Já lá vão, sei lá eu, quantos anos! Eu trabalhava furiosamente para dar conta do sustento de três filhos e fui convidada por uma prima, bem mais abonada que eu, a passar quinze dias em sua casa de praia, para um justo descaso. “Noblesse oblige” que eu evite identificar local e época e, muito menos, a protagonista da história que ainda deve andar por aí. Mesmo sabendo que dificilmente leria o que quer que seja! De qualquer modo sua história é extraordinária demais para que eu a mantenha em segredo.
No cenário tipo “côte d’azur”, também estava hospedado um casal riquíssimo. Ela incrivelmente bonita e, se não abrisse a boca, seria a maior perfeição humana que eu já havia visto. Pelo casamento a moça humilde havia se transformado numa vicejante e riquíssima jovem senhora. O primeiro episódio ocorreu no momento de minha chegada num Volkswagen. Feitas as apresentações me foi perguntado pelo marido se estava muito calor no Rio.
Descrevi minha noite anterior passada quase em claro entre dois ventiladores e um balde de gelo. O rapaz comentou: sem ar
refrigerado no Rio não dá! A beldade, num tom de estranha censura, revidou: que
absurdo, meu bem! A resposta do marido veio irritada: absurdo por que?! E ela: vai
dizer que você não percebeu?! O tom do rapaz tornou-se exasperado: você está
maluca? O que há para perceber? E ela
triunfante: eu quis ser discreta e você está me forçando a explicar. Você não
viu o carro dela? Não viu que ela é pobre e não pode comprar um ar refrigerado?
O desconcertado rapaz imediatamente puxou outro assunto deixando para esganá-la
numa situação mais reservada.
No almoço, talvez em penitência, a moça só se
dirigiu a mim demonstrando um enorme interesse por minha vida agora sabida
miserável. E veio a pergunta: no Rio onde é que você mora? A informação do Humaitá, provocou a
catástrofe. Penalizada e gentil, até carinhosa, ela sai-se com esta: não fica
triste não! Existe muita gente bem que mora no Humaitá. Até em Botafogo! O
marido apopléctico, lançando olhares furibundos à mulher, começou a demonstrar
um enorme interesse por minha profissão. Buscando desesperado uma compensação
para o meu estado de extrema penúria declarou enfático que só pessoas muito
inteligentes podem ser analistas de sistemas! Resolvi que sendo inteligente,
miseravelmente, morando no Humaitá e diante da possibilidade excepcional
de ser gente bem, deveria me comportar e apenas relaxar.
Era apenas o primeiro dia e visto o prólogo
era mais que provável que outras características minhas viessem a ser reveladas
com igual acuidade. Mas para meu sossego fui deixada de lado. Quem sabe o
marido proibiu que a mim se voltassem as baterias. Mas se não mais fui objeto
de seus extraordinários comentários, ela não se furtou em fazê-los sobre
assuntos outros tornando minha estadia muito divertida. Na praia - da moda e
certamente “bem” - onde se situava a casa, pululavam personalidades
importantíssimas seja pela riqueza, seja por serem expressivas no cenário
político-econômico-cultural-social da época. E foi assim que num jantar
oferecido por minha prima, dois senhores se destacavam. Ambos baianos: um
grande plantador de cacau e o outro ligado à área econômica, conhecido
especialista nesta cultura.
Conversavam animadamente sobre o dito cacau
quando ela se aproximou. Tomados por aquela expressão de aceitação e de “venha
a mim” que homens adotam quando mulheres belíssimas se aproximam os dois
escutaram a pergunta que deu lugar à formulação de uma espantosa teoria
econômica: os senhores sabem qual o efeito do cacau? O tom indignado em que foi
formulada a pergunta a tão notórios especialistas provocou a atenção dos que
estavam por perto, já conhecedores das maravilhosas
intervenções da moça. Sorrindo os dois pedem que ela os esclareça. E vem a
espantosa formulação: na Bahia, os homens ricos pegam o cacau, plantam o cacau,
colhem o cacau, vendem o cacau e suas mulheres pegam o dinheiro do cacau e vão
para a França e compram todos os lançamentos de Dior! Um horror! Quando a gente
vai comprar não tem mais nada!
Como das outras vezes imediatamente alguém
imprime outro rumo à conversa, desta vez comentando um quadro de Aldemir
Martins. E o assunto volta-se para criatividade. Horror! A bela, desta vez para
toda a platéia, descreve um bloqueio de criatividade do qual foi vítima num
momento crucial de sua vida. Haveria um almoço de negócios ao qual ela deveria
comparecer com o marido. Era no Bife de Ouro e exigia um vestido perfeito para
a ocasião. Senhoras de empresários franceses estariam presentes e ela tinha que
brilhar. Dior, nem pensar: o cacau impedia! Desesperada, frente ao seu
costureiro, deu branco e ela sentia-se incapaz de descrever o vestido que
deveria ser criado para a ocasião. Uma tragédia! Nenhuma ideia. Crise de
criação total. Tal como Aldemir Martins frente a uma tela branca, impotente. E
eis que, como um milagre, baixa a inspiração que a salvou de um desastre
inimaginável. A criatividade que sempre demonstrou neste segmento de arte não a
abandonara! E, segundo ela, o costureiro maravilhou-se diante de seu
extraordinário poder criativo, ao dizer triunfante: um vestido do tipo que
seria perfeito para eu ir ao meu joalheiro!
2006
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