terça-feira, novembro 26, 2013

AGORA CHEGA!

Quem não atingiu uma vez na vida um ponto limite em que, furioso, gritou esta frase? Sempre que me ocorre alguma situação análoga me vem à memória um incidente do qual fui testemunha faz tempo: uma revolta mais que justificada e expressada de maneira extraordinariamente adequada.

Sei lá eu por que minha mãe não contratava copeira. Os serviços a esta atribuídos, em nossa casa, sempre foram desempenhados pelo sexo masculino. Entre os muitos que por lá passaram destacava-se Anísio, rapaz franzino com alma de cordeiro. Anísio era tatibitate e trocava “R” por “L”. Além disto, quando falava a língua travava nos dentes desfigurando o som do “S” tornando-o apenas um leve sopro. Anísio era de uma lentidão espantosa levando ao desespero os que o observavam trabalhar. Minha mãe, ao contrário, era elétrica e jamais consegui entender como era possível a perfeita harmonia que existia entre os dois. Os episódios em que contracenavam eram inacreditáveis.

Eu, já casada e morando no nordeste, todas as vezes que vinha ao Rio, os assistia fascinada como quem assiste a um espetáculo teatral. Alguns desses espetáculos ficavam sempre em cartaz e, de tão aflitivos, só deviam ser presenciados uma única vez. Podiam levar o espectador á loucura ou ao suicídio. A criação de um deles deveu-se ao surgimento dos supermercados. Até então as compras eram feitas em armazéns e quitandas, anotadas numa caderneta pelo dono do estabelecimento e pagas ao final de cada mês. O supermercado, símbolo da modernidade, apresentava um atraso em relação ao velho armazém: a nota. Esta foi substituída por uma tripa de máquina registradora, que podia ser enorme dependendo da quantidade de itens adquiridos. Naquela época a tripa exibia apenas preços sem discriminação do produto. Por sua vez a mercadoria também não exibia os ditos preços. Resultado: conferência impossível para qualquer mortal que não fosse a dupla Anísio/Mamãe.

Para conseguir esta proeza Anísio era submetido a uma tortura que nem os mais requintados chineses teriam imaginado. A cena começava com ela, em sua escrivaninha, tripa da registradora nas mãos e Anísio em pé ao lado. Num tom interrogativo Mamãe lia alto o primeiro preço da tripa: 4 cruzeiros e 40 centavo? Este primeiro item, Anísio em seu idioma particular e com a lentidão de sempre, conseguia identificar: calne seca. A tragédia iniciava a partir do segundo: 7 cruzeiros e 31 centavos? Silêncio sepulcral.   Nunca entendi porque não ocorria a Anísio dizer simplesmente: não sei ou não me lembro. Neste ponto a voz de minha mãe se elevava ligeiramente, não mais interrogando, mas afirmando com severidade e ligeira irritação: 7 cruzeiros e 31 centavos! E Anísio nada. E ela: a lista, Anísio!  Anísio procurava no bolso da calça a lista que havia levado e entregava. Minha mãe começava a leitura em voz alta e a cada item repetia a mesma pergunta variando apenas quanto ao nome do item: poderia ser cebola?  E Anísio preso a sua mudez apenas balançava a cabeça em negativa. 

Até que chegavam ao item correspondente e Anísio radiante e tão rápido quanto permitia a lentidão atávica, num quase grito: esse tá celto! E passavam para o próximo preço da tripa repetindo o absurdo das falas. Isto durava horas e nem ela, nem Anísio, perdiam a paciência. Nem quando (e era freqüente!) tinham que voltar ao começo se erro na identificação fosse evidenciado pela impossibilidade do último preço corresponder ao último item. Quando isto acontecia minha mãe num tom de escandalizado dizia: como é que um pacotinho de gilete pode custar 15 cruzeiros, Anísio? Este adotava uma expressão muito triste, desolada mesmo e murmurava: não pode. E tudo recomeçava. Só descrevo esta cena para ilustrar a docilidade de Anísio: um pombinho sem fel! Assim poder-se-á usufruir todo o sabor da história que quero contar.

A sala de jantar de minha mãe era mobiliada com móveis monstruosamente grandes oriundos da casa de minha avó. O tamanho era mesmo inacreditável. Em criança eu morria de medo deles porque os pés da mesa eram formados de gárgulas esculpidas na madeira e eu achava que me iam devorar as pernas. Mas eis que Mamãe resolve mudar a arrumação da sala movendo a mesa (de doze lugares), o enorme armário e a monumental cristaleira. Munida de um esquema encarrega Anísio da execução da mudança. Tarefa própria para um Hércules, face ao peso dos móveis, mas não para o frágil e pequeno Anísio que estava longe de sê-lo. Do andar de cima escutávamos o som dos móveis sendo arrastados. Isto durou horas.

Finalmente um Anísio exausto adentra a sala onde estávamos e comunica radiante: está plonto! Plontinho! Majestosa minha mãe desce as escadas seguida por Anísio e por mim. Os móveis estavam em suas novas posições precisamente de acordo com o esquema. Minha mãe percorre a sala com um olhar crítico. Anísio, com um doce sorriso, espera a certa aprovação quando ela declara impiedosa: era isto mesmo, Anísio. Mas ficou horrível. Volta tudo para onde estava. Olho para Anísio procurando avaliar através de sua expressão a devastação que estava sendo causada. Mas mudança de expressão ocorreu em mim e em minha mãe. Horrorizadas, escutamos na doce voz de Anísio: agola chega! Melda, D. Vera. Melda!
2011


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