domingo, novembro 17, 2013

POR OUVIR DIZER

O advento da Internet quase eliminou a locução de frases iniciadas com “dizem que...” Estas eram ditas no passado em tom alarmista ou confidencial para revelar fatos absurdos ou de natureza inconfessável. Hoje, estes são divulgados no espaço cibernético. Assim ficamos sabendo que o recém assassinado Osama Bin Laden pretendia explodir o Cristo Redentor; que ao ligar para o número 9963-0009 teremos o telefone clonado; que a caixa do leite longa vida é responsável pela re-pasteurização do leite; e que a prata pode sugar toda energia vital de um ser humano.

No meu entender a origem destas loucuras deve ocorrer da mesma forma que ocorria para os “dizem que...”: nem sempre maldosa, nem sempre inventada. Possivelmente surgem porque alguém não se apercebeu onde o galo cantava e saiu espalhando a torto e a direito sem qualquer censura. Digo isto porque fui testemunha do surgimento de uma dessas lendas extraordinárias, no caso envolvendo a vida pessoal de um casal amigo.

Morávamos em casas vizinhas, em Salvador, na Praia de Ondina. Coincidentemente tinham eles um casal de filhos da mesma idade dos meus. O convívio diário e a ausência de família por perto fez com que nos tornássemos muito íntimos. Os dois meninos, filhos mais velhos, também se tornaram os melhores amigos. O mesmo aconteceu com as duas meninas mais moças. Frequentavam a mesma escola e no tempo livre transitavam entre as duas casas como se ambas lhes pertencessem. Nós, os pais, também nos tornamos comuns às crianças para efeito de permissões e proibições. Foi assim que não me assustei quando a menina entra em prantos no meu quarto e se atira no meu colo chorando. Alguma desavença na certa. Não estava eu preparada para o que estava por vir e num primeiro momento emudeci no espanto.

Soluçando ela me declarou que queria vir morar comigo e ser minha filha porque acabara de saber que o irmão não era filho de seu pai! Aos prantos ela me dizia que a mãe havia declarado que Alexandre – o irmão – era filho do Felipe (um capitão aviador que morava poucas casa adiante). Recobrando do espanto procurei elucidar a história. Disse-me ela que o pai e a mãe estavam discutindo e que quando a mãe disse que Alexandre era filho do Felipe, o pai rindo (!!!) disse que Alexandre era filho do Leônidas (!!!). Este, o Leônidas, era um oficial há pouco transferido para outra Base Aérea.

O horror tomou conta de mim. Como é que se discute uma barbaridade destas em frente a uma criança? Era obvio que a menina não poderia ter inventado isto. Tinha apenas oito anos. Impossível arquitetar tal monstruosidade. Levei algum tempo para me recompor e era evidente que alguma coisa tinha que ser feita. Meu primeiro cuidado foi me certificar de que ninguém mais havia escutado a tal discussão. Infelizmente, segundo a menina, a empregada e o jardineiro também haviam sido testemunhas do fato. O irmão, felizmente, estava em minha casa no momento do ocorrido. Procurei consolar a menina dizendo que podia ficar comigo o tempo que quisesse, mas que devia ter uma explicação para o que ela tinha escutado e que eu iria a sua casa para elucidar melhor esta história.

Apavorada, eu não via alternativa senão a de comunicar ao casal que a filha havia escutado as terríveis revelações e que não queria mais vê-los. Reuni o pouco de coragem que ainda me restava e marchei para a casa vizinha. Encontro o casal na sala, ele lendo e ela costurando: uma cena de família feliz. Minha revolta estava a ponto de explodir. Os sorrisos a mim dirigidos morreram quando eu declarei que estava ali para um assunto muito sério e extremamente constrangedor.

Começo o meu relato e antes que o pudesse terminar os dois são tomados por um ataque de riso incontrolável. Ataque este que também me acometeu quando me contaram que estavam discutindo sobre quem seria o pai de Alexandre o Grande: ela dizia ser Felipe da Macedônia e ele dizia que era Leônidas de Esparta. Corro a minha casa para sossegar a menina e durante muito tempo ainda riamos do episódio.

Pois bem, anos depois, eu já desligada da FAB, encontro com um casal que também morava em Salvador na época em que esta história sucedeu. Como sempre acontece nestes encontros, perguntas se cruzam buscando saber informações sobre o paradeiro dos outros casais que moravam na vizinhança. E chegado ao casal da história, num tom ultra confidencial, a mulher declara: dizem que o filho mais velho era filho de outro oficial! Você sabe de quem se trata? Você deve saber já que eram muito amigos.

A este casal eu pude contar a versão correta, mas sei lá eu se me acreditaram. A verdade, muitas vezes parece menos verossímil que o “dizem que...” Mas, ainda que tenham acreditado, seria impossível esclarecer a todos que haviam sido alvo da inconfidência do jardineiro ou da empregada. Da mesma forma que na Internet a coisa provavelmente havia se espalhado enxovalhando para todo sempre a história matrimonial de pelo menos três casais. Só espero que não tenha chegado aos ouvidos das senhoras de Leônidas e Felipe!

2011

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