minha avó e encontrei a de Lutefisk! A letra é de Elsie. O ano 1960. Salvador, Baia. Tínhamos trinta anos: Maria Helena, Elsie e eu e, entre nós, oito filhos: quatro meninas e quatro meninos.
O equilíbrio parava por ai. No mais éramos muito diferentes. Elsie, filha de noruegueses, casada com filho de ingleses (em casa dela falava-se três línguas); eu casada com um filho de franceses (em casa falava-se duas); e Maria Helena, que era de origem guarani. As crianças pela convivência que só não ocorria quando dormiam, falavam (mal) todas essas línguas.
Nossos maridos haviam se pirulitado para os Estados Unidos em busca de aviões por lá comprados pela Aeronáutica. Eram eles capitães aviadores. Nós, as esposas, éramos olhadas com reservas pelas demais senhoras da Base Aérea. E, o fato de termos decidido entusiasticamente pela alegria de um Natal Norueguês, sob a batuta de Elsie, ao invés verter lágrimas pela ausência dos maridos, só acresceu na desconfiança de que éramos muito mal procedidas.
O tal Natal Norueguês começou um mês antes pela fabricação dos enfeites da árvore e preparo de uns estranhíssimos biscoitos de pimenta do reino!  Estes, em forma de bonecos, eram também destinados a enfeitar a árvore junto a origamis noruegueses e guirlandas de pipocas. As crianças tomavam parte nesta produção, devorando os enfeites e provocando uma confusão espantosa. Mesmo assim a coisa foi tomando forma e uma linda e enorme árvore começou a surgir no canto da sala de minha casa, escolhida para evento por ser de frente para o mar.
Os vizinhos (morávamos em casas da FAB na praia de Ondina) demonstraram por expressões e até por palavras cuidadosamente maldosas, sua reprovação diante do entusiasmo que nos invadira quando deveríamos estar arrasadas pela ausência dos cônjuges. Mal sabiam eles que até havíamos pensado em convidar os poucos oficiais solteiros para nossa “norke juletre” (árvore de natal norueguesa). Isto só não ocorreu porque era economicamente inviável: seriamos o dobro de convivas e o dinheiro era curto. Os pobres tiveram que se contentar com o peru sem gosto do Cassino de Oficiais com isto nos livrando de mais este escândalo.
A discussão do cardápio provocou momentos de terror ao nos ser informado por Elsie que o prato principal – o tal do Lutefisk – consistia em um peixe temperado com soda cáustica! O preparo levava cerca de dez dias que nos pareceram uma subida lenta para o cadafalso. Mas fazer o quê? Estávamos tão comprometidas com espírito natalino escandinavo que até a soda caustica tornou-se palatável. Muito estranho também foi o banimento de Papai Noel, substituído por um gnomo chamado Fjøsnisse que, ao contrário do bom velhinho, era muito mal humorado e malcriado e que se esconderia na garagem (a falta de celeiro norueguês) onde as crianças deveriam servi-lo com lauto prato de comida. Caso contrário acabaria com a festa. Entre as sobremesas uma espécie de bolo – Lukket Valnafat – recheado de prendas que vaticinavam o futuro para quem fosse agraciado com fatia que as contivesse.
E eis que chega a grande noite. As crianças enlouquecidas apalpavam os embrulhos que formavam uma pirâmide descomunal em baixo da árvore. Avós e tios haviam enviado do Sul Maravilha uma espantosa quantidade de presentes que pelas regras norueguesas só poderiam ser abertos depois da ceia. Possuídas de um riso nervoso (misto de medo e encantamento) as crianças, em procissão foram servir o gnomo. Alguns disseram que viram a sombra dele atrás do carro! Minha filha até ouviu o risinho dele.
Sobrevivemos à soda caustica e a uma absurda quantidade pimenta do reino, isto tudo regado com aquavit enviado pelos pais de Elsie. Aos gritos iniciamos a abertura dos presentes. O pandemônio instalado pelas crianças e seus novos brinquedos nos catapultou para varanda não sem antes esvaziar o prato do gnomo para comprovar sua existência.
A noite estava linda e o mar brilhava no escuro. Conversávamos aos gritos até que de repente percebemos o silêncio. Na sala, espalhados em sofás e poltronas as crianças dormiam vigiadas por Diaque, meu cão boxer que fazia parte do bando. Voltamos à varanda e uma imensa sensação de felicidade nos invadiu. Maria Helena verbalizou: pode noite mais gostosa? Nossa concordância foi muda. Estava tão bom que nem dava para falar. E ficamos no silêncio que só grandes amigos suportam sem constrangimento.
De repente fomos tiradas deste nirvana pela voz da vizinha que por cima do muro nos desejava um Feliz Natal. A voz era carregada de pesar: sei que para vocês está muito triste e têm razão para isto. Estou com muita pena mesmo. Sem saber o que falar culpadas pela felicidade que nos havia invadido, Elsie e eu ficamos mudas. Maria Helena tentou refutar: mas nós não estamos... e interrompeu a frase tomada por um aceso incontrolável de riso ao qual nos juntamos. Rimos até as lágrimas, riso este que recrudesceu ao escutarmos o marido (um major) declarar em alto e bom som: estas criaturas estão bêbadas!
Pouco tempo depois transferências nos separaram. Vimo-nos depois de raro em raro até que nunca mais. Mas deste caderno de receita me contemplam coloridos, lindos e nítidos os rostos de Elsie, Maria Helena, Johnny, Didi, Ian, Karen, Rosane, Rosângela, Rogério e Dora. Uma coisa é certa, neste Natal vou tomar aquavit!       

2010


quarta-feira, agosto 21, 2013

DA SÉRIE: A MENINA E...

Foi no primeiro dia depois das férias de julho do primeiro científico. A matéria nem era muito de meu agrado – História. Comentou-se no pátio que havia professor novo. Notícia de pouco interesse. Nem era matéria que poderia derrubar-me no vestibular.  
Naquele tempo vestibular não era esta guerra que é hoje: bastava estudar e pronto. Eu estava de costas quando ele entrou e só me dei conta quando o silêncio se fez, pondo fim à bagunça que reinava. Voltei-me e foi um alumbramento!
Hoje, quando me lembro, a cena correu em câmara lenta: ele encaminhando-se para a mesa, lindo de morrer; eu deslumbrada, achando-me deslumbrante, longos cabelos acompanhando o movimento de voltar-me para ele. Primeira coisa que pensei: eu tinha que vir com este vestido horrendo? Ainda bem que passei os cabelos a ferro! E foi ai que ele falou. Que voz! Disse quem era, o que pretendia ensinar e pediu que nos apresentássemos à medida que faria a chamada. O coração veio até a boca. Não havia tempo para decidir qual das atrizes da Metro deveria orientar a postura e a modulação da voz. Era preciso algum preparo e muita concentração para incorporar. E eu seria, como sempre, a primeira a ser chamada. Um handicap negativo que a letra A me trazia em todos os exames orais. Nunca perdoei o fato de meus pais não terem pensado no desastre que a ordem alfabética pode causar numa hora destas. Tudo que consegui dizer foi um patético e sem graça: sou eu proferido na ponta dos pés para parecer mais alta. Tentei fazer com que as outras informações fossem mais sedutoras. Impossível! Como é que um professor de história vai se interessar por alguém que está se preparando para o vestibular de química?! Tentei consertar: ... mas História é o meu grande prazer! Já de posse de todos os meus recursos dramáticos acompanhei esta declaração por um volteio de cabelos fazendo com que cobrissem parcialmente o rosto à imagem de Verônica Lake. Hoje, visto daqui, percebo que o olhar dele que me pareceu de encanto era mesmo de enorme espanto! Revoltada escutei um “eu, heim? Embirutou!” dito pelo colega que sentava atrás e que cursou o científico inteiro a custa das colas que eu lhe passava.
Não escutei nada do que ocorreu depois perdida que fiquei nos sonhos de um futuro (próximo) em que veria correspondido o arrebatamento de que fui presa. Durante a eternidade de cerca de três meses Ele reinou em minha vida até que se deu o amargo fim.
A primeira providência seria me tornar a primeira aluna em História. Aliada esta a um maior esmero no vestir. Passei até a me pintar, coisa que não fazia para ir ao colégio. Naquela época não se usava máscara para os cílios: neles aplicava-se Cilion que, garantiam os anunciantes, além de escurecê-los tinha o dom de fazê-los crescer em quantidade e comprimento. E foi lambuzada de Cilion que não sabendo que dissertação seria pedida na primeira prova mensal passei noites elaborando várias sobre a matéria dada, caprichando no estilo e chegando a conclusões originalíssimas e certamente inéditas.
Foi o primeiro desastre não percebido como tal. Na entrega das notas Ele, com aquele mesmo olhar por mim mal interpretado declarou: você escreve muito bem e é visível que você se esmerou, mas da próxima vez procure ser mais objetiva. Algumas impropriedades foram cometidas. Para não sofrer, agarrei-me no “você se esmerou” que junto ao “visível” devia significar, em código, uma apreciação de minha figura. Só podia ser. Aquele olhar que só era dirigido a mim não deixava dúvidas.
Na segunda prova fui objetiva, sim, mas... em versos decassílabos! Em rimas extraordinárias louvei Ptolomeu e Cleópatra. E o olhar dele começou a denunciar pânico o que eu interpretei como medo de ceder a meus encantos. Sem dúvida era isto, mesmo porque, durante as aulas, por várias vezes fixava os olhos em mim como se esperasse algum pronunciamento. Entendi o recado e pronunciava-me cada vez mais ousada, abusando do duplo sentido. O “o que é que está dando em você?” interpelado pelo colega receptáculo de cola não conseguiu alertar-me para o fato de que para toda classe era visível seu comportamento esdrúxulo. E pensei: criança! 
E veio o dia glorioso em que ele me chamou para uma conversa a sós na sala dos professores! Entrei sorrindo, sedutora, neste dia transmudada em Ava Gardner  A voz – ah! aquela voz – iniciou mágica: “meu bem!” E depois... a catástrofe. Ava Gardner nunca passou por uma situação assim. Com um enorme carinho ele foi dizendo que não era a primeira vez que isto acontecia; esclareceu que quando era menino também havia se apaixonado por uma professora. Entendia o que eu estava “pensando” que sentia. Que era normal, mas estava perturbando o mais importante que eram as aulas. O adquirir conhecimento, o passar de ano, o gol do vestibular. Tem tanto menino interessante em sua classe. Por que não prestar atenção neles? Com eles você pode dançar, ir ao cinema, ir à praia, viver uma verdade. E foi ai que veio o tiro de misericórdia: Olha só! Aquele que senta atrás de você (o imbecil da cola!) parece estar interessadíssimo em você. Dá uma chance a ele! 

2007


segunda-feira, agosto 19, 2013

A BELEZA DA EXCEÇÃO ou SAUDADES DE D. HELDER

Não consigo fugir da duplicidade do título. Atribuí um, depois outro, e percebi que o certo seria valer-me dos dois. Nestes últimos tempos em que vi excomungada uma equipe médica que cumpriu com seu dever, e com a Lei, me dei conta de que para a religião católica não existe a possibilidade de exceção. Pouco sei sobre as outras religiões para generalizar minha descoberta atribuindo a todas elas este estranho fenômeno. Fenômeno, sim. E dos maiores.
Exceção existe em tudo e em todos. Mesmo no Dura Lex, Sede Lex, as exceções ocorrem. Caso não ocorressem, desnecessários seriam os magistrados que interpretam a Lei aplicando-a com bom senso e inteligência, de acordo com as circunstâncias em que fatos ocorrem. Exceções existem de montão na natureza e no ser humano, ambos criados por Deus, segundo a Igreja. Não admiti-la é absurdo e desumano, como no caso da menina de nove anos estuprada pelo padrasto. Não discuto a posição oficial da Igreja contra o aborto. É lá uma Lei dela e deve ter sua razão de ser. Mas esta Lei não admite exceções? Nenhuma? Isto me parece absurdo. Mais do que isto parece uma incoerência. Por que o “não matarás dos 10 Mandamentos (de onde, me parece, se origina a proibição do aborto) não é aplicado às guerras que eliminam milhões de homens, mulheres e crianças? Por que não são excomungados os que as promovem ou os que delas participam? É uma exceção ou não é?
O desumano pronunciamento do Arcebispo de Recife é um tanto sem pé nem cabeça, não é não? E ai vocês devem estar se perguntando: onde entra D. Helder nesta história? Além da coincidência de ter sido, também ele, Arcebispo de Olinda e Recife, foi uma das pessoas mais humanas que conheci. Muito amigo de meu pai tive o privilégio de conversar com ele muitas vezes.
Fui educada na religião católica, mas não me tornei uma. Não cabe aqui comentar por que deixei de sê-lo. Mas me encantava ouvir D. Helder dela falar. Nele, a religião católica era verdadeiramente a do perdão, a da compreensão, a da aceitação, a da compaixão, a da caridade, nas acepções mais bonitas que possam ter estas palavras. Humano ele era e porque tão humano tinha algo de divino.
Lembro-me da última vez que o visitei em Recife, como sempre o fazia quando lá ia a trabalho. O cafezinho, naquela casinha nos fundos da Igreja das Fronteiras, era de lei. Pouco tempo depois ele morreu e me fez falta. Faz muita falta a este País, como vejo agora. Desta última vez que o vi contou-me uma história deliciosa que com ele havia ocorrido nos anos de chumbo. Lembro-me de que ri muito e só depois percebi que o riso fácil era uma avaliação menor para o ocorrido. A história é tão linda que nem sei! Não faz rir, não. Faz pensar o quanto havia de grande e humano naquele homem frágil, de voz tão mansa.
Mas vamos ao relato e vocês julgam: naquela época tão sofrida dos anos que se seguiram a 1969, D. Helder era uma figura preocupante. Como enfrentá-lo? Confinado à sua Arquidiocese a “gloriosa” tinha a maior dificuldade em fazê-lo calar-se. Os olhos do mundo estavam sobre ele e uma repressão maior que o confinamento teria conseqüências funestas para o Governo. Havia um pavor de que qualquer agressão a ele dirigida pudesse ser atribuída à truculência dos militares. E estes deliravam temendo que um atentado “terrorista” fosse engendrado para incriminá-los. Da mesma forma, os admiradores de D. Helder temiam por alguma agressão destes mesmos militares. Isto fazia com que qualquer deslocamento do Arcebispo fosse acompanhado por carros das duas facções visando garantir e proteger sua integridade física. Isto incomodava D. Helder que adorava andar a pé pelas ruas do Recife e gostava de fazê-lo com liberdade.
Naquela mesma época o Prefeito resolveu, a bem da ordem e dos bons costumes, banir as prostitutas da cidade, transferindo-as para uma periferia longínqua. Apavoradas com a possível redução da clientela que lhes garantia o sustento, foram procurar D. Helder para que intercedesse a seu favor.  O que ele prontamente fez conseguindo que fosse sustada a medida, convencido de que “esconder o sofá” não resolveria o grave problema social.
Pois bem, num de seus passeios a pé, D. Helder desesperado com a perseguição dos dois carros, deu uma de esperto. Enveredou-se por uma ruela à qual os carros não poderiam ter acesso. Só depois de andar alguns metros é que se deu conta de que estava em pleno baixo meretrício. Prostitutas em portas, janelas e sacadas, quase nuas, ajoelhavam-se à sua passagem pedindo benção, que ele foi ministrando à direita e à esquerda, apertando o passo para dali sair o mais rápido possível antes que algum repórter surgindo do nada registrasse o inusitado episódio que faria a festa de jornais do mundo inteiro. Já quase no meio da rua, de uma das sacadas veio o grito entusiasmado e comovido: Viva D. Helder, o bispo das Putas! E a rua explode em palmas e vivas. Abençoando cada vez mais rápido, quase correndo, ele se foi.
E sorrindo me contou o acontecido. Bonito, não? É o que faria Cristo, acho, na mesma situação. Mas certamente não é o que faria o atual Arcebispo. E isto provavelmente se deve ao fato dele não conhecer o Filho de Deus tão intimamente quanto D. Helder conhecia. E, porque não o conhecia não aprendeu que perceber as exceções, e tratá-las como tal, é um ato humano, bonito, inteligente e, sobretudo, cristão.

2012

AS ARGOLAS E A MEMÓRIA

Uma empregada negra gira em torno da mesa. Impecavelmente uniformizada e de avental. Caminha lenta e solene, retirando de um cesto de vime enormes guardanapos de linho envolvidos por argolas de marfim com números incrustados em metal dourado. Atenta, ela consulta o número de cada uma antes de colocá-la sobre o prato num ordenamento ilógico.  A última a ser colocada, à cabeceira da mesa é a argola numero 2. É a da Avó.

A lembrança vem nítida. E com ela a mesma sensação de segurança, de pertencer, de ser alguém, provocava pela colocação da argola 17. A minha. Entre as de número 10 do Tio Cavaleiro e 13 da Prima Mais Querida. Ao contrário da numeração das argolas que indicavam o surgimento da pessoa na família, ou por nascimento ou por casamento, o critério da ordenação na mesa nunca foi revelado. A partir de certa idade comecei a desconfiar que a ordenação representasse a ordem de preferência da Avó. Não fosse assim por que o tio Cavaleiro, que era o mais moço, ocupava sua direita? Dele a Avó dizia: ponho todos num prato da balança e ele no outro. E o equilíbrio se dá!  Absurdo aceito com naturalidade por todos sem o menor ressentimento. À esquerda a Tia Literata. A argola 1 havia sido do Avô, morto muito antes do meu nascimento e ocupava lugar na mesa de cabeceira do quarto onde morrera, mantido exatamente como no momento da morte. Duas outras argolas provocavam uma lacuna na numeração: a 5 e a 9 pertencentes aos dois tios que morreram ainda crianças. Fechando a fila a argola 23 da pequena filha do Tio Cavaleiro, última figurante da terceira geração. A Avó ainda vivia quando despontaram cinco bisnetos. Mas esta quarta geração não foi agraciada com argolas. Quem sabe a Avó, onisciente que era, sabia que com sua morte o clã seria desfeito. Argolas seriam impossíveis porque a mesa iria desaparecer como tudo mais.

À mesa conversa gira animada quando se escuta o guizo de uma charrete. Um silêncio aflito se instala. O som do guizo cessa e um empregado esbaforido entra com uma garrafa de cerveja nas mãos e a coloca em frente do Tio Pediatra que está tirando o guardanapo da argola 11.  Ele abre, enche o copo. O empregado dá um passo atrás e aguarda alguma coisa. O Tio prova e num acesso de fúria arremessa o prato pela porta janela em direção à varanda. Aos berros denuncia: está choca! Quando é esta droga de luz chegará? Geladeira. Exijo uma geladeira! Ouve-se a voz da Avó, ordenando à empregada, sempre a postos atrás de sua cadeira: outro prato para o Doutor. E ao som dos caquinhos do prato arremessado, varridos pelo empregado, a conversa retoma alegre.

A argola 8 pertencia ao Tio Jogador. Seu lugar à mesa tinha uma disposição diferente para que pudesse ser colocado ao lado do prato o minúsculo tabuleiro de xadrez que sempre o acompanhava quando não estava frente ao grande tabuleiro-mesa que ocupava um lugar num dos cantos da sala de estar. Só deixava um deles quando numa mesa de poker ou de bridge onde iniciava os sobrinhos nestes jogos garantindo assim parceiros não conseguidos entre os irmãos. Mesmo para o xadrez éramos aliciados. Aos sete anos ganhávamos deste tio um tabuleiro e peças de xadrez e enquanto ele lia jornal jogava conosco partidas simultâneas em que cantávamos nossas jogadas e recebíamos de volta as suas sem jamais conseguirmos uma vitória.

A argola 21 pergunta: em que parte você está? Refere-se o Tio Literato ao À La Recherche Du Temp Perdu, de Proust. Uma das tarefas literária daquele verão. Engulo em seco: estou detestando o livro. O Tio Cavaleiro pisca o olho maroto sugerindo: enrola qualquer coisa. A Tia Madrinha vem a socorro: este seu namoro está ficando sério. Ele vem jantar hoje?

Os visitantes também tinham argolas idênticas às outras, mas sem número.  O namorado que se tornou marido foi agraciado com uma quando preencheu a condição. A esta altura já se estava no número 26. As duas primas mais velhas haviam casado antes.

Deito a cabeça no colo da Avó. São mágicas as argolas? Quando você comprou como é que sabia quantas seriam? Quantos números você ainda tem? Ela sorri. Aquele sorriso fino e enigmático de sempre e responde: tenho tantas quantas forem necessárias. Seu olhar percorre a sala onde estão todos conversando animados. Alguns com pequenos no colo. Não necessariamente seus filhos. Os colos eram comunitários. A gente se apoderava do mais a mão. Ainda com o sorriso, depois de olhar longamente para cada um, a avó declara: mágicas? Vai daí quem sabe, meu bem. Talvez sejam...
2007  

domingo, agosto 18, 2013

PROBLEMA DE REPERTÓRIO

Nos seus radiosos 20 anos o rapaz me declara: isso não está no meu repertório numa sorridente resposta à minha pergunta: você sabe qual é o ônibus que passa na Praça XV? Não resisto: você tem um repertório?! Ele me assegura que todo mundo tem e se afasta levando o repertório que eu daria tudo para conhecer.
Já instalada no ônibus que evidenciava a não necessidade de minha pergunta, pois ostentava em letras enormes o nome Praça XV, o “todo mundo tem começa a incomodar. Desolada, me pergunto será que eu tenho um? Repertório pressupõe, creio eu, uma classificação, um conjunto homogêneo de informações prontas para divulgação. Um mínimo de organização deve ser necessário. Uma bela bagunça de saberes e pensares não deve se constituir em um. Desisto da auto-analise. Sempre que esta me acomete oscilo entre dois sentimentos opostos: ou extremamente complacente ou extremamente crítica. Melhor ampliar o campo da pesquisa investigando parentes e amigos buscando identificar o repertório lá deles. Mas de há muito que os aceito exatamente como são e isto pode me levar a julgamentos que não pretendo fazer. Melhor pensar em tese sem identificar o objeto.
E me dou conta de que existem, sim, pessoas-repertório. Devem ser aquelas especializadas em determinados assuntos cujas minúcias conseguem encaixar em qualquer conversa. Ultimamente surgiu o “eno-chato com seu vasto repertório de informações sobre o vinho que está se tomando. Mais das vezes fala daquele vinho que se deveria tomar ao invés deste, tirando todo prazer que estávamos tendo. E despeja em nossas taças um verdadeiro tratado sobre perfume (perdão: “bouquet”!), gosto, transparência, textura e que mais sei eu.
Tem aquele nota-ao-pé-da-página que teima em fornecer pormenores sobre qualquer fato, pessoa ou assunto em pauta fazendo com que a conversa que estava gostosa seja entrecortada a cada segundo por informações de datas, parentescos, fatos históricos e acidentes geográficos.
Existe ainda o que têm um repertório de pessoas de destaque. Ao mencionar-se um nome imediatamente nos é repassada a informação de que o dono do repertório o conhece pessoalmente e às vezes, com um ar de falsa modéstia, é dito que até intimamente. Este conhecimento confere uma enorme importância ao conhecedor. 
E me vem à memória um incidente do qual fui protagonista pelo fato de, por mero acaso, conhecer “alguém”. Fui nesta ocasião objeto de extraordinário up-grade aos olhos de outros. Os “outros” eram graduados funcionários do Governo e a cena passava-se em Brasília, mais precisamente na Academia de Tênis onde pululam pessoas notáveis. Por lá aportei ao final de uma reunião de trabalho a que fui obrigada a comparecer representando o organismo ao qual prestava assessoria num projeto. Vai daí que me vi incluída nessa ilustre mesa de jantar. Quer dizer, eu não estava de fato incluída nem na mesa, nem em parte alguma. Deixarem de interessar-se por mim tão logo ficou evidente que não seria capaz de concorrer com um único vocês souberam que...?
E eis que entra no restaurante, acompanhado por um séqüito, “O Ministro”! Eu o havia conhecido em casa de amigos, havia séculos, quando nem sonhava ser um. O mais graduado presente em nossa mesa levanta-se e abre os braços chamando a atenção do Ministro que passaria forçosamente por nós, a caminho da sua.  Estranhamente iniciou-se um balé: todos os outros também se levantaram abrindo e agitando seus respectivos braços num entusiasmo espantoso com um sorriso de beatitude nos lábios. Eu me deixei ficar onde estava pensando: é claro que este sujeito não se lembra mais de mim. Não vou nem cumprimentar pra não passar vergonha.
Mas para espanto da platéia (e meu!) o Ministro, ignorando os braços dançarinos, avança em minha direção dizendo meu nome em alto e bom som, completando com “mas que prazer vê-la. Há quanto tempo! Por onde tem andado? Fazendo o que em Brasília?” Daí seguiu-se uma rápida troca de frases intrigantes para os presentes: eram gostosas aquelas reuniões. Eram mesmo. Tem estado com eles? Não. Faz tempo que...   E, horror dos horrores: o homem me agracia com um cartão dizendo ai tem o número de meu celular. Não deixe de me telefonar sempre que vier à Brasília. E ele se afasta em direção ao séqüito que o aguardava lançando apenas um sorriso para os braços abertos.
A partir daí foi um Deus nos Acuda. Meu estado de total invisibilidade transformou-se num brilho de “super star. Eu, até aquele momento aquela insignificante figura, era agora detentora do número do celular Dele! Meteoricamente passando de “out” ain fui guindada à posição de pessoa interessantíssima sobre a qual tudo deveria ser sabido. Ao final do interminável jantar deu-se uma também interminável discussão entre os presentes que se digladiavam para resolver qual deles me depositaria no hotel com a bolsa mais pesada pela quantidade de cartões (ainda os tenho!) com que fui agraciada. Vai ver imaginavam que neste percurso poderia ser obtido o precioso número do celular...  
O ônibus me deposita na Praça XV interrompendo a lembrança. E me ficou a certeza de que tenho, sim, um repertório: incidentes que tornaram minha vida pra lá de divertida e que me valerão, por um longo tempo, material para estas crônicas.
2007