sexta-feira, outubro 11, 2013

AINDA UMA BABEL

Vez por outra ocorre um curto circuito no entender o que me falam. E me fica a sensação de que talvez isto também aconteça com meus interlocutores. Não deveria ser assim, mas é. Vai ver isto ocorre porque palavras, dependendo de como são ditas, por quem e em que circunstâncias, adquirem significados diferentes. Afinal, palavras são apenas símbolos, não é? Exemplo disto tive eu recentemente no espantoso relato a mim feito por uma jovem senhora.

Tudo começou quando o marido tendo esquecido o celular em casa, chegou atrasado para o jantar. A frase que deslanchou a catástrofe parecia inofensiva: “Tive um imprevisto” A tradução da ouvinte, no entanto foi: ele não disse qual foi o imprevisto. Não disse por que pensou que eu poria logo o jantar na mesa e não se falaria mais nisto. Há, há... ele não esperava que eu perguntasse. Ainda assim perguntou: E qual foi?” A resposta dele, foi razoável: “Furou um pneu do carro. Estou morto de fome!” Ela me contou que sorriu com doçura e falou: “Que chato né?” Mas pensou: que desculpa mais absurda. Pneu de carro troca-se em dez minutos. E ele está atrasado uma hora e quarenta e cinco minutos! E o que significa essa fome que apareceu assim sem mais nem menos, logo no dia em que esqueceu o celular? Ele nunca tem fome! Aí tem coisa! Ah se tem! E doce, prosseguiu: “Tá com fome por que, bem?” Foi ai que ele se irritou e respondeu atravessado que fome independe de motivo. E ela já certa da mentira, disfarça: “Por que a irritação, bem?” Pergunta feita, ao que me disse, num tom pra lá de carinhoso. Mas não foi assim escutado por que ele partiu para o ataque, num tom pra lá de grosseiro:

-  Qual é?! Ta falando com esta voz irônica por quê? Ficou louca? Logo hoje!
-  Logo hoje?! O que aconteceu hoje?  Confessa. Vai!
-  Confessar o quê, sua doida?
- Ela existe. Sua amante! Pensa que eu não sei?! Mulher não é como homem, não. Eu não sou, nem vou ser a última a saber, ouviu?!
- Não é a última, nem a primeira, minha cara. Você simplesmente não sabe! 
- Ah! Então você confessa que há alguma coisa que não sei. Pode me fazer o favor de dizer o quê?
- Posso! Você não sabe receber um marido cansado e louco pra jantar. 
-  E ela sabe, não é?! Você agora se traiu!

E ela cai num pranto convulso na certeza da existência da “outra”. Pensa em arrumar as malas. Mas a frase “vou para a casa de meus pais” não seria possível: é órfã. Ao se lembrar disto o choro recrudesce. Está só no mundo. O comentário do marido não ajuda em nada embora feito num tom até carinhoso: “que coisa ridícula esta choradeira, meu bem. Pára com isto, vamos jantar”. E ela ferida, muito ferida, responde: é ridículo, ser órfã, é? É uma crueldade você me dizer isto Ridículo é você que corre para mamãe e papai sempre que as coisas vão mal. A cena me foi contada por ela, portanto não sei qual foi a expressão do marido ao responder, mas acredito que fosse de puro espanto: Órfã?! Mas quem falou nisto? Além do mais você não é órfã. E seus tios que te criaram. São como pais pra você, sei lá desde quando? Ai foi demais o “sei lá desde quando” era uma referência clara, inegável, indiscutível, ao fato dela ser dois anos mais velha. Como é que ele foi capaz de  tamanha maldade. Nunca escondeu a idade. Ele sempre soube e quis casar assim mesmo. Vai! Diz que além de órfã, enganada e ridícula, sou velha! E o que mais eu sou? Fala, vai! Diz tudo que você nunca teve coragem de dizer. Vamos jogar as cartas na mesa. Acabaram-se as mentiras, as dissimulações, os enganos. Cansei! Foi esta a deixa para que ele saísse batendo a porta: Cansei, digo eu! Chega! Fui! E ela ficou entregue ao desespero. Em minutos, o casamento havia terminado. Também pudera, saber assim, sem aviso que ele tinha arrumado uma amante porque a achava velha, ridícula, burra. Vai ver a “outra” é bem mais moça. Uma adolescente, é isto!! É muita humilhação. Melhor mesmo não saber detalhes. O sofrimento seria muito maior ao constatar a radiosa mocidade da “pneu furado”.

O jeito é ir para a casa dos tios a quem, na verdade, chama de papai e mamãe. Mas não pode sair assim, sem levar o que é dela. O apartamento é dele, mas ela espera que ele tenha a decência de dar um tempo para que se organize e volte a trabalhar. Antes do amargo fim existem detalhes que vão ter que ser acertados. Neste momento ela se dá conta de que ele vai ter que voltar ainda naquela noite, nem que seja para buscar o celular, de novo esquecido, e a carteira que jogou em cima da mesa quando chegou. Sem dinheiro, sem cartão de crédito e sem celular não irá longe.

Ainda chora quando o interfone toca. É o porteiro: o borracheiro do posto veio aqui entregar os óculos que o doutor esqueceu lá. E ela, achando a vida bela, vai em direção à cozinha, sorrindo: Sem óculos também! Ele já deve estar chegando. Vou esquentar o jantar. Tadinho! Deve estar faminto.

2007

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