Ela
acorda em pânico: vou morrer! Não que esteja sentindo alguma coisa. Nada de
anormal está ocorrendo. O problema é que bateu-lhe a consciência de que vai
morrer, com certeza! Olha em torno do quarto que depois da reforma ficou
exatamente como queria. Não pode! Logo agora! Este “agora”, não quer dizer
exatamente agora. É até difícil de explicar. Espanta-se! Sempre soube, isto é,
soube a maior parte de sua vida, que iria morrer, mas nunca, nunca mesmo se deu
conta de que isto iria acontecer de fato. É... não está fazendo muito sentido
este último pensamento. Mas a formulação é esta mesmo.
O
primeiro contacto que teve com a morte foi o final, tão triste de seu primeiro cavalo. É uma de suas mais remotas lembranças. Tinha cerca de 6 anos. Chamava-se
Coringa e era branco. Albino de focinho cor-de-rosa. A crina era branca também.
Lindo! Lindo! Exceto, é claro, o focinho. Hoje, mais de setenta anos depois, é
apenas uma foto desbotada em que ela também aparece metida nas botas dadas pelo
pai à revelia da mãe: que absurdo! Nesta idade vai perder estas botas
logo! Odiou a mãe e amou mais o pai. Uma
cobra. Foi uma cobra, a assassina de Coringa. Custou a compreender. Estas
coisas acontecem - disse-lhe o pai - não chora. A gente compra outro. E ela
perguntou: eu vou morrer também? Você vai comprar outra? O pai riu e nem
percebeu que ela estava sofrendo muito.
E
agora, naquela manhã, ela se dá conta que mesmo sem cobra a vista, vai morrer.
Possuída por um sentimento de raiva abre a janela do escritório e dá com o mico
a quem dirige a frase, com um insulto: você vai morrer, mico, viu?!! Não sabe o
efeito que causou porque fecha de novo a janela significando que não haverá
hoje a entrega da banana diária. Escova os dentes pensando: pra que escovar?
Vou morrer mesmo. Não tem o menor sentido.
Dirige-se a cozinha e entra em luta com o coador de papel que nunca se
adapta à cafeteira elétrica. Pela primeira vez não lança imprecações contra o
fabricante: que importância tem isto diante de sua morte?
Ao
primeiro gole de café, a terrível revelação! Não vou mais poder engolir!
Incrível isto. Outro gole e mais outro procurando em vão adiar o derradeiro. Um
delírio de últimas ações começa a desfilar em sua cabeça. Qualquer coisa que faça pode ser a última!
Que droga! Não vai poder fazer mais nada sem que esta certeza interfira! Ávida
toma outra xícara de café. E outra e mais outra. Só vê duas alternativas diante
da tragédia: ou se imobiliza ou sai pela casa praticando o maior número de
“últimas ações” que puder.
Como
não é de ficar parada opta pela segunda, frenética. Exagera em cada uma delas.
Afoga as plantas numa quantidade espantosa de água. Sabe-se lá se amanhã vou
poder fazer isto. Assim fica uma reserva. As crianças não vão lembrar de regar
amanhã quando eu já estiver morta e aí elas – as plantas - vão morrer também. A
água que inundou a samambaia jorra sobre o porta-retratos do pai, já um tanto
mofado pelos pingos que sempre lhe caem em cima. Pela primeira vez no dia
sorri, lembrando-se da observação do filho: Mãe, você precisa parar de regar a
foto de vovô!
As
crianças... Meu Deus! O mais moço, o temporão, já tem mais de quarenta! Será
que eles vão sofrer? Preciso avisar que vou morrer ou deixo que aconteça assim,
de surpresa? De surpresa, não! Não se faz isto! Telefono e acordo eles agora?
Eles acordam muito tarde. Melhor falar primeiro com o genro e a nora para que
preparem a filha e o filho? É... talvez
seja melhor. Ou melhor ainda, peço isto à amiga. Ela é médica e vai saber dizer
com jeito. Além disto ela vive dizendo que é filha dela também. Merece o ônus.
A outra amiga também poderia, mas está longe e pelo telefone não se falam estas
coisas.
A
campainha do telefone soa! Horror! E se for a filha que teve uma premonição e
acordou desesperada? Apavorada atende. Escuta aliviada e responde: Pode, sim.
Pode vir colocar as cortinas hoje. Não vou sair. Desliga e repreende-se. Que
falsidade!. Quando o homem chegar com as cortinas vai ver já está morta! Mas
ele deve ter experiência destas situações já que vive colocando cortina por aí.
Pela probabilidade já deve ter acontecido. Quem sabe é ele que vai dar o
alarme? É... melhor assim. Um estranho não vai estar emocionalmente envolvido,
fora o susto. Seria cruel se fossem as crianças. Pensa, fugindo do assunto: por
que é que os filhos são “as crianças” e as netas são “as meninas”? Coisa mais
maluca! Tirando a mais moça (das netas) ninguém é mais criança, nem menina.
Comovida
examina as fotos das netas que povoam a sala. São lindas! As três. Perfeitas.
Bem que podia ter bisnetos. Ia ser a glória. De novo o som do telefone. Atende
e voz alegre da neta pequena informa: Vó? Eu já tô sabendo ler! Instala-se confortavelmente
para o que se anuncia como uma longa conversa. A neta está maravilhada com uma
peça de teatro que viu. E ela, adiando a morte iminente para no mínimo mais 12
anos - a neta tem seis - declara: quando você ficar grande nós vamos juntas ver
peças que você vai adorar! E, ilustrando, delicia-se contando a história de
Romeu e Julieta numa versão infantil.
2005
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