Tinha eu doze anos e o “frequentar” da
biblioteca de meu pai, que era enorme, havia repentinamente sofrido um
“upgrade”. O ingresso no Colégio Bennett, havia dois anos, possibilitava agora
o acesso aos livros editados em inglês. Em minha primeira garimpagem encontrei
um livrinho cujo título me chamou a atenção: Memoirs of a woman of
pleasure. Embora possivelmente eu já soubesse a qual “pleasure” a “woman”
se entregava, lembro-me perfeitamente que não foi este o motivo de minha
seleção. A dificuldade que poderia se apresentar pela novidade do idioma exigia
um livro de poucas páginas.
E foi assim que mergulhei nas aventuras de
Fanny Hill, de quem nunca mais esqueci. Minha família fora de esquadro,
sobretudo meu pai, era muito econômica em proibições e leituras nunca me foram
censuradas. Uma das raras proibições era dormir tarde em dias de semana já que
o acordar se dava às seis horas para estar no colégio às oito. Vai daí que na
noite em que me apoderei do livrinho tive que construir a tenda destinada a
impossibilitar a percepção de luz em meu quarto. O abajur era transportado para
baixo da cama que era cercada de cobertas até o chão. Munida de travesseiros eu
me espremia naquela caverna para ler até altas horas. Foi assim que devorei as
memórias da prostituta londrina. Um mundo novo se abriu.
No dia seguinte comentei com meu pai a
descoberta. Ele sorriu: é seu primeiro
contato com erotismo. Pode ser emocionante, sim. Mas existem livros melhores. Pegou-me
pela mão e levou-me à biblioteca tirando de uma das estantes O Amante de Lady Chatterley que me
entregou num convite: leia!
Estas duas leituras foram motivo para longas
conversas com Papai em que aprendi a grande distância entre erotismo e pornografia. Foram
também responsáveis por meu primeiro contato com preconceito. Pais de amigas
minhas ficaram horrorizados de me saber leitora de tais “porcarias”. Isto
mesmo: esta palavra foi verbalizada, escandalizando-me. Até hoje me felicito
por ter não ter sido filha daqueles pais. Muito mais ainda agradeço por ter
sido filha dos meus porque entre muitas outras coisas me ensinaram a ter
prazer, a buscá-lo. A leitura de Fanny Hill foi um dos maiores. Mas inúmeros
outros a ela se somaram.
Detesto “não gostar” de alguma coisa.
Sinto-me lesada, quando impossibilitada da fruição de prazeres que vejo em outras
pessoas. Um dos prazeres que foi me negado, sei lá eu por que, é cerveja. Morro
de inveja quando numa mesa vejo todos se regalando e eu sem gostar. Como é bom
ter tanto pra gostar. Cavalos, minha grande paixão; futebol minha torcida até
hoje pelo Fluminense; um barco ao cair da tarde descendo o Rio Jaguaribe em
João Pessoa, com um homem proa com um sax tocando (mal) o Bolero de Ravel;
Tambor de Criola batendo num São Luis histórico; trabalhar e muito numa vida
profissional com sentido, tendo feito alguma diferença e sendo reconhecida;
subir o Rio Amazonas; a Belém Brasília em construção, num jeep; hospedar-me num
bordel numa pequena cidade por ausência de pensão ou hotel; roda de samba em
casa de Candeia (que saudade); grupo de analistas de sistemas enlouquecidos,
num quarto de hotel de Fortaleza, tentando ver quem resolvia primeiro um teste
de lógica, madrugada adentro, ao invés de dormir para enfrentar a loucura do
trabalho no dia seguinte; este mesmo grupo decidindo que era melhor eu acompanhá-los
ao La Licorne (!!!), na Major Sertório, do que ficar sozinha no hotel em São
Paulo; conhecer e muito todo este Brasil tão lindo; conversa, muita conversa
com brasileiros tão especiais; teatro, música, cinema, comidas; morar numa
cidade pequena como Pirassununga; passeios a cavalo ao luar com um bando de
adolescentes que se conheciam desde sempre sendo instados a cantar aos berros
pelo adulto que os chaperoneava (anos depois soubemos que isto era comandando
para impedir beijos de longa duração); ser levada escondida num avião caça de
treinamento por um marido sem juízo e quase adolescente para brincar de pular
coqueiros em voo rasante nas lindas praias do litoral nordestino; violão e
Caymmi na Lagoa do Abaeté; é impossível enumerar tudo que têm um único rótulo:
prazeres. Fui estimulada a tê-los na infância e adolescência.
Depois por auto estimulação, por curiosidade,
o experimentar constante de coisas novas. Aprendi assim que o belo é para ser
visto e que o interessante é para ser vivido. Ambos dando muito prazer. E concordo com Nelson Rodrigues quando diz: Na
mulher interessante a beleza é secundária, irrelevante e até mesmo
desnecessária. A beleza morre nos primeiros quinze dias, num insuportável tédio
visual. Era preciso que alguém fosse de mulher em mulher anunciando: ser bonita
não interessa, seja interessante!" Só que isto vale para homens
também. Gosto de ver homens e mulheres bonitos
Assim como cavalos, cachorros, quadros, flores e paisagens. Mas para
convívio só os interessantes dão prazer.
E ai entraram maridos e amigos.
Coincidentemente alguns foram ou são bonitos mas o que me encantou e encanta
neles é o interessante de que fala Nelson. John Cleland escreveu a história de
Fanny Hill em 1748; mal sabia ele que quase duzentos anos depois uma
adolescente dos trópicos ira se encantar com a descoberta do erotismo. A
palavra prazer tornou-se plural ao longo da vida. E, todas as vezes em minhas estantes bato os olhos em Pablo Neruda afirmando Confesso que Vivi, pisco
pra ele e digo: eu também!
2011
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