Quem
não atingiu uma vez na vida um ponto limite em que, furioso, gritou esta frase?
Sempre que me ocorre alguma situação análoga me vem à memória um incidente do
qual fui testemunha faz tempo: uma revolta mais que justificada e expressada de
maneira extraordinariamente adequada.
Sei lá
eu por que minha mãe não contratava copeira. Os serviços a esta atribuídos, em
nossa casa, sempre foram desempenhados pelo sexo masculino. Entre os muitos
que por lá passaram destacava-se Anísio, rapaz franzino com alma de cordeiro.
Anísio era tatibitate e trocava “R” por “L”. Além disto, quando falava a língua
travava nos dentes desfigurando o som do “S” tornando-o apenas um leve sopro.
Anísio era de uma lentidão espantosa levando ao desespero os que o observavam
trabalhar. Minha mãe, ao contrário, era elétrica e jamais consegui entender
como era possível a perfeita harmonia que existia entre os dois. Os episódios
em que contracenavam eram inacreditáveis.
Eu, já
casada e morando no nordeste, todas as vezes que vinha ao Rio, os assistia
fascinada como quem assiste a um espetáculo teatral. Alguns desses espetáculos
ficavam sempre em cartaz e, de tão aflitivos, só deviam ser presenciados uma
única vez. Podiam levar o espectador á loucura ou ao suicídio. A criação de um
deles deveu-se ao surgimento dos supermercados. Até então as compras eram
feitas em armazéns e quitandas, anotadas numa caderneta pelo dono do
estabelecimento e pagas ao final de cada mês. O supermercado, símbolo da
modernidade, apresentava um atraso em relação ao velho armazém: a nota. Esta foi
substituída por uma tripa de máquina registradora, que podia ser enorme
dependendo da quantidade de itens adquiridos. Naquela época a tripa exibia
apenas preços sem discriminação do produto. Por sua vez a mercadoria também não
exibia os ditos preços. Resultado: conferência impossível para qualquer mortal
que não fosse a dupla Anísio/Mamãe.
Para
conseguir esta proeza Anísio era submetido a uma tortura que nem os mais
requintados chineses teriam imaginado. A cena começava com ela, em sua
escrivaninha, tripa da registradora nas mãos e Anísio em pé ao lado. Num tom
interrogativo Mamãe lia alto o primeiro preço da tripa: 4 cruzeiros e 40 centavo? Este primeiro item, Anísio em seu idioma
particular e com a lentidão de sempre, conseguia identificar: calne seca. A tragédia iniciava a partir
do segundo: 7 cruzeiros e 31 centavos? Silêncio sepulcral. Nunca entendi porque não ocorria a Anísio
dizer simplesmente: não sei ou não me lembro. Neste ponto a voz de minha mãe se
elevava ligeiramente, não mais interrogando, mas afirmando com severidade e
ligeira irritação: 7 cruzeiros e 31
centavos! E Anísio nada. E ela: a
lista, Anísio! Anísio procurava no
bolso da calça a lista que havia levado e entregava. Minha mãe começava a
leitura em voz alta e a cada item repetia a mesma pergunta variando apenas
quanto ao nome do item: poderia ser
cebola? E Anísio preso a sua mudez
apenas balançava a cabeça em negativa.
Até que chegavam ao item correspondente
e Anísio radiante e tão rápido quanto permitia a lentidão atávica, num quase
grito: esse tá celto! E passavam para o próximo preço da tripa repetindo o
absurdo das falas. Isto durava horas e nem ela, nem Anísio, perdiam a
paciência. Nem quando (e era freqüente!) tinham que voltar ao começo se erro na
identificação fosse evidenciado pela impossibilidade do último preço
corresponder ao último item. Quando isto acontecia minha mãe num tom de
escandalizado dizia: como é que um
pacotinho de gilete pode custar 15 cruzeiros, Anísio? Este adotava uma
expressão muito triste, desolada mesmo e murmurava: não pode. E tudo recomeçava. Só descrevo esta cena para ilustrar a
docilidade de Anísio: um pombinho sem fel! Assim poder-se-á usufruir todo o
sabor da história que quero contar.
A sala
de jantar de minha mãe era mobiliada com móveis monstruosamente grandes
oriundos da casa de minha avó. O tamanho era mesmo inacreditável. Em criança eu
morria de medo deles porque os pés da mesa eram formados de gárgulas esculpidas
na madeira e eu achava que me iam devorar as pernas. Mas eis que Mamãe resolve
mudar a arrumação da sala movendo a mesa (de doze lugares), o enorme armário e
a monumental cristaleira. Munida de um esquema encarrega Anísio da execução da
mudança. Tarefa própria para um Hércules, face ao peso dos móveis, mas não para
o frágil e pequeno Anísio que estava longe de sê-lo. Do andar de cima
escutávamos o som dos móveis sendo arrastados. Isto durou horas.
Finalmente
um Anísio exausto adentra a sala onde estávamos e comunica radiante: está plonto! Plontinho! Majestosa minha
mãe desce as escadas seguida por Anísio e por mim. Os móveis estavam em suas
novas posições precisamente de acordo com o esquema. Minha mãe percorre a sala
com um olhar crítico. Anísio, com um doce sorriso, espera a certa aprovação
quando ela declara impiedosa: era isto
mesmo, Anísio. Mas ficou horrível. Volta tudo para onde estava. Olho para
Anísio procurando avaliar através de sua expressão a devastação que estava
sendo causada. Mas mudança de expressão ocorreu em mim e em minha mãe.
Horrorizadas, escutamos na doce voz de Anísio: agola chega! Melda, D. Vera. Melda!
2011
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