Papai tinha apenas 23 anos quando nasci. Para a época, muito
moço. Sua formatura como engenheiro civil, pela então Escola Politécnica, só se
daria no final do ano de 1930, meses depois de meu nascimento. Vai daí que fui
à cerimônia no colo de Babá. Anos, muitos anos depois, recebi dele um cartão:
“fui o primeiro de minha turma a ter filho. Como se explica esta absurda
tardança em ser avô”? E eu pensei: para ele fui um presente. Não que não soubesse. Sempre me fez
sentir assim. Mas o reafirmar por escrito trazia aquela gostosa sensação de
proteção que, agora tão velha, por vezes careço.
Era bonito, meu pai. Falei em Babá, não foi? Outra fabulosa
proteção. Ela, papai e minha avó formavam um escudo indestrutível: nada poderia
me atingir. Minvó, como a chamávamos. Nós, os netos. Não conheci meu avô. Havia
morrido quando Mamãe tinha 12 anos. Mas era como se o houvesse conhecido. Raro
o dia em que Minvó não se referia a ele como Doutor Miguel. Pelas histórias era
muito presente em nossas vidas. Ele, para nós os netos, era O QUARTO que havia
sido mantido no sítio, em Miguel Pereira, exatamente como no dia de sua morte.
Quando chegávamos ao sítio para as férias de verão, éramos levados lá por
Minvó. Permanecíamos em silêncio, ali parados, um pouco amedrontados. Depois
saíamos. Pronto. Era só isto. No dia da partida repetia-se a cerimônia. No mais
O QUARTO permanecia fechado, único território proibido naquele paraíso. Havia
uma exceção. No carnaval lá ingressávamos para escolher fantasias que
estranhamente eram guardadas em uma cômoda, no santuário! Neste dia a
antecipação da festa espantava o medo e podíamos até falar e rir.
Papai era o genro preferido de Minvó. Único a ser tratado
pelo nome. Os outros eram indicados com um Dr. á frente do nome. As noras eram “você” mesmo. Zenaira e Tia
Lili. E eu as adorava. Tia Lili havia surgido primeiro. Era uma bonita figura
quando montava seu Bandoleiro. Muitas e muitas vezes fui escolhida para ir com
ela buscar o jornal que chegava no trem das 11. Enganchada na sela à sua frente,
lembro-me que ria muito quando Bandoleiro passarinhava assustado com as cobras
que se moviam dentro do bambual que formava um túnel na entrada do sítio. Isto
se juntava aos cheiros de água de colônia e do couro da sela. Um grandor!
Zenaira foi meu modelo na pré adolescência. Eu passava horas em frente ao
espelho imitando seus gestos e expressões. Era linda esta minha tia. Tive muito
ciúme dela quando apareceu enamorada de meu tio mais moço: minha primeira
paixão. Virgílio – Ijo como o chamávamos - era deslumbrante e tudo que sei
sobre cavalos com ele aprendi.
O aparecimento de Zenaira destruiu meu sonho de com ele um
dia me casar. Mas durou pouco a desventura. Ela me conquistou. Sobre tudo isto
reinava Minvó. Aristocrata, sempre vestida de negro pelo luto do marido adorado
– o Doutor Miguel – que a havia deixado aos trinta e nove anos com seis filhos,
um ainda muito pequeno – o Ijo. Um dia não pôde mais usar o negro. Uma
irritação na pele causada pelos muitos anos no escuro a obrigaram a adoçar a
cor. E o cinza e branco passaram a adornar seu porte de rainha. Havia nela um
porto seguro para mim: o banquinho em que apoiava os pés. Nele eu me sentava
colocando a cabeça em seu colo, mesmo depois de casada. E a cabeça esvaziava de
tudo que podia estar atormentando, no embalo das mãos que percorriam meus
cabelos enquanto dizia: “Namaria... Namaria...
quem ama não tem sossego!¨ Sei lá de onde e por que esta frase me era
repetida. Mas estranhamente funcionava. Trazia paz, aconchego. Ela ainda me dizia que quando morresse
eu deveria colocar o ouvido em seu coração que estaria repetindo: Namaria...
Namaria. Fiz isto anos mais tarde quando
partiu num desastre de automóvel e, em desespero, nada ouvi. Foi a única vez em
que ela me falhou.
Entre Minvó, aristocrata, Papai socialista e Babá
incondicional protetora, fui me preparando para a vida, escolhendo o que de
melhor havia em cada um deles, por que sempre me permitiram isto. Jamais
tentaram torcer o pepino. Lembro-me que rimos muito, papai e eu quando um dia
eu voltava da missa, em Miguel Pereira (onde ia para namorar) comentei que a
filha do farmacêutico Seu Portela, estava uma linda moça. Minvó deslizou os
óculos nariz abaixo como sempre fazia quando uma declaração importante estava
por vir e, severa, pontificou: não se
esqueça, minha nêga, bonito só nós! Isto era um dos ditos cultivados pela família originado, sei lá eu, de qual dos antepassados.
Eram muitos os ditos. Mas um deles marcou minha vida e volta
e meia retorna pensado de mim para mim. Deste sei a origem: um empregado do sitio era um
exímio cavaleiro e foi convencido por todos nós que deveria se dedicar a domar
animais bravios. Falamos tanto que ele se convenceu e um dia resolveu dominar Ventania,
cavalo mais que bravio que jamais havia aceitado sela. Reunímo-nos todos no
picadeiro aberto para assistir. E Labé – era este seu nome – foi arremessado
violentamente contra a cerca na primeira tentativa. Muito machucado urrou
indignado para platéia numa fúria incontida: quem foi o desgraçado que disse que eu era pião?
Hoje, vez por outra, diante de tombos que a vida me dá pela
imprudência e onipotência de por vezes sou acometida, sinto vontade de gritar
como ele: Quem foi o desgraçado que disse
que eu era pião?
2008
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