O advento da Internet quase eliminou a
locução de frases iniciadas com “dizem que...” Estas eram ditas no passado em
tom alarmista ou confidencial para revelar fatos absurdos ou de natureza
inconfessável. Hoje, estes são divulgados no espaço cibernético. Assim ficamos
sabendo que o recém assassinado Osama Bin Laden pretendia explodir o Cristo
Redentor; que ao ligar para o número 9963-0009 teremos o telefone clonado; que
a caixa do leite longa vida é responsável pela re-pasteurização do leite; e que
a prata pode sugar toda energia vital de um ser humano.
No meu entender a origem destas loucuras deve
ocorrer da mesma forma que ocorria para os “dizem que...”: nem sempre maldosa,
nem sempre inventada. Possivelmente surgem porque alguém não se apercebeu onde
o galo cantava e saiu espalhando a torto e a direito sem qualquer censura. Digo
isto porque fui testemunha do surgimento de uma dessas lendas extraordinárias,
no caso envolvendo a vida pessoal de um casal amigo.
Morávamos em casas vizinhas, em Salvador, na
Praia de Ondina. Coincidentemente tinham eles um casal de filhos da mesma idade
dos meus. O convívio diário e a ausência de família por perto fez com que nos
tornássemos muito íntimos. Os dois meninos, filhos mais velhos, também se
tornaram os melhores amigos. O mesmo aconteceu com as duas meninas mais moças.
Frequentavam a mesma escola e no tempo livre transitavam entre as duas casas
como se ambas lhes pertencessem. Nós, os pais, também nos tornamos comuns às
crianças para efeito de permissões e proibições. Foi assim que não me assustei
quando a menina entra em prantos no meu quarto e se atira no meu colo chorando.
Alguma desavença na certa. Não estava eu preparada para o que estava por vir e
num primeiro momento emudeci no espanto.
Soluçando ela me declarou que queria vir
morar comigo e ser minha filha porque acabara de saber que o irmão não era
filho de seu pai! Aos prantos ela me dizia que a mãe havia declarado que
Alexandre – o irmão – era filho do Felipe (um capitão aviador que morava poucas
casa adiante). Recobrando do espanto procurei elucidar a história. Disse-me ela
que o pai e a mãe estavam discutindo e que quando a mãe disse que Alexandre era
filho do Felipe, o pai rindo (!!!) disse que Alexandre era filho do Leônidas
(!!!). Este, o Leônidas, era um oficial há pouco transferido para outra Base
Aérea.
O horror tomou conta de mim. Como é que se
discute uma barbaridade destas em frente a uma criança? Era obvio que a menina
não poderia ter inventado isto. Tinha apenas oito anos. Impossível arquitetar
tal monstruosidade. Levei algum tempo para me recompor e era evidente que
alguma coisa tinha que ser feita. Meu primeiro cuidado foi me certificar de que
ninguém mais havia escutado a tal discussão. Infelizmente, segundo a menina, a
empregada e o jardineiro também haviam sido testemunhas do fato. O irmão,
felizmente, estava em minha casa no momento do ocorrido. Procurei consolar a
menina dizendo que podia ficar comigo o tempo que quisesse, mas que devia ter
uma explicação para o que ela tinha escutado e que eu iria a sua casa para
elucidar melhor esta história.
Apavorada, eu não via alternativa senão a de
comunicar ao casal que a filha havia escutado as terríveis revelações e que não
queria mais vê-los. Reuni o pouco de coragem que ainda me restava e marchei
para a casa vizinha. Encontro o casal na sala, ele lendo e ela costurando: uma
cena de família feliz. Minha revolta estava a ponto de explodir. Os sorrisos a
mim dirigidos morreram quando eu declarei que estava ali para um assunto muito
sério e extremamente constrangedor.
Começo o meu relato e antes que o pudesse
terminar os dois são tomados por um ataque de riso incontrolável. Ataque este
que também me acometeu quando me contaram que estavam discutindo sobre quem
seria o pai de Alexandre o Grande: ela dizia ser Felipe da Macedônia e ele
dizia que era Leônidas de Esparta. Corro a minha casa para sossegar a menina e
durante muito tempo ainda riamos do episódio.
Pois bem, anos depois, eu já desligada da
FAB, encontro com um casal que também morava em Salvador na época em que esta
história sucedeu. Como sempre acontece nestes encontros, perguntas se cruzam
buscando saber informações sobre o paradeiro dos outros casais que moravam na
vizinhança. E chegado ao casal da história, num tom ultra confidencial, a
mulher declara: dizem que o filho mais
velho era filho de outro oficial! Você sabe de quem se trata? Você deve saber
já que eram muito amigos.
A este casal eu pude contar a versão correta,
mas sei lá eu se me acreditaram. A verdade, muitas vezes parece menos
verossímil que o “dizem que...” Mas, ainda que tenham acreditado, seria
impossível esclarecer a todos que haviam sido alvo da inconfidência do
jardineiro ou da empregada. Da mesma forma que na Internet a coisa
provavelmente havia se espalhado enxovalhando para todo sempre a história
matrimonial de pelo menos três casais. Só espero que não tenha chegado aos
ouvidos das senhoras de Leônidas e Felipe!
2011
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