sábado, novembro 30, 2013

CABELOS,,, PRA QUE VOS QUERO?

O orgulho da pequena cidade do interior do interior de São Paulo era a imagem do Senhor Morto, em tamanho natural, deitado em sua urna de vidro. Linda e ainda por cima (afirmavam) milagrosa! A bem da verdade os milagres não se deviam à imagem, mas sim aos cabelos, fartos e ondulados que emolduravam o rosto do Cristo. Segundo contara o avô do Coronel Raimundo, doador da imagem, haviam pertencido a um santo frade que, em tempos remotos, por ali andara fazendo o bem sem olhar a quem. O frade devia ser bem estranho com tal cabeleira, mas ninguém duvidava da origem, mesmo porque milagres ocorriam em profusão por ali, beneficiando pessoas, animais e plantas.

A imagem só saía da alcova, junto à sacristia, em dias da procissão do Senhor Morto que era seguida até por habitantes das cidades vizinhas, que se faziam presentes só para contemplá-la e pedir bênçãos. Às vésperas da Semana Santa o vigário convocou as três beatas titulares para o piedoso mister de preparar a imagem para a procissão de sexta feira. Cabia-lhes lavar e passar a roupagem e, sobretudo escovar os lindos cabelos, deixando-os brilhantes e bem distribuídos sobre os santos ombros. Como nos anos anteriores esta pia tarefa era executada sob atenta observação do Vigário e no mais absoluto e respeitoso silêncio. Afinal tratava-se da toalete do Senhor.

A beata da vez, ou seja àquela que por sorteio caberia o escovar dos cabelos, delicadamente desprendeu a cabeleira da Santa Cabeça e para espanto dos demais iniciou uma dança selvagem, cabeleira erguida no braço estendido, proferindo gritos pra lá de profanos. Passado o estupor dos espectadores evidenciou-se a desgraça: baratas em profusão caiam ao chão. O padre e as duas outras beatas aderiram à dança sapateando no chão. Só quando terminado o extermínio puderam se dar conta da extensão da desgraça: as ditas baratas haviam se banqueteado com a cabeleira que agora exibia um belo corte punk!

Desolados murmuravam a seu turno expressões adequadas ao cunho santificado do evento: Virgem Santa! Danou-se! Só pode ser coisa do mardito! E entre choros e ranger de dentes começaram a dar tratos a bola de como resolver. A procissão sem a imagem era inimaginável. Tinha que ser reunido o conselho. O conselho era formado do Padre, do Coronel Raimundo e de D. Arminda, dona do único salão de beleza – O Corte da Fada Madrinha - e líder social da cidade. As beatas foram encarregadas da convocação dos membros, não sem antes serem advertidas que, fora estes, a ninguém, mas ninguém mesmo, poderia ser divulgado o ocorrido.

O Conselho reuniu-se na sacristia, a portas fechadas e... a pátria foi salva por D. Arminda que solene declarou: “se me arranjarem cabelos eu faço uma peruca”. Maravilha! Mas e os cabelos? Onde obtê-los? Voltaram a cair em depressão. O padre, como sempre ocorria em momentos de aflição, foi até a nave da igreja acender uma vela, ao pé da imagem de Santa Edvirges. E teve um alumbramento com a visão das três beatas que, cabeças inclinadas, ajoelhadas, rezavam fervorosamente por um milagre! E este se fez! Santa Edvirges dada a gravidade do fato havia agido sem a vela mesmo. Arrebanhando a batina, o Padre retornou correndo à sacristia, aos gritos: os coques! Os coques! A compreensão dos demais foi imediata.

Os coques, há anos cultivados pelas três beatas, forneceriam uma quantidade mais do que razoável de cobertura capilar. Estava resolvida a matéria prima. O problema agora era o convencimento das beatas. Este coube ao Padre que, com argumentos irrefutáveis, transformou a tosa em honraria e em inúmeras indulgências. Nem bem dito, foi feito. D. Arminda, na calada da noite, procedeu a tri-mutilação capilar das beatas em lágrimas, e passou horas e horas trancada no salão (fechado por motivo de doença na família) lavando, pintando e amaciando os cabelos que, segundo ela estavam imundos! Armada a peruca, D. Arminda aplicou-lhe enormes bobs coloridos e respeitosamente e piedosamente ajustou-a à Santa Cabeça. A visão da imagem nesta situação bizarra só foi revelada ao Padre, que horrorizado, não cessava de benzer-se, e à sua criadora maravilhada com sua obra. Um secador portátil ventava sobre a cabeça do Senhor, ao som de uma Ave Maria rezada pelo Vigário, em contrição pelo desconforto a que estava submetendo o Divino.

E eis que chega a manhã do dia da procissão. D. Arminda, munida de pente, escova e laquê trancou-se na alcova e ao sair, revelou aos olhos do Padre e das beatas (que afinal de contas dado o sacrifício a que foram submetidas mereciam as primícias da visão) um dos penteados mais em voga na época - o cabelo gatinho: liso e longo com as pontas voltadas para fora. A procissão ocorreu sem incidentes embora a visitação da imagem, que acontecia depois, tivesse formado filas incalculáveis. A ausência do coque das beatas e a possível inconfidência das próprias, orgulhosas de se haverem tornado parte integrante do Senhor, haviam provocado uma enorme curiosidade.

Mas o mais estranho, o que ninguém nunca soube explicar, é que os milagres continuaram a ocorrer e, pelo que sei, ocorrem até hoje.

2005

sexta-feira, novembro 29, 2013

É LEGAL DEMAIS!


O menino levanta o rosto sorridente e me informa: estou estudando conjuntos. É legal demais! Você sabe conjuntos? Curiosa eu havia me debruçado sobre ele e seu caderno. O “você sabe conjuntos” me faz entrar na máquina do tempo.


Tenho 15 anos e escuto emocionada a história do jovem matemático Èvariste Galois, narrada pelo velho professor Sodré da Gama.  Apaixono-me no ato. Por ele, por Galois. A Teoria dos Conjuntos deixa de ser um “ponto” da matéria. Galois, morto num duelo aos 20 anos, se faz presente em cada uma das notações da equação no quadro negro. E este se transforma nas páginas e páginas da carta que Galois escreveu horas antes da morte certa, legando ao mundo a descoberta da solução das inequações irredutíveis por radicais. Vou às lágrimas ao escutar, na voz de Sodré da Gama, suas últimas palavras ao irmão que chorava ao lado do leito de hospital para onde o levaram ferido de morte: não chore Alfredo, eu preciso de muita coragem para morrer aos 20 anos!
 
Volto da viagem à minha adolescência e o menino ainda sorri olhando para mim. Sorrio também para ele ao afirmar que sei, sei sim, sobre conjuntos. Ele volta para o caderno e eu para Galois. Engraçado! A emoção daquele dia em que o conheci volta agora. Mais forte. O rosto do menino funde-se ao rosto de Galois do qual nunca me esqueci, mostrado num desenho a bico de pena, por Sodré da Gama. A imagem entra comigo no elevador e me acompanha ao entrar em casa. O que quer me dizer? O que significa? O que tem a ver esta criança com Galois?

De repente me dou conta: quer coisa mais emocionante do que ver um menino no século XXI ser ajudado por um quase outro do século XVIII? À margem da carta que escreveu horas antes de morrer e na qual desenvolveu seu genial raciocínio várias vezes a anotação: não tenho mais tempo.  Pena. Pena que ao preocupar-se com o genial desenvolvimento não tenha podido parar para pensar que o que estava legando ao morrer levaria a que mais de duzentos anos depois, milhões de meninos do mundo inteiro teriam seu estudo de matemática simplificado e tornado emocionante. Aquele tempo que julgava faltar ampliou-se numa progressão espantosa depois de sua morte.

Quantos Galois existirão hoje? A preocupação com o futuro das gentes não importa nem mesmo aos que hoje se julgam imortais quanto mais a aqueles que se encontram a beira da morte como Galois. As pessoas andam vivendo como se não tivessem qualquer compromisso com o futuro que virá depois de sua morte. Com honrosas exceções o que se vê é o imediatismo, o “deixa pra lá”. Talvez tenhamos chegado a isto porque calou mais fundo o “aprés moi le déluge” de Luis XV do que o “não tenho mais tempo” de Galois.  Pena. Pena mesmo.

Tomada de uma urgência irresistível precipito-me para o elevador torcendo para que o menino ainda esteja no pátio às voltas com os conjuntos. Respiro aliviada ao ver a cabeça ainda inclinada sobre o caderno.  Ele não se espanta quando eu, aflita, peço: pára um pouco, preciso te contar uma história. Crianças são bem mais intuitivas do que nós e muito mais receptivas ao inesperado. Que bom que seja assim. E atento e interessado o menino escuta a história de vida de outro menino. Às vezes sério, muito sério e por vezes rindo como ocorreu com as opiniões dos professores do primário sobre Galois. Ele comenta: se deram mal, né? O cara era cabeça! Revolta-se com os absurdos cometidos para impedir que Galois ingresse na Escola Politécnica ou apresente seus estudos: que sacanagem! Caraca! Esse tal de Fourier tinha mais é que ser preso.  Animada por perguntas e exclamações chego até a véspera da morte e à  carta. O menino triste se revolta: ele não devia de ter lutado, não. Foi mal! Foi mal! E curioso: tem um filme dele? Devia de ter. To sacando porque conjunto é legal demais. O cara era fera, né?  

Esteja onde estiver agradeço a Galois por mim e por todas as crianças do mundo: você era mesmo fera, cara!
2010

quinta-feira, novembro 28, 2013

DUAS MULHERES

Naquele dia a conversa telefônica com a neta enveredou para o sério quando a menina declarou solene: Vó, tomei uma decisão! Tomar uma decisão aos nove anos é sério mesmo, qualquer que seja esta. Seriedade que a avó devolveu: na vida, tomar decisões é muito importante! Estava orgulhosa de ter uma neta que tomava decisões tão cedo. Mas qual era esta? Não vou namorar, declara a menina. Ai complicou! Cautelosamente a avó procurou fazê-la pensar: namorar pode ser muito agradável! Depende de quem, de quando. O nunca é sempre muito perigoso nas decisões... A menina interrompeu: Eu não falei nunca, vó. Eu não vou namorar é agora. Aliviada a avó concordou: tá certo. É mesmo muito cedo. Tempo virá em que namorar será a coisa mais importante. Mas o que foi que a levou a tomar esta decisão? E vem a deliciosa e indignada resposta: Eles puxam meus cabelos!

E o telefone, naquele mesmo dia, conduz mais seriedade: a mulher chora: to sofrendo. Muito. Contém-se para não dizer o terrível e cruel “eu bem que avisei”. Tudo no passado indicava que o choro e o sofrimento seriam inevitáveis. Mas ela não quis ouvir e dizia encantada: comigo vai ser diferente. Pior é que não era a primeira vez. Todas as escolhas até ali, e já não era criança, haviam sido funestas. Trazendo dor e sofrimento motivados por uma sucessão de competentes e cruéis puxadores de cabelo. Tá legal, não há uma garantia de que vai dar certo. Nunca existe. Mas em alguns casos a garantia de que não vai dar lá está, sólida, consistente. E não se toma a decisão de pular fora. O que faz com que se marche para uma ligação que vai, na certa, fazer sofrer? As histórias são sempre iguais: possuídas pela síndrome de Pigmalião partem entusiasmadas para a operação de transformação do sapo em príncipe. Só que este, encantado com seu estado anuro, passou a vida sapeando e tornando a vida das parceiras anteriores um belo inferno. E o sapo nunca, mas nunca mesmo, vira príncipe. E vem o momento em que se percebem num brejo e não no castelo encantado com que sonharam. E têm sorte quando o sapo decide por expulsá-las de lá. Por que algumas nele permanecem por uma vida. E se partem até têm saudades do brejo e do feio sapo pensando que poderia ter sido diferente se... Este “se” é seguido de uma teoria de culpa delas próprias. Que droga, não é?

No dia seguinte anseia pelo telefonema da neta. Quer ir mais fundo nesta história. Como foi que o puxar dos cabelos passou a ser mais importante do que a exibição do namorado às colegas, ao colégio inteiro? Afinal a tentação é grande. Ah! A primeira paixão. Hoje vem absurdamente cedo! O sentimento avassalador tem o dom de vestir o sapo com ricas roupagens camuflando o puxador de cabelos.

Cautelosa puxa de novo o assunto. E as outras meninas? Namoram? Não se importam com o suplício capilar? Pois é, vó!  Tem umas que não se importam. Esabe? - elas gostam de namorar o Ricardo que é o que mais puxa!  A avó provoca: vai ver elas pensam que ele vai parar de puxar. A menina ri: vai nada! Ele é assim mesmo! Tem algum que não puxa, pergunta a avó? O tom sério da primeira conversa, retorna: tem. O Jurandir. Mas ele já namora a Teca. Ele protege ela. Até mente. Mente?! Mente que ela não fez o dever de casa porque acabou a luz na casa dela. A avó comenta que isto é muito legal. A menina se espanta: mentir é legal, vó? A avó vale-se do absurdo: é que mentir não é legal, mas proteger é. Então mentir e proteger ao mesmo tempo é meio legal. E pensa: o que é que eu estou fazendo, Meu Deus? Mais absurdo ainda o que segue dizendo: conheço uma moça que só namora quem puxa cabelos.  Deixa de brincadeira, vó! Quando já tem 14 anos eles não puxam mais cabelo. Fazem o quê, pergunta a avó. Sei lá. Eu não tenho 14 anos. A lógica é irrefutável.

Mas pelo que soube até agora a avó tem quase certeza de que ao lá chegar ela neta consiga identificar com a mesma determinação e auto-estima o desvio equivalente aos puxões vigente nesta faixa etária e nas seguintes, escolhendo o mentiroso protetor tipo Jurandir. São duas mulheres. Certamente ambas achariam absurdo estabelecerem uma relação tal as diferenças. Mas o problema é o mesmo.
2008



quarta-feira, novembro 27, 2013

ENTROPIA DOMÉSTICA

Sempre achei ser inadequado chamar de Lei os conceitos físicos. Leis, embora devam ser cumpridas, podem ser descumpridas se assim o desejarmos. Aliás, é que mais se vê ultimamente. O mesmo não acontece com as Leis da Física. Queira-se ou não elas se cumprem lá no tempo delas sem nos dar a menor chance de desconsiderá-las. E o pior é que mais das vezes nos causam algum prejuízo ou no mínimo um tremendo desconforto.         

Ultimamente ando tendo problemas com uma grandeza das Leis da Termodinâmica: a Entropia. Estas (as Leis que regem a Entropia) já foram responsáveis por acontecimentos muito desagradáveis. Um de seus formuladores Ludwig Boltzmann, físico austríaco, suicidou-se desgostoso com a pouca aceitação de sua formulação pela comunidade científica da época. Dizem até que na lápide de seu túmulo está inscrita a equação objeto desta não aceitação:
S = k ×  ln W

Tenho para mim que o motivo não foi este. E sim a percepção que para sempre seria vítima desta praga que é a Entropia. O enunciado e os conceitos, como soem ser todos os da física, são pomposos e complicados. Em bom português, na prática, o que acontece é o seguinte: todas as coisas nas quais você não aplica um enorme trabalho e gasta um burro de um dinheiro para manter acabam indo para o espaço ou dando uma enorme dor de cabeça. Vai daí que uma casa, cheia de “coisas” diariamente dá sinais de entropia por mais cuidadoso que você seja. O reparo da válvula do banheiro que quebra, os ganchinhos da cortina que espantosamente somem, a torneira que pinga, a instalação do lustre da sala que para de funcionar minutos antes que convidados cheguem para o jantar, a palhinha da cadeira que inexplicavelmente aparece com um buraco, e que mais sei eu.

Tudo isto exige a presença de um profissional que nunca pode vir na hora que convém a você e que depois de avaliar o ocorrido informa que “não existem mais as peças de reposição” e que “vai ter que mudar tudo”. Depois que você desembolsa uma considerável quantia ele resolve o problema deixando sua casa imunda e no mínimo uma torneira (ou maçaneta, ou tampa de ralo ou interruptor) completamente diferente das outras instaladas. Você pode, é claro, fingir que não vê que alguma coisa não está mais funcionando, dependendo da coisa, adiando assim o momento em que providências mil terão que ser tomada. 

Mas isto, na maioria das vezes não dá certo, como ocorreu recentemente quando uma das lajotas do vestíbulo de entrada gerou, espontânea e inexplicavelmente, uma mancha branca que desafiava qualquer limpador (foram comprados cinco diferentes). A partir deste momento qualquer pessoa que entrava na sala (filhos, faxineira, visitas, entregadores) me informava como se eu fosse cega: tem uma mancha ali. Diante da impossibilidade de continuar ignorando o fato iniciei um processo mental para descobrir o tipo de profissional que deveria ser acionado. Pedreiro? Pintor? Envernizador?

Ataquei por lados e terminei com o cunhado do porteiro, não especializada em qualquer arte, único que conseguiu equacionar o problema... criando vários outros: não existe mais lajota deste tamanho. É preciso retocar e teremos sorte se conseguirmos uma tinta de cerâmica que tenha a cor perfeita. É evidente que não conseguimos. Então produzimos diversas misturas, fazendo experiências em pequenas áreas. Depois de ser obtida uma lajota com varias nuances da mesma cor e de ter sido respingada a parede creme com tinta vermelha, chegamos ao que parecia ser a cor ideal. Descoloriu-se a lajota (mas não a parede) que pintada parecia estar idêntica às outras. Depois de marcada com impressões das patas do gato (ficou até bonitinho, disse o cunhado do porteiro) a calçada da fama doméstica secou... adquirindo uma cor completamente diferente das outras.

Agora não era mais uma mancha e sim a lajota inteira que saltava aos olhos. Solução do cunhado: pintar todas, incluindo as da sala de visitas, sala de jantar, corredor e quartos. A senhora e o gato vão ter que passar uns dias fora, me informa o cunhado. Vai demorar porque tem que arrastar todos os móveis de um lugar para outro e esperar secar para fazer o resto. Heróica, decidi: vai ficar assim mesmo! Não me deixei demover pela expressão de censura no olhar do cunhado que retrucou: mas a parede vai ter que ser pintada. Vai ficar uma mancha quando formos tirar a tinta que respingou. E não vamos conseguir uma tinta deste exato tom. Foi mistura, não foi? Melhor pintar tudo. Reprimi meu instinto assassino e declarei ameaçadora que ele teria que fazer um remendo que vai ficar igual, ouviu?!

Minha fúria surtiu efeito e foi feito o reparo tornando a parede (quase) igual às demais. Com um suspiro de alívio acompanhei a partida do cunhando, esperando que fosse para todo sempre. Finalmente depois de quatro dias a paz doméstica se restabelecia. Uma chave gira na fechadura. Só pode ser um dos filhos. Era. O filho. E veio a frase que será repetida ad eternum por todos que entrarem: esta lajota é completamente diferente as outras. E seguindo-se a esta: o que é isto? São as patas do Pandareco? Que idéia maluca, mamãe. Tá bem que você goste dele, mas imprimir as patas na lajota você não acha um tanto absurdo? Que mancha é esta na parede?

2008

terça-feira, novembro 26, 2013

AGORA CHEGA!

Quem não atingiu uma vez na vida um ponto limite em que, furioso, gritou esta frase? Sempre que me ocorre alguma situação análoga me vem à memória um incidente do qual fui testemunha faz tempo: uma revolta mais que justificada e expressada de maneira extraordinariamente adequada.

Sei lá eu por que minha mãe não contratava copeira. Os serviços a esta atribuídos, em nossa casa, sempre foram desempenhados pelo sexo masculino. Entre os muitos que por lá passaram destacava-se Anísio, rapaz franzino com alma de cordeiro. Anísio era tatibitate e trocava “R” por “L”. Além disto, quando falava a língua travava nos dentes desfigurando o som do “S” tornando-o apenas um leve sopro. Anísio era de uma lentidão espantosa levando ao desespero os que o observavam trabalhar. Minha mãe, ao contrário, era elétrica e jamais consegui entender como era possível a perfeita harmonia que existia entre os dois. Os episódios em que contracenavam eram inacreditáveis.

Eu, já casada e morando no nordeste, todas as vezes que vinha ao Rio, os assistia fascinada como quem assiste a um espetáculo teatral. Alguns desses espetáculos ficavam sempre em cartaz e, de tão aflitivos, só deviam ser presenciados uma única vez. Podiam levar o espectador á loucura ou ao suicídio. A criação de um deles deveu-se ao surgimento dos supermercados. Até então as compras eram feitas em armazéns e quitandas, anotadas numa caderneta pelo dono do estabelecimento e pagas ao final de cada mês. O supermercado, símbolo da modernidade, apresentava um atraso em relação ao velho armazém: a nota. Esta foi substituída por uma tripa de máquina registradora, que podia ser enorme dependendo da quantidade de itens adquiridos. Naquela época a tripa exibia apenas preços sem discriminação do produto. Por sua vez a mercadoria também não exibia os ditos preços. Resultado: conferência impossível para qualquer mortal que não fosse a dupla Anísio/Mamãe.

Para conseguir esta proeza Anísio era submetido a uma tortura que nem os mais requintados chineses teriam imaginado. A cena começava com ela, em sua escrivaninha, tripa da registradora nas mãos e Anísio em pé ao lado. Num tom interrogativo Mamãe lia alto o primeiro preço da tripa: 4 cruzeiros e 40 centavo? Este primeiro item, Anísio em seu idioma particular e com a lentidão de sempre, conseguia identificar: calne seca. A tragédia iniciava a partir do segundo: 7 cruzeiros e 31 centavos? Silêncio sepulcral.   Nunca entendi porque não ocorria a Anísio dizer simplesmente: não sei ou não me lembro. Neste ponto a voz de minha mãe se elevava ligeiramente, não mais interrogando, mas afirmando com severidade e ligeira irritação: 7 cruzeiros e 31 centavos! E Anísio nada. E ela: a lista, Anísio!  Anísio procurava no bolso da calça a lista que havia levado e entregava. Minha mãe começava a leitura em voz alta e a cada item repetia a mesma pergunta variando apenas quanto ao nome do item: poderia ser cebola?  E Anísio preso a sua mudez apenas balançava a cabeça em negativa. 

Até que chegavam ao item correspondente e Anísio radiante e tão rápido quanto permitia a lentidão atávica, num quase grito: esse tá celto! E passavam para o próximo preço da tripa repetindo o absurdo das falas. Isto durava horas e nem ela, nem Anísio, perdiam a paciência. Nem quando (e era freqüente!) tinham que voltar ao começo se erro na identificação fosse evidenciado pela impossibilidade do último preço corresponder ao último item. Quando isto acontecia minha mãe num tom de escandalizado dizia: como é que um pacotinho de gilete pode custar 15 cruzeiros, Anísio? Este adotava uma expressão muito triste, desolada mesmo e murmurava: não pode. E tudo recomeçava. Só descrevo esta cena para ilustrar a docilidade de Anísio: um pombinho sem fel! Assim poder-se-á usufruir todo o sabor da história que quero contar.

A sala de jantar de minha mãe era mobiliada com móveis monstruosamente grandes oriundos da casa de minha avó. O tamanho era mesmo inacreditável. Em criança eu morria de medo deles porque os pés da mesa eram formados de gárgulas esculpidas na madeira e eu achava que me iam devorar as pernas. Mas eis que Mamãe resolve mudar a arrumação da sala movendo a mesa (de doze lugares), o enorme armário e a monumental cristaleira. Munida de um esquema encarrega Anísio da execução da mudança. Tarefa própria para um Hércules, face ao peso dos móveis, mas não para o frágil e pequeno Anísio que estava longe de sê-lo. Do andar de cima escutávamos o som dos móveis sendo arrastados. Isto durou horas.

Finalmente um Anísio exausto adentra a sala onde estávamos e comunica radiante: está plonto! Plontinho! Majestosa minha mãe desce as escadas seguida por Anísio e por mim. Os móveis estavam em suas novas posições precisamente de acordo com o esquema. Minha mãe percorre a sala com um olhar crítico. Anísio, com um doce sorriso, espera a certa aprovação quando ela declara impiedosa: era isto mesmo, Anísio. Mas ficou horrível. Volta tudo para onde estava. Olho para Anísio procurando avaliar através de sua expressão a devastação que estava sendo causada. Mas mudança de expressão ocorreu em mim e em minha mãe. Horrorizadas, escutamos na doce voz de Anísio: agola chega! Melda, D. Vera. Melda!
2011


segunda-feira, novembro 25, 2013

PÂNICO NA MANHÃ

Ela acorda em pânico: vou morrer! Não que esteja sentindo alguma coisa. Nada de anormal está ocorrendo. O problema é que bateu-lhe a consciência de que vai morrer, com certeza! Olha em torno do quarto que depois da reforma ficou exatamente como queria. Não pode! Logo agora! Este “agora”, não quer dizer exatamente agora. É até difícil de explicar. Espanta-se! Sempre soube, isto é, soube a maior parte de sua vida, que iria morrer, mas nunca, nunca mesmo se deu conta de que isto iria acontecer de fato. É... não está fazendo muito sentido este último pensamento. Mas a formulação é esta mesmo.

O primeiro contacto que teve com a morte foi o final, tão triste de seu primeiro cavalo. É uma de suas mais remotas lembranças. Tinha cerca de 6 anos. Chamava-se Coringa e era branco. Albino de focinho cor-de-rosa. A crina era branca também. Lindo! Lindo! Exceto, é claro, o focinho. Hoje, mais de setenta anos depois, é apenas uma foto desbotada em que ela também aparece metida nas botas dadas pelo pai à revelia da mãe: que absurdo! Nesta idade vai perder estas botas logo!  Odiou a mãe e amou mais o pai. Uma cobra. Foi uma cobra, a assassina de Coringa. Custou a compreender. Estas coisas acontecem - disse-lhe o pai - não chora. A gente compra outro. E ela perguntou: eu vou morrer também? Você vai comprar outra? O pai riu e nem percebeu que ela estava sofrendo muito.

E agora, naquela manhã, ela se dá conta que mesmo sem cobra a vista, vai morrer. Possuída por um sentimento de raiva abre a janela do escritório e dá com o mico a quem dirige a frase, com um insulto: você vai morrer, mico, viu?!! Não sabe o efeito que causou porque fecha de novo a janela significando que não haverá hoje a entrega da banana diária. Escova os dentes pensando: pra que escovar? Vou morrer mesmo. Não tem o menor sentido.  Dirige-se a cozinha e entra em luta com o coador de papel que nunca se adapta à cafeteira elétrica. Pela primeira vez não lança imprecações contra o fabricante: que importância tem isto diante de sua morte?

Ao primeiro gole de café, a terrível revelação! Não vou mais poder engolir! Incrível isto. Outro gole e mais outro procurando em vão adiar o derradeiro. Um delírio de últimas ações começa a desfilar em sua cabeça.  Qualquer coisa que faça pode ser a última! Que droga! Não vai poder fazer mais nada sem que esta certeza interfira! Ávida toma outra xícara de café. E outra e mais outra. Só vê duas alternativas diante da tragédia: ou se imobiliza ou sai pela casa praticando o maior número de “últimas ações” que puder.

Como não é de ficar parada opta pela segunda, frenética. Exagera em cada uma delas. Afoga as plantas numa quantidade espantosa de água. Sabe-se lá se amanhã vou poder fazer isto. Assim fica uma reserva. As crianças não vão lembrar de regar amanhã quando eu já estiver morta e aí elas – as plantas - vão morrer também. A água que inundou a samambaia jorra sobre o porta-retratos do pai, já um tanto mofado pelos pingos que sempre lhe caem em cima. Pela primeira vez no dia sorri, lembrando-se da observação do filho: Mãe, você precisa parar de regar a foto de vovô!

As crianças... Meu Deus! O mais moço, o temporão, já tem mais de quarenta! Será que eles vão sofrer? Preciso avisar que vou morrer ou deixo que aconteça assim, de surpresa? De surpresa, não! Não se faz isto! Telefono e acordo eles agora? Eles acordam muito tarde. Melhor falar primeiro com o genro e a nora para que preparem a filha e o filho?  É... talvez seja melhor. Ou melhor ainda, peço isto à amiga. Ela é médica e vai saber dizer com jeito. Além disto ela vive dizendo que é filha dela também. Merece o ônus. A outra amiga também poderia, mas está longe e pelo telefone não se falam estas coisas.

A campainha do telefone soa! Horror! E se for a filha que teve uma premonição e acordou desesperada? Apavorada atende. Escuta aliviada e responde: Pode, sim. Pode vir colocar as cortinas hoje. Não vou sair. Desliga e repreende-se. Que falsidade!. Quando o homem chegar com as cortinas vai ver já está morta! Mas ele deve ter experiência destas situações já que vive colocando cortina por aí. Pela probabilidade já deve ter acontecido. Quem sabe é ele que vai dar o alarme? É... melhor assim. Um estranho não vai estar emocionalmente envolvido, fora o susto. Seria cruel se fossem as crianças. Pensa, fugindo do assunto: por que é que os filhos são “as crianças” e as netas são “as meninas”? Coisa mais maluca! Tirando a mais moça (das netas) ninguém é mais criança, nem menina.

Comovida examina as fotos das netas que povoam a sala. São lindas! As três. Perfeitas. Bem que podia ter bisnetos. Ia ser a glória. De novo o som do telefone. Atende e voz alegre da neta pequena informa: Vó? Eu já tô sabendo ler! Instala-se confortavelmente para o que se anuncia como uma longa conversa. A neta está maravilhada com uma peça de teatro que viu. E ela, adiando a morte iminente para no mínimo mais 12 anos - a neta tem seis - declara: quando você ficar grande nós vamos juntas ver peças que você vai adorar! E, ilustrando, delicia-se contando a história de Romeu e Julieta numa versão infantil.

2005

domingo, novembro 24, 2013

VERDADE

Aqueles que viveram os anos de chumbo certamente se lembrarão do filósofo e jornalista André Gorz. Seus livros eram proibidos por aqui e tê-los em casa constituía um grave delito, passível de prisão. Naquela época, este teórico da Revolução ainda não havia se voltado para ecologia, como fez anos mais tarde. Apenas dois livros haviam sido lançados no Brasil antes do fatídico ano de 1968: “Estratégia operária e neocapitalismo” e “O socialismo difícil”. A partir daí pararam as edições, voltando a ser publicado somente em 1982.

Sempre imagino como será o autor quando leio um livro. Não o aspecto físico dele. Mas ele mesmo, lá por dentro. André Gorz se revelara para mim enfarruscado e seco. Qual minha surpresa quando pelas mãos de minha filha, me chega um pequeno livro, o último que escreveu, intitulado “Carta a D. História de um amor”. Não deve ser o mesmo Gorz, pensei. Um romance! Ele? Minha filha esclarece: é ele mesmo, numa carta dirigida a sua mulher Dorine, em 2006, já bem velho. E me alerta: dá uma lida no primeiro parágrafo!

E foi aí que me vi às voltas com um redemoinho de sensações entre as quais, vergonhosamente, percebi em mim a inveja! Muita inveja. Não resisto à tentação de provocá-la também nos homens e mulheres que me leem e vou transcrevê-lo: “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher”.

Devorei o livro em pouco mais de duas horas e ele perdura há dias dentro de mim provocando sensações por vezes dolorosas. Gorz levou cinqüenta e oito anos para dizer à Dorine a mais importante das verdades: o que ela significou em sua vida. E não foi do significar sentimento que ele falou. Foi do significar da pessoa dela em tudo que fez, em tudo que se tornou, em tudo que viveu. Em cada momento importante e em outros sem qualquer importância ela tornou sua vida plena, apenas sendo. Presença constante, calor de corpo, silêncio risonho, aceitação e até  discordância. Ele não teria sido ele sem ela. Que bom que ele pôde dizer, que bom que ela pôde ouvir.

Mas raramente é assim. Falamos a verdade, mas não A VERDADE. Não percebemos que é preciso falar, falar e falar exaustivamente do que realmente existe entre dois próximos para que se possa entender o seu significado. Não é o “discutir a relação”; Imagina! Longe disto. É tão maior: é o ver de cada um para o outro, tornando-se si mesmo só porque existe o outro. Confusa a frase; tão simples e claro seu significado. Perdi meu pai e meu filho no espaço de um ano. Convívio de quarenta e quatro anos com o pai e de vinte e um anos com o filho. E nunca disse a eles o quanto sou e quem sou por causa deles. Por todos os momentos em que existentes me fizeram ser. Falei, sim, e muito, a mim mesma, mas eles já haviam partido. Não disse a eles.

Quando Rogério se foi fiquei com seus livros. Ele lia muito e tinha o hábito de marcar com um lápis passagens que chamavam sua atenção, fazendo pequenos comentários. Devorei estas marcas. Era ele me falando, se mostrando. Algumas me surpreenderam. Não devia, não é? Afinal era meu filho e eu o conhecia. Será? Não sei. Conversávamos muito sobre tudo, menos sobre nós. Por que não nos dissemos esta verdade?

Privilegiados Gorz e Dorine. Daí a inveja do que não fiz e não poderei mais fazer. Nenhum dos outros livros de Gorz, tão completos, tão esclarecedores, ao contrário do que eu pensava, conseguiu me mostrar o que neste mundo mais se carece. Este tão pequeno, tão singelo, me mostrou: a paz serena e interna pela verdade do que somos pelos outros que fazem a diferença. Se todos a tivessem dentro de si, transbordaria, não é? Como transbordou para Gorz. E que extraordinário efeito este transbordar poderia causar neste mundo tão maluco e violento!

O subtítulo “uma história de amor” quem sabe assusta pelo que pode conter de piegas e “déjà vu”. No entanto a verdade de Gorz é inédita. Não há frase, palavra ou significado que não transpire esta verdade de que estou falando e que para mim é nova e revela um caminho que nunca trilhei. Caminho que espero conhecer daqui por diante na companhia de meus filhos e de meus amigos. Vão eles, creio, se surpreender, no início desta caminhada, mas quem sabe, com o tempo, percebam que a paisagem vale a pena. E então, quem sabe, a gente vai ser capaz de se dizer o que importa, antes que este Deus esquisito e misterioso que é o Tempo nos impeça.

Se esta crônica tiver o poder de fazê-los ler o livro não leiam o posfácio antes de terminar a leitura. Nele se desvenda o final desta história de grande e especial amor. Está faltando uma bem aventurança entre as conhecidas: Bem aventurados os que juntos se falam a verdade um ao outro porque eles serão especiais aos olhos dos homens.


2010

sábado, novembro 23, 2013

PODE MANDAR SUBIR!

São muitas as coisas que não se aplicam à terceira idade. Todos os dias me dou conta de mais uma. Hoje foram os horóscopos. Aquelas pequenas frases de alerta ou de esperança determinadas por astros se lixam da terceira idade. Raramente os leio. Só ocorre quando tendo tempo para ler todo o jornal, me sobram os horóscopos. E então percebo que para que nós – os velhos – sejamos incluídos nos prognósticos é necessário um complicado exercício de interpretação de texto.

Quase sempre vaticinam o surgimento de novos amores ou ressurgimento de velhos ou então de novas oportunidades de trabalho. Os novos amores e as oportunidades de trabalho, embora não impossíveis, são improváveis. O ressurgimento de velhos amores traria, com certeza, funestas conseqüências porque os sei casados e bem casados. E um drama passional em minha idade não seria nada edificante. Nem na idade deles, é claro.

Vai daí que procuro sempre fazer uma releitura de tais vaticínios. “O fique atento. Um velho amor poderá ressurgir” pode ser traduzido para: fique atento. A antiga agência do Banco do Brasil perto de casa poderá ser reaberta. Ou então uma nova oferta de emprego poderá surgir ao longo do dia deve significar uma nova oferta de aspirina prevent (embalagem de 130 comprimidos) pode surgir hoje nas farmácias. Esta ausência de prognósticos para os velhos me intriga. O que têm os astros contra eles? Afinal o futuro talvez não seja muito extenso, mas qualquer que seja seu tamanho algum futuro existe. 

Toda esta reflexão vem da hermética e extraordinária exortação hoje endereçada aos Áries, ascendente Câncer: “É, talvez você tenha razão em insistir: escondidinho, longe de olhares curiosos, pode ser bem melhor, principalmente se a pessoa em questão se sentir mais à vontade. Vencida a primeira etapa, passe rapidamente ao item 2: inspiração & imaginação. Ponha seus talentos a funcionar e faça este dia entrar para a história”. Deus meu! Será que ando, sem me dar conta, insistindo em fazer coisas escondidinhas?

Longe dos olhares curiosos sempre procuro me manter, é verdade. Mas não porque faça seja lá o que for que exija a postura escondidinha. É meu jeito mesmo. Mas há indícios de que este vaticínio seja mesmo dirigido a mim: o diminutivo é sempre usado quando falam aos de minha idade. O verbo insistir denuncia que ando me escondendo muito ultimamente e para complicar existe a “pessoa em questão”. Quem será? É claro que existem em minha vida várias “pessoas em questão” dependendo do que acontece no dia-a-dia. Mas o sentido da mensagem é meio maroto, não é? Não creio que se refira a qualquer de meus filhos ou netas e, muito menos ao Zé porteiro a quem estou esperando para que troque a lâmpada da sala de jantar. Matutando, reconsidero: vai ver é o Zé mesmo. Todas as vezes que a ele recorro é um tanto em segredo para não provocar indignados protestos dos outros condôminos a quem ele se recusa a socorrer. E quase posso afirmar que o Zé se sente muito à vontade com isto.

Mas feita em segredo a troca da lâmpada, final da primeira etapa, que raio de inspiração devo ter e qual o exercício de imaginação devo fazer na segunda etapa para garantir que o dia entrará para história? E o pior é que tenho que fazê-lo antes que este dia termine. Gente! E se “entrar na história” significar passar desta para melhor?! Já sei! Vou cair fulminada na sala de jantar sob o olhar apavorado do Zé. Isto entraria para história! Pelo menos para história do condomínio. Mas morrer não me parece um ato que exija imaginação e inspiração e eu jamais usaria meus talentos (se é que os tenho!) para tal. Além disto não estou com a menor vontade de fazer isto. Mas vai ver, é isto mesmo. O destino é assim. Insiste em não consultar meus quereres.

Em pânico escuto o soar da campainha. É o Zé! As engrenagens do tempo são inexoráveis. E o jeito é deixar que o destino tome seu curso. Olho com raiva a lâmpada que deverá substituir a queimada. Não chegarei a vê-la brilhar. Um pensamento vem como um raio: e se eu não trocar a lâmpada interrompendo a seqüência dos fatos e mandando o destino para o espaço? Para quê lâmpada?! Posso comer à luz de velas! 

A campainha soa insistente. Pera aí, Zé! É um caso de vida ou morte. Minha nossa!  Numa revelação vem uma possibilidade! Não é nada disto que eu estou pensando! É um velho amor que vai aparecer de repente (velho mesmo) Vai ver, sem me dar conta, ando pensando nisto escondidinho. E escondidinho ele virá para um jantar à luz de velas. E vai se sentir muito à vontade porque eu não verei as rugas dele e nem ele as minhas! Depois acontecerá o que minha imaginação, minha inspiração e o meu talento terão que trabalhar furiosamente para acontecer, seja lá isto o que for! Abro a porta e enfrento o espanto do Zé, declarando firme:

-      Não precisa mais. Vai ficar sem lâmpada mesmo. E, Zé, se alguém aparecer me procurando não precisa tocar o interfone. Pode mandar subir!

2006 

sexta-feira, novembro 22, 2013

INEXISTÊNCIA

Desde que a conheci a percebi preocupada. Na verdade o mais correto seria dizer “pré-ocupada”. Porque estava sempre ocupada com alguma coisa que “ia” acontecer no futuro. Mais das vezes vaticinava desgraças. Que eu saiba acertava pouco. Mas esta incapacidade de prever com acerto nem era percebida porque tão logo evidenciado o engano de suas previsões o pensamento já estava voltado para outro “vai” acontecer. 

Vai daí que era uma pessoa triste, muito triste. A testa franzida e os olhos apertados e inquietos envelheciam seu rosto que seria bonito se ela permitisse. Queixava-se de que nada de bom acontecia em sua vida. Também pudera! Somente o futuro “existia” para ela. E no futuro, cá pra nós, nada existe. Era capaz de desejos e sonhos, é certo. Mas estes eram definitivamente impossíveis. Nenhuma movimentação ou providência no dia-a-dia poderia torná-los realizados. O mais engraçado é que estes sonhos e desejos sempre eram voltados para alguma coisa que era real na vida de alguém que conhecia ou que de quem tinha ouvido falar. E era assim que desejava um marido “igualzinho” ao de uma amiga; o filho da outra; o corpo sarado da sobrinha; e os olhos azuis da manicure, o sucesso da atriz que via em novela, a fortuna do milionário noticiada pelos jornais e que mais sei eu.

Sobre os olhos azuis me confidenciou um dia: estas pesquisas de célula-tronco, com certeza, vão possibilitar a troca da cor dos olhos e eu vou poder ter meus olhos azuis! E terminou triste: mas eu não vou estar mais viva quando isto for possível! Em vão todos tentavam trazê-la para o hoje. Mas o pé no acelerador levava célere para não existente. Preocupados os amigos reuniram-se para tentar resgatá-la de lá. E decidiram formar uma força tarefa para obrigá-la a enfrentar uma terapia. Foi difícil porque a futurologia de que era capaz demonstrou, comprovou mesmo, que o analista seria péssimo e iria piorar sua vida, além de querer cobrar os olhos da cara o que a levaria à miséria impedindo a realização de qualquer outro gasto. Via-se impossibilitada de pagar o aluguel, mendigando o favor dos amigos quem sabe até um prato de comida. Ela vivia de uma pensão que havia herdado do pai - um almirante. Mas certamente um dia esta pensão iria desaparecer por alguma mudança na legislação.

Nunca trabalhara. Nem tinha uma profissão. Até que tentou um vestibular, quando jovem. Mas a pré-ocupação com a certeza de não ser aprovada não lhe permitia estudar e foi reprovada mesmo. Quem sabe vencida pelo cansaço que lhe causavam as investidas dos amigos concordou em marcar uma consulta no terapeuta indicado. E lá foi ela vaticinando o pior resultado possível. E, para espanto de todos, sumiu. Quer dizer, não inteiramente porque enviou um e-mail circular para todos dizendo que precisava ficar sozinha “para pensar no futuro” e que telefonaria assim que terminasse este retiro. Fazer o que?

Os amigos, desanimados com esta declaração em que o futuro ainda era o principal personagem, decidiram: vai ver nem foi ao analista. Tem jeito, não. Dois meses depois outro e-mail intrigante: preciso falar com todos. E convocava para uma reunião em sua casa. Dia e hora marcada lá estavam todos. Espantados a encontraram possuída de grande entusiasmo. Quase gritando ela declara: descobri o que há de errado comigo. Este analista que vocês me indicaram é maravilhoso. Encantados os amigos pedem que ela conte o que ocorreu. Vitoriosa ela informa: o problema não é futuro! È o passado! Meus pais foram os responsáveis por tudo. E não só eles! Vocês não imaginam o que foi o meu passado. Agora está tudo claríssimo.

Consternados os amigos assistem ela tirar o pé do acelerador do futuro e voltando os olhos para o retrovisor do passado. Havia chegado à conclusão que as desgraças que vaticinava para frente tinham de fato origem no acontecido para trás. E ela descrevia esta origem com minúcias, sofrendo muito, revivendo o que não podia ser revivido. Ao invés de se pré-ocupar passou a se pós-ocupar.  As histórias ficaram mais confusas porque havia um trânsito do passado para o futuro sem que houvesse um presente. O “aconteceu um dia”, se não houvesse acontecido possibilitaria um futuro maravilhoso. Mas como havia acontecido o futuro era negro.

Conclusão: nada a fazer. O mais engraçado é que ela mostrava um enorme entusiasmo com a “revelação” das causas de sua infelicidade feita por seu analista. Declarando-se “curada” o dispensou. Continuava infeliz, mas, segundo ela, aliviada com a explicação de que o desejo (que ainda existia) de ter um marido igualzinho ao da amiga em algum tempo futuro, era impossível porque no passado seus pais, irmãos, colegas e quem mais sei eu, haviam causado um trauma irreparável. E acomodando-se entre o acelerador e o retrovisor consolidou a inexistência do hoje para todo sempre.

2010

quinta-feira, novembro 21, 2013

QUASE CENTENÁRIA!

Jorge Pontual me enviou um extraordinário arquivo: artigos e reportagens da revista O Cruzeiro, digitalizados e me fez dar uma cambalhota no tempo. Volto para 1946. Tinha eu dezesseis anos e me deliciava com Rachel de Queirós, dona da última página, e com as crônicas de Jean Manzon. E eis que recupero no arquivo uma destas crônicas em que surge a espantosa declaração do editor que a apresenta. Nela, num delicioso relato, Manzon descreve uma visita à Mistinguette, misto de vedete, cantora e bailarina, francesa de belas pernas. Mas, como já disse foi a apresentação do texto que me perturbou.

Eis a transcrição, palavra por palavra: “... agora ei-lo, de câmera em punho, descobrindo outras intimidades da vida da impressionante e quase centenária Mistinguette”. Nada de extraordinário não fosse o centenário aplicado a uma pessoa que na época tinha setenta e seis anos! Exatamente a idade que terei daqui a pouco. Quase centenária? Eu?!!! Como é que hoje acordo com a mesma idade de Mistinguette? Outro dia mesmo ela era uma velha coroca que eu imitava cantando as músicas de Maurice Chevalier. Por que eu as cantava. Hoje, vendo daqui, acho que devia ser um tanto fora do esquadro daquele tempo eu cantar que “Valentine avait des touts petits petons’. Mas a avó, os pais e os tios não eram lá muito enquadrados e desde que a pronúncia fosse perfeita sorriam complacentes.

Sou interrompida em minhas divagações pelo telefonema de um amigo. Antes mesmo de dizer bom dia, informo: estou quase centenária! Tá maluca, ele exclama do outro lado! Não! Estou velha. Centenária. Tá no O Cruzeiro. Foi o Manzon quem falou. Levo algum tempo para esclarecer que não estou bebendo às nove horas da manhã e nem acordei completamente gagá. O amigo tenta me acalmar: naquela época ter setenta e seis anos era ser muito velha. E hoje não é, criatura? Ele começa a gaguejar e sai pela tangente: as coisas mudaram... Desligo irritada comigo mesma. Como é que ele quase vinte anos mais moço vai entender o que está acontecendo? Idade nunca foi um problema, penso. Por que isto agora?

Dou-me conta de que para mim idade até hoje excluía o centenário. Os oitenta e o noventa são palatáveis, digestíveis, aceitáveis. Por que não os cem? Faço alguns cálculos. Se eu chegar aos cem vou ter filhos de quase oitenta e ninguém tem filhos de quase oitenta e muito menos netas de quase sessenta.  Elas, as netas, teriam apenas dezesseis anos menos do que tenho agora! Revolucionando a aritmética e a lógica, sou possuída de uma certeza absurda: posso ter netas dezesseis anos mais moças do que eu. Algum resquício de bom senso ainda resta e eu começo a duvidar desta certeza. Há algo de errado com este raciocínio. Refaço as contas cuidadosamente e percebo o desvio. Respiro aliviada.

Mas o “quase centenária” ainda aflige.  Não há como duvidar: está escrito. E as coisas escritas e publicadas têm uma enorme força. Vou para o número seguinte da revista. Cartas dos Leitores. É isso! Com certeza reclamaram da afirmação do repórter fotográfico. É óbvio que havia leitores de setenta e seis anos à época. Só que a seção Cartas dos Leitores não foi digitalizada. Uma lacuna imperdoável. Não há como tirar esta dúvida. As pessoas que tinham setenta e seis anos em 1946 com certeza não devem ter ficado por aqui só para esperar meu telefonema de consulta aos cento e trinta e seis anos!  E mesmo que exista alguém tão longevo deve ser em algum lugar como a Tanzânia da qual nem sei o DDI. Sempre desconfio que na Tanzânia ocorrem coisas extraordinárias. Além disto, estas pessoas certamente não leriam O Cruzeiro.

Me recrimino: por que é que eu dei um fim na coleção? Nem me lembro quando foi que as pilhas empoeiradas liberaram espaço no meu quarto. Faz tempo, muito tempo. Quase cem anos! Que imbecilidade, censuro! De novo o telefone: é uma das netas. Tomo coragem e pergunto: você me acha centenária? A surpresa se manifesta: por que isto agora, vó Anna? Penso rápido: ela não negou. Fez outra pergunta. Está disfarçando. Mas não desisto e explico: está publicado no O Cruzeiro. Ela não tem a menor idéia do que é O Cruzeiro. Uma crônica do Jean Manzon, explico. Ele entrevistou a Mistinguette.  Ela agora está em pânico: olha só vó, eu tenho que sair agora. Mamãe quer falar com você.

Uma longa pausa evidencia que ela relata à mãe o teor da conversa. Mamãe vem ao telefone: que gente é esta de quem você está falando? Melhor não explicar. Vou acabar tendo que dizer que ela é filha de uma centenária. Isto seria cruel. Me perco na informação de uma receita de rocambole de espinafre. Melhor assim. Ela não insiste. A conversa com a neta vai ficar na crônica familiar como uma de minhas muitas esquisitices. Mas a divulgação desta é muito mais rápida do que imaginei.

De novo o telefone: é o filho. Tudo bem, mãe? A voz tem um tom preocupado e cauteloso. Afirmo que estou bem. Ele insiste: falou com Dora hoje? Volto ao rocambole. Ele faz um Ah... e desiste  informando que minha nora precisa falar comigo. De novo a pausa para repasse das informações. Ela vem ao telefone: tudo bem com você? Falou com Dora, hoje? Vou ter que falar de novo sobre o rocambole. E é o que faço acrescentando a receita da picanha ao forno. Por que uma coisa é certa: nem sob tortura confessarei que estou quase centenária. Vou começar a enganar idade!

2006

quarta-feira, novembro 20, 2013

PROMESSAS

Como se não bastasse o esquizofrênico comportamento de que fui acometida passando dias frente à tela, freneticamente acionando o controle remoto para não perder nem os feitos olímpicos, nem os malfeitos do julgamento do Mensalão, deles me surgiram filosóficas elucubrações sobre significado de Promessas e suas conseqüências. Talvez por que a ideia de promessa se encontre embutida tanto num quanto no outro evento: promessa de medalhas, vitórias e notoriedade num e de condenação ou absolvição no outro. Nos dois os eventos a esperança de “se dar bem” se constitui numa promessa. Mesmo a ré rotulada por seu advogado de “mequetrefe” sente no ar uma promessa, quando mais não seja a de recuperar a autoestima que deve andar no fundo do poço depois que assim foi rotulada por seu defensor.

Mas voltando às minhas elucubrações. Promessas... Por que as fazemos? Por que, freqüentemente, as promessas não se cumprem ainda que se tenha a melhor das intenções ao formulá-las ou a maior esperança de que se concretizem? Verdade seja dita que nem sempre estas boas intenções estão presentes. Exemplo disto foi dado por meu filho mais velho aos três anos. Em resposta à interrogação tão comum em todas as mães diante de um comportamento inadequado ou perigoso – você promete que não faz mais? - respondeu-me ele: pometo e quI eu fize outa vez eu pometo outa vez, tá bom? Na duvida de se deveria explicar a uma criança daquela idade o valor de uma promessa resolvi calar-me e apenas rir.

Hoje vejo que estava certa já que a dúvida sobre a validade das promessas me surge aos mais de oitenta anos! O pior é que embora saibamos da dificuldade de serem levadas a bom termo, as promessas que fazemos ou as que a vida nos faz, causam uma enorme decepção quando não se concretizam. Não falo aqui de promessas feitas com o amparo da fé religiosa. Sobre estas, que têm como fiador o divino, não me sinto à vontade para opinar. É o caso, por exemplo, dos votos proferidos no casamento religioso. O “para toda vida” e a “indissolubilidade”, nele embutida, me escapam. Mas e a união civil? Tenho certeza que no momento em que esta promessa é feita, na grande maioria dos casos, o é também “para toda vida”. Naquele momento é inimaginável pensar que, a rigor, trata-se de um contrato ao qual se contrapõe um destrato legal. Mesmo quando o destrato não ocorre um grande número de noivos, passados anos, não cumpre a promessa feita. E vem a tristeza, a decepção, o desencanto.

Não devia ser assim. O que deveria impregnar para sempre a memória e a emoção é a beleza e o encanto do tempo em que foi tudo foi tão bom. O eterno enquanto dure de Vinicius, já se constitui no cumprimento de uma promessa que não precisa ter a extensão de toda uma vida para ser válida. Quem sabe o segredo é nunca associar a ideia de duração às promessas. Conseguir deixar de fumar por três meses já é uma vitória. Fazer regime também. Por que rotular de perdedores os capazes destes feitos? Mas é isto que acontece deixando humilhados e frustrados os “prometedores”.

A medalha de prata, de cobre ou mesmo a não medalha, tem provocado frustração nos atletas e nos que os assistem, fazendo com que, mesmo sem ter advogados que os assim os rotulem, estes sejam vistos pelo grande público como “mequetrefes” e, pior ainda, por eles próprios. O fato de terem chegado a uma olimpíada não conta: a medalha de prata ou de bronze é “menor”. E vem a ladainha: Neimar não jogou nada; Fabiana Murer amarelou; Cielo não se esforçou; Rodrigo Pessoa já era. Coisa esquisita esta de exigirmos a perfeição em outros ou em nós quando somos todos comprovadamente imperfeitos.

Em seu delicioso livro O Andar do Bêbado, Leonard Mlodinow nos fala do Fenômeno de Regressão à Média que talvez explique o porquê de tantas falhas em resultados prometidos como mais que bem sucedidos. Diz ele que em qualquer série de eventos aleatórios, há uma grande possibilidade de que um acontecimento extraordinário seja seguido, por virtude meramente do acaso, de um acontecimento mais corriqueiro. Isto nos consola e dos 3 X 2 na final do vôlei masculino, promessa certa de medalha de ouro. De qualquer modo é claro que nunca devemos abandonar a esperança, mas também não deveríamos ficar tão atingidos quando não cumpridas as promessas que tínhamos como certas.

Em minha adolescência, se houvesse prestado a atenção devida, eu poderia ter aprendido isto com um louco que andava sorridente pelo centro de Miguel Pereira, naquele tempo uma mínima cidade. Doce e calmo ele se aproximava das pessoas, as encarava e dizia: Amigo! Guardei-te um figo. Quando te vi... comi! A promessa de saborear um delicioso figo, tão generosamente ofertado e já considerado como nosso, sucumbia na decepção sabê-lo engolido por outro!  Esta única manifestação verbal de um louco era de fato uma grande verdade: não é prudente contar como certo o sabor do figo!   
2012


terça-feira, novembro 19, 2013

MANHÃ EXECUTIVA

Era um dia como os outros. Nem mesmo o vento parecia diferente. O acordar veio, como sempre, lento, duvidoso. Engraçada essa sensação de quase incômodo no acordar. A cama perde o conforto encontrado na noite. Os barulhos - tão conhecidos - já não embalam o sono. Ao contrário, perturbam, fazendo com que se queira sair dali para encontrar alguma coisa. Sabe-se lá que coisa... Sabe-se lá... Uma coisa, apenas.

Levanta-se em busca disso que não sabe o que é. Gostaria de ter uma rotina para cumprir. Não tem. Nunca teve. Nunca conseguiu. A bem da verdade nunca tentou. Não saberia como. Mas deve ser bom conseguir essa ordenação lógica dos passos. Lá isso deve. Mesmo quando trabalhava - e olha que tinha horário para entrar e tudo mais - não conseguia. Não que chegasse atrasada. Era irregular apenas. Uma descoberta se faz: ela é irregular em tudo. Quem sabe irregularidade é seu traço marcante... Bem que podia... As pessoas - as outras - têm traços marcantes. Ela nunca se sentiu marcada por um. Sempre pulou de um traço para outro, vai ver na busca de construir uma linha completa com uma seta na ponta: um norte com cara de Norte. "Deve de ter", como dizia uma das muitas empregadas, perdida no tempo.

É... ”deve de ter”, pensa ela distraída enquanto coloca água no fogo para fazer café. Droga! O filtro está vazio. Coisa esquisita essa do filtro estar sempre vazio. Aliás, as coisas têm esta mania de esvaziar assim sem aviso. As garrafas na geladeira então... Corre para a geladeira. Confere. Estão todas completamente vazias. Abre a torneira do filtro. Vai levar horas para encher: a vela deve estar suja. Há quanto tempo não... ? Deixa pra lá! Agora tem que se decidir. Lógica. É preciso ser lógica. Droga! Afinal lógica sempre foi seu instrumento de trabalho. Tem que usar. Vejamos. Duas alternativas: arrumar a cama ou regar as plantas. Franze a testa com força. Decide-se! Melhor ver se chegou algum "e-mail".

Entra no escritório. Puxa, que cheiro de cigarro! Abre a janela pensando que cigarro não deveria ter cheiro. Sem cheiro não haveria culpa. Adora fumar. Liga o computador e fica olhando para a tela, abestada. Não lembra do que foi fazer ali... Ah, sim... a caixa postal. São três os mails. Um não interessa. Dois lhe trazem amigos distantes. Responder. Responder já e fingir que estão perto. Falando (no caso escrevendo) assim desordenada, pulando de um assunto para o outro, mal escutando (no caso, lendo) o que dizem. De repente se dá conta de que está ali há horas. Tem as plantas... o quarto desarrumado... o café...

É! Melhor tomar um café antes. Deixa o computador ligado, computando sozinho desenhos que dançam na tela. Na cozinha: catástrofe! A panela esquecida no fogo apresenta uma bela cor púrpura, sinal do incêndio iminente que a água que transbordou do filtro não vai conseguir apagar. É a terceira panela que se vai assim. Desliga o fogo e joga a panela na pia. Abre a torneira em cima e uma nuvem de fumaça queima seu rosto enquanto a água que escorre pelo chão, gela seus pés. Maldita faxineira. Escondeu o rodo. Ela esconde tudo.

Que vontade de tomar café! Patina na cozinha e na área abrindo portas e armários em busca do rodo. Deixa pra lá. Esta porcaria acaba secando. Ou evapora ou vai pelo ralo. Água sempre desaparece mesmo. Ela é que não vai continuar procurando rodo nenhum. Tem mais o que fazer... Rememora na ordem: café, encher garrafas, arrumar a cama, regar plantas. Ufa! É isso. Se fosse honesta, mas honesta mesmo, adicionaria "secar cozinha". Mas não é. É mesmo tão desonesta que elimina as plantas e a cama. Das garrafas nem se lembra. Tudo pode ser feito mais tarde. Concentra-se no café e resolve tomar mate gelado. Pronto: não tem mais nada para fazer.

Passa pelo escritório e vê o computador computando a tela colorida. Num primeiro movimento vai desligar e depois se lembra do que dizia aos estagiários: se você vai usar daqui a pouco, deixa ligado. É melhor. Não que exista algum motivo para que ela o use daqui a pouco. Mas nunca se sabe. O telefone toca!  A neta pergunta: tá ocupada, vó? Deixa-se cair gostosamente na poltrona antegozando a conversa: Estou, minha querida!  Ocupadíssima!... Mas pra você sempre arranjo um tempinho! 

2005

segunda-feira, novembro 18, 2013

SÓ PODE SER CARMA

Se outras vidas existem devo ter aprontado algumas de peso nas anteriores. Isto explicaria os extraordinários acontecimentos que povoam meu dia-a-dia desde que engoli um grampo aos quatro anos de idade. Sabe-se lá por que minha mãe guardou a radiografia deste evento a qual dei um fim recentemente achando que, quem sabe, a guarda desta documentação era o motivo da continuidade deste carma que me assola. Ledo engano! Numa constância espantosa as coisas acontecem. O mais desagradável é que sempre existem testemunhas que se divertem com minha desgraça encarregando-se de divulgá-la. Pior ainda, dirigem-se a mim fazendo-me lembrar o que eu daria tudo para esquecer, como ontem à noite ocorreu.

Atravesso o piloti, demandando à rua e à Cobal, lançando um rápido “bom dia” ao Porteiro, evitando o contato visual que poderia ensejar um comentário sobre a noite anterior, já que o outro que havia estado de serviço certamente havia feito o relato do ocorrido. Outras pessoas por lá se encontravam e deveria ser evitado a qualquer custo que fossem informadas do que havia acontecido. Inútil. Num tom divertido o Porteiro lança: que noite, heim, D, Anna!  Murmurei sei lá o que e desabalei ladeira abaixo. Mas o “que noite” acompanhou meus passos e, certamente vai me acompanhar durante largo tempo. Mesmo porque vou topar causador do evento, freqüentemente.

Já passava da uma da manhã e eu não me decidia a largar o livro que avidamente lia. Como sempre me recriminava: amanhã tenho que acordar cedo! Deu sede e me levanto demandando a geladeira. Chegando à sala escuto surpresa o som inconfundível de uma chave tentando abrir a porta. Ladrão com chave?! Coisa estranha, mas não impossível. O olho mágico revela um rosto familiar: um vizinho! Resolvo abrir. Muito improvável que tenha se tornado assaltante. Quando abro a porta ele passa por mim demonstrando uma enorme dificuldade em manter a condição de bípede e enrolando a língua, diz: vou pra cama. O que de fato faz dirigindo-se a meu quarto num movimento pendular atingindo, a cada passo, as paredes do corredor. Atira-se em minha cama e imediatamente é acometido de um coma etílico.  

Tento acordá-lo para comunicar o óbvio: bêbado, enganou-se de andar. Ele resmunga num tom belicosamente irritado, muda de posição e coloca o meu travesseiro cobrindo a cabeça. Só tem um jeito: chamar o porteiro noturno para removê-lo e entregá-lo “em domicílio”. Corro para o interfone o convoco para vir retirar o invasor. Desolado ele me informa: ele estava ruizinho mesmo, D. Anna. Tive que botar ele no elevador e apertar o botão. Vai ver eu errei o andar. Mas eu não posso deixar a portaria por que pode chegar alguém e eu tenho que abrir a porta. Penso rápido: este desgraçado não pode ficar dormindo aqui. A única solução é substituir o porteiro. Comunico minha decisão, enfio um roupão e desço deixando a porta aberta.

O Porteiro sobe e lá fico eu na guarita rezando para que ninguém resolva entrar ou sair o que, graças a Deus, era improvável àquela hora da madrugada. Mas para minha desgraça o improvável nunca é impossível e um casal do bloco de trás bate a campainha. Aciono a abertura do portão evitando olhar os dois que param, mirando incrédulos a guarita e dando um “boa noite” em tom cauteloso. Respondo e os vejo partir em direção ao fundo rindo muito. Neste momento começo a ouvir imprecações de baixo calão vindas de meu apartamento (moro no segundo andar). Evito repeti-las aqui e deixo à imaginação de vocês o que é capaz de dizer um bêbado que calmamente dorme sendo obrigado a levantar-se de sua cama pelo porteiro do edifício que indevidamente está em seu quarto. 

Ouço a voz irritada do Porteiro: o senhor não pode ficar a noite toda na cama de D. Anna! Precisava dizer isto? Como conseqüência acende-se a luz do quarto correspondente no primeiro andar e a moradora põe a cabeça na janela e quando me vê de roupão na guarita a retira imediatamente. Pouco depois o interfone toca. É ela, penso, esta porcaria pode arrebentar de tocar que eu não atendo. Realmente a coisa arrebenta de tocar, acompanhada agora pelo interfone do terceiro andar. A campainha do portão toca e eu vejo meu vizinho de andar que felizmente conheço bem. Explico a ele a situação e, rindo muito, ele resolve subir para ajudar o porteiro.

Depois de alguns minutos escuto o barulho do elevador misturado ainda às imprecações agora dirigidas também ao meu gentil vizinho. A demora é longa. Provavelmente os dois estão tendo dificuldade em explicar à senhora do rapaz tudo o que ocorreu. Mas, finalmente, descem os dois e começam a me relatar a remoção do indivíduo e a reação da cônjuge.

Neste momento chega mais um morador que aturdido se depara com o grupo formado por dois moradores (eu de roupão) e o porteiro, numa animada conversa. É evidente que quis inteirar-se da situação que lhe foi explicada às gargalhadas pelo Porteiro e pelo vizinho. Passa ele também a rir muito. Pensando que tudo havia terminado disponho-me a voltar à tranqüilidade de minha casa e de meu livro. Nada mais impossível: o porteiro, num riso idiota, me comunica: sinto muito, D. Anna, mas a senhora vai ter que fazer uma limpeza daquelas. Ele vomitou na cama e no chão também.

Furiosamente, e com imprecações similares às do criminoso, procedo à limpeza de meu quarto e dos lençóis rezando para que a vizinha do andar de baixo, não resolva reclamar do barulho da faxina e da máquina de lavar em pleno funcionamento às duas da manhã.
2008