quarta-feira, outubro 02, 2013

PRA LÁ DE NORMAL

E eis que me encontro octogenária. O que isto significa, sei lá eu. Quer dizer, o óbvio eu sei: foram vividos oitenta e três anos. Mas e daí? O que há de extraordinário nisto? Não consigo descobrir por que no rosto das pessoas sinto que para elas existe alguma coisa de muito diferente. Falam como se eu tivesse realizado um extraordinário feito! Olham-me com estranheza e com um misto de admiração! Mas em todos estes anos, o que de fato existiu foi a mesmice de uma sucessão de mudanças incessantes e muito poucas devidas a feitos meus!
As coisas mudam sem parar desde que me entendo por gente. A primeira grande mudança de que tenho memória foi aos quatro anos: ganhei um cavalo! Medo, emoção, encantamento e assombro misturaram-se e meu coração bateu forte ao ouvir de meu pai que teria que montá-lo sozinha. Até aquele dia era uma delícia enganchar em frente à sela dele e sentindo a proteção que me permitia a delícia do cavalgar. Sozinha? Naquele cavalo enorme? E Coringa me olhava com seus olhos mansos parecendo dizer: como é?  Vem ou não vem? Me armei de coragem e fui. Aí a mudança. Tomei as rédeas no sentido real e no figurado. A partir daí ninguém mais me segurou. Uma sensação de liberdade, de poder tudo. Incrível! Isto aconteceu de manhã e no final da tarde, a galope no cocuruto do morro, alcei vôo.
Outros cavalos vieram, mas neles eu montava com asas que me foram dadas por Coringa, o Pégaso Albino. Aos meus onze anos o ginásio! Ao invés de uma professora passaram a existir muitos. Uma mudança de peso. Sobretudo por que foram introduzidas matérias que, do meu ponto de vista, eram reservadas aos adultos: literatura, inglês, francês e ciências, que num passe de mágica, virou biologia, química e física. E latim! Ah! De Bello Galico: Gallia est omnis divisa in partes tres, quarum unam incolunt Belgae... Importantíssima esta informação sobre os belgas. Até hoje sei de cor. E passei a me destacar, com muito mais substância, à mesa de jantar, informada que agora me encontrava.
Aos quatorze anos um namorado que partia para guerra como pracinha! Mudança de peso esta. Um verdadeiro romance. Na verdade o namoro, de corpo presente durou pouco já que o embarque para Itália se deu dias depois da emoção da declaração de amor eterno! Sim, porque houve declaração em alto estilo. Depois a emoção das cartas! E, meses depois... um colega (lindo!) passou a sentar-se a meu lado. E ao meu lado sucederam-se outros.
Até que casei. Outra mudança: enorme esta. Aos 19 anos, jovem senhora, com uma licenciatura em química, parto para Natal. Uma Base Aérea. O meio militar era um mundo totalmente desconhecido. Não os havia na família que pelos ditames de minha Avó só considerava três profissões: médico, engenheiro e advogado (nesta ordem). E veio o primeiro filho.  A cada um deles (foram três) uma enorme mudança. Em meio disto a Matemática. O encanto por Évariste Galois e pela teoria dos conjuntos. Vai daí que descambei na Análise de Sistemas enveredando pela recente, naquela época, informática (coisa misteriosa e reservada a uns poucos iniciados). Põe mudança nisto.
Foi quando um raio caiu causando destruição e dor. Disto não quero falar por que a dor tá lá, e vai ficar sempre. A tanta mudança se juntaram outros casamentos. O último, e definitivo, terminado por aquela que nos aguarda a todos, numa falseta. Pouco antes as netas me deram a sensação de prosseguimento de vida. De eternidade. Um dia as netas que delas virão trarão em si qualquer coisa minha. Sei lá eu o que. Vai ver uma delas, sem nem saber por que, herdará meu lado clumsy não tendo a menor idéia de onde veio. São três ao todo. Lindas e emocionando a avó que nelas se vê. Não muito, mas um pouco. Pedacinhos mínimos em cada uma delas.
E foi assim que aportei aqui. Na casa dos oitenta. Coisa estranha as pessoas acharem que isto é qualquer coisa de espantoso. Não é. É apenas outra mudança. Como foi a de eu passar a ter gatos depois de uma vida povoada de cães (boxers) e cavalos! Bicho pra lá de estranho esse. Pandareco, o gato, neste momento me olha, com evidente censura, por cima do monitor e é meu companheiro, nada fiel, de dias e noites.  Espero que outras mudanças venham. Na verdade sei que virão, inexoravelmente, até a maior delas. Mas não se trata de um feito inédito ou raro e muito menos se deve a artes minhas. Acreditem aqueles que me olham tão estranhamente surpresos: são apenas oitenta e três anos, um atrás do outro!
2013


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