Por mais de uma vez
estas crônicas falaram de Fräulein
Grete. Até mesmo num pedido de desculpas pelo ódio infantil que lhe tinha, já
que na provecta idade em que me encontro entendi que sua intenção era das
melhores ao tentar me educar com rigidez militar.
Tinha eu apenas
quatro anos e uma de minhas queixas era a diferença que havia entre o trato
dispensado a mim e aquele de que era alvo meu irmão de dois anos. Ele, entregue
aos exclusivos e ternos cuidados de Babá, maravilhoso ser humano de quem tenho
até hoje enorme saudade. Até mesmo de Fräulein
ele recebia carinhoso tratamento: meine
schöne (meu lindo) enquanto eu ouvia um ríspido: richten sie (endireite-se!) destinado
a garantir um futuro saudável para minha coluna. O que, diga-se de passagem,
não aconteceu ou porque eu não obedecia ou porque a postura correta na infância
em nada garante a higidez na velhice.
Outra queixa, mais
que justificada, era a confusão que se estabelecia para o ato de falar.
Morávamos em São Paulo, numa chácara linda e, sei lá por que razões Mamãe
decidiu que além da Governanta alemã eu deveria ir para o colégio francês
L’Assomption. Isto misturado ao linguajar do choffeur italiano (não se
dizia motorista naquela época) complicou muito a forma de me expressar. Eu era
acordada em português por Babá, tomava café em alemão com Fräulein, ia para o colégio ouvindo Seu Anselmo cantar a plenos
pulmões em italiano antes de ingressar num mundo francês!
Inexplicável também
era o fato de que, acordada por Babá, eu era posta para dormir por Fraulein. E é ai que entra o terror
noturno. Fräulein me fazia rezar em
alemão, ajoelhada ao lado da cama, uma oração que para mim tinha um significado
muito desagradável. Hoje, totalmente esquecida deste idioma, sou capaz de como
um papagaio repeti-la sem entender o que estou dizendo. Ich bin kein, soll
niemand drin wohnen als Jesus allein. Amen. Fui conferir no Google a grafia e se
a tradução correspondia à exortação marcada para sempre em minha memória:
unicamente Jesus deveria habitar meu coração! E meu irmão, e meu cachorro, e
meus pais, e minha irmã recém-nascida? Que droga, eu pensava! Tudo bem que
Jesus também lá estivesse, mas só Ele?! Tentei discutir isto com Fräulein. De nada adiantou. Ou melhor,
ela me fez alguma reprimenda pelo que julgou ser uma blasfêmia. Não deve ter
usado esta palavra, mas pelo enfático tom do qual me lembro devia significar
isto ou coisa pior.
Mas o terror vinha
depois desta afirmação de exclusiva moradia cardíaca. Já eu na cama, Fräulein sentava-se ao lado e começava a
cantar! A intenção devia ser, é claro, dar-me o carinho de uma canção de ninar.
Mas o fato é que a cantoria soava como uma terrível ameaça que se repetia noite
após noite. E as palavras que também papagueio agora sem ter ideia do que
significam (também transcritas e traduzidas com auxilio do Google) eram, naquela
época, por mim compreendidas e vaticinavam algo terrível:
Guten Abend, gut'
Nacht!
Mit Rosen bedacht,
mit Näglein besteckt,
schlupf unter die Deck'!
rgen früh, wenn Gott will,
wirst du wieder geweckt.
A última frase significa: amanhã se
Deus quiser você vai acordar! E se Deus não quisesse? Eu podia morrer durante a
noite! Um horror! Pior é que esta possibilidade me parecia bem provável como
castigo por minha recusa de manter somente Jesus no coração teimando em
povoá-lo com seres humanos! Noite após noite
esta ameaça se renovava e ao ser acordada a cada manhã por um anjo terreno
(Babá) eu respirava aliviada. O mais apavorante é que esta mesma canção em
português era cantada por Babá para meu irmão tendo na última frase o desejo de
que uma bela musica embalasse seu sono. Ou seja, a ameaça era mesmo só a mim
dirigida.
Não mais podendo
agüentar o horror perguntei a Papai se de fato eu poderia não acordar. Ele riu
e disse que era maluquice e que eu não deveria me impressionar com isto.
Estabeleceu-se então uma discussão teológica, totalmente incompreensível para
mim, entre Mamãe (muito devota) e Papai (nem tanto) que longe de me esclarecer
provocou duvidas muito serias. Reivindiquei então ser posta na cama por Babá.
Era uma solução e me
foi concedida esta benção, com uma condição: Fräulein se encarregaria do preparar para cama e Babá me garantiria
bons sonhos! Vai daí que eu continuaria a ouvir a voz de comando dada sempre à
mesma hora e da mesma forma: zähne putzen
(escovar os dentes). Esta é uma das raras frases que ainda digo em alemão
sabendo o que estou falando. E certamente a que me credenciará como idiota se
algum dia me for necessário mostrar proficiência neste idioma!
2012
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