terça-feira, outubro 22, 2013

SABEDORIA EMERGENTE

Já lá vão, sei lá eu, quantos anos!  Eu trabalhava furiosamente para dar conta do sustento de três filhos e fui convidada por uma prima, bem mais abonada que eu, a passar quinze dias em sua casa de praia, para um justo descaso. “Noblesse oblige” que eu evite identificar local e época e, muito menos, a protagonista da história que ainda deve andar por aí. Mesmo sabendo que dificilmente leria o que quer que seja! De qualquer modo sua história é extraordinária demais para que eu a mantenha em segredo.

No cenário tipo “côte d’azur”, também estava hospedado um casal riquíssimo. Ela incrivelmente bonita e, se não abrisse a boca, seria a maior perfeição humana que eu já havia visto. Pelo casamento a moça humilde havia se transformado numa vicejante e riquíssima jovem senhora. O primeiro episódio ocorreu no momento de minha chegada num Volkswagen. Feitas as apresentações me foi perguntado pelo marido se estava muito calor no Rio.

Descrevi minha noite anterior passada quase em claro entre dois ventiladores e um balde de gelo. O rapaz comentou: sem ar refrigerado no Rio não dá! A beldade, num tom de estranha censura, revidou: que absurdo, meu bem! A resposta do marido veio irritada: absurdo por que?! E ela: vai dizer que você não percebeu?! O tom do rapaz tornou-se exasperado: você está maluca? O que há para perceber?  E ela triunfante: eu quis ser discreta e você está me forçando a explicar. Você não viu o carro dela? Não viu que ela é pobre e não pode comprar um ar refrigerado? O desconcertado rapaz imediatamente puxou outro assunto deixando para esganá-la numa situação mais reservada.

No almoço, talvez em penitência, a moça só se dirigiu a mim demonstrando um enorme interesse por minha vida agora sabida miserável. E veio a pergunta: no Rio onde é que você mora?  A informação do Humaitá, provocou a catástrofe. Penalizada e gentil, até carinhosa, ela sai-se com esta: não fica triste não! Existe muita gente bem que mora no Humaitá. Até em Botafogo! O marido apopléctico, lançando olhares furibundos à mulher, começou a demonstrar um enorme interesse por minha profissão. Buscando desesperado uma compensação para o meu estado de extrema penúria declarou enfático que só pessoas muito inteligentes podem ser analistas de sistemas! Resolvi que sendo inteligente, miseravelmente, morando no Humaitá e diante da possibilidade excepcional de ser gente bem, deveria me comportar e apenas relaxar.

Era apenas o primeiro dia e visto o prólogo era mais que provável que outras características minhas viessem a ser reveladas com igual acuidade. Mas para meu sossego fui deixada de lado. Quem sabe o marido proibiu que a mim se voltassem as baterias. Mas se não mais fui objeto de seus extraordinários comentários, ela não se furtou em fazê-los sobre assuntos outros tornando minha estadia muito divertida. Na praia - da moda e certamente “bem” - onde se situava a casa, pululavam personalidades importantíssimas seja pela riqueza, seja por serem expressivas no cenário político-econômico-cultural-social da época. E foi assim que num jantar oferecido por minha prima, dois senhores se destacavam. Ambos baianos: um grande plantador de cacau e o outro ligado à área econômica, conhecido especialista nesta cultura.

Conversavam animadamente sobre o dito cacau quando ela se aproximou. Tomados por aquela expressão de aceitação e de “venha a mim” que homens adotam quando mulheres belíssimas se aproximam os dois escutaram a pergunta que deu lugar à formulação de uma espantosa teoria econômica: os senhores sabem qual o efeito do cacau? O tom indignado em que foi formulada a pergunta a tão notórios especialistas provocou a atenção dos que estavam por perto, já conhecedores das maravilhosas intervenções da moça. Sorrindo os dois pedem que ela os esclareça. E vem a espantosa formulação: na Bahia, os homens ricos pegam o cacau, plantam o cacau, colhem o cacau, vendem o cacau e suas mulheres pegam o dinheiro do cacau e vão para a França e compram todos os lançamentos de Dior! Um horror! Quando a gente vai comprar não tem mais nada!

Como das outras vezes imediatamente alguém imprime outro rumo à conversa, desta vez comentando um quadro de Aldemir Martins. E o assunto volta-se para criatividade. Horror! A bela, desta vez para toda a platéia, descreve um bloqueio de criatividade do qual foi vítima num momento crucial de sua vida. Haveria um almoço de negócios ao qual ela deveria comparecer com o marido. Era no Bife de Ouro e exigia um vestido perfeito para a ocasião. Senhoras de empresários franceses estariam presentes e ela tinha que brilhar. Dior, nem pensar: o cacau impedia! Desesperada, frente ao seu costureiro, deu branco e ela sentia-se incapaz de descrever o vestido que deveria ser criado para a ocasião. Uma tragédia! Nenhuma ideia. Crise de criação total. Tal como Aldemir Martins frente a uma tela branca, impotente. E eis que, como um milagre, baixa a inspiração que a salvou de um desastre inimaginável. A criatividade que sempre demonstrou neste segmento de arte não a abandonara! E, segundo ela, o costureiro maravilhou-se diante de seu extraordinário poder criativo, ao dizer triunfante: um vestido do tipo que seria perfeito para eu ir ao meu joalheiro!
 2006

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