domingo, outubro 06, 2013

EFETIVA LIDERANÇA

Leio, divertida o texto do e-mail: “Por apenas R$ 40,00 você adquire em CD-ROM um completo Curso de Liderança, com ensinamentos dispostos de maneira didática e objetiva, para tornar-se um líder com excelência, aspecto de suma importância em sua vida profissional”. E me vem à memória a figura de Seu Xandinho, maior líder que já conheci e que, certamente, jamais pagou pelos ensinamentos desta arte mesmo porque, creio, teria melhor uso para R$ 40,00 que naquela época nem reais eram.

Corria o ano de 1966 e, pela primeira vez, o País empreendia a hercúlea tarefa de coletar dados para conhecer sua estrutura agrária. O conceito de “estabelecimento rural” utilizado pelo IBGE não descrevia esta estrutura já que voltado para produção agrícola sem qualquer conotação com a tenência da terra. Empreendeu-se então a realização do Cadastro de Imóveis Rurais. Dura tarefa: os detentores de terra, a qualquer título, teriam que responder a um longo questionário sobre suas posses ou propriedades. Isto em todo Brasil!

Sabíamos que a resistência, por motivos diversos e até conflitantes, seria enorme entre os grandes e pequenos proprietários e os posseiros. Vai daí passamos a viajar para os mais longínquos municípios com o difícil encargo de explicar e convencer a todos para que preenchessem os formulários e aos prefeitos para que instalassem uma Unidade Municipal de Cadastramento.

Logo nos primeiros Municípios percebemos que se não tivéssemos a ajuda do líder local esta tarefa jamais teria êxito. A identificação deste líder nos levou a uma espantosa constatação: nem sempre era o Prefeito. Aliás, quase nunca era. Horas intermináveis de tentativas de convencimento de padres, padeiros, farmacêuticos e até uma mãe de santo, nos estavam levando à exaustão na subida da ainda não terminada Belém-Brasília Um pequeno parêntese para esclarecer uma dúvida: já terminou?

Foi então que nestas lonjuras, surgiu Seu Xandinho. Havíamos sido informados de que se conseguíssemos sua adesão o sucesso seria total. A aparência era de uns 70 anos. Enrugado e calado apenas ouvia. E nos deixou desorientados quando declarou lacônico que faria uma reunião na pequena capela do povoado. Contra ou a favor?! Impossível saber. Tentamos em vão obter uma pista e tudo que recebemos como resposta, num tom de reprimenda, foi: vocês na hora vai vê!

Apreensivos, tomamos a palavra na reunião tentando explicar o propósito, as vantagens, e a necessidade do preenchimento do formulário e da instalação da UMC (Unidade Municipal de Cadastramento) na pequena cidade e abrimos para perguntas. Silêncio total: até o Prefeito dirigia o olhar para Seu Xandinho que, pitando seu cigarrinho de palha, olhava para o chão como que desinteressado da participação.

O silêncio, desagradável e constrangedor, prolongava-se e eu aflita levantei-me disposta a conseguir alguma reação da platéia. Fui impedida de dizer a primeira palavra pela voz severa de seu Xandinho: a moça já falou. Agora fala mais não. A moça (eu), nos seus trinta e seis anos, engolindo seus arrogantes e técnicos argumentos, botou a viola no saco e calou-se, sob o olhar divertido dos demais técnicos da equipe. E seu Xandinho, sentado como estava, dirigiu-se à platéia.

A tradução que fez de nossos argumentos era extraordinária. Ele havia entendido perfeitamente a finalidade do Cadastro e a urgência de serem tornados disponíveis os dados que permitiriam obter as informações necessárias à realização de uma Reforma Agrária. Percebia também com clareza a reação de resistência por parte dos grandes proprietários e de desconfiança por parte dos posseiros e, mais que isto, tinha claro o conceito do que era Reforma Agrária, o que até hoje nas "cultas" cidades não é comum! Ele falava manso nos designando como “eles” como se ali não estivéssemos presentes. Este “eles” nem sempre era acompanhado de adjetivos e predicados agradáveis: eles não é daqui, não conhece nós e tem lá o trabalho deles para fazê.

Embora ao pé da letra isto fosse verdade, soava como uma enorme censura. O desconforto era cada vez maior. Terminada a explicação nada ortodoxa das finalidades e razões do cadastramento seu Xandinho faz uma pausa como que autorizando a pergunta que veio de um figurante na platéia (provavelmente um sub-lider): e ai Xandinho, nos faz o que?

Um sorriso surgiu nos lábios de seu Xandinho. Um sorriso maroto, mas também ameaçador! Tão ameaçador quanto as palavras que seguiram: nós vai responder este papel e nós vai cobrar deles tudinho dessa tal de Reforma Agrária que eu achei que nós carece. E, para nós num seco tom de comando: vocês pode ir agora!

Obedecemos e, meses depois, conferimos a freqüência de preenchimento dos formulários pelos liderados de Seu Xandinho. Espantosa: um dos maiores índices obtidos. Lá vão quase cinquenta anos e Seu Xandinho não mais está entre nós. Mas certamente cobrou, pelo tempo que viveu, esta Reforma que desgraçadamente nunca se fez. Por isto culpada, mesmo sem ser, peço desculpas a ele e a seus liderados. E os felicito por terem tido como líder este extraordinário personagem que nunca freqüentou um curso “receita de bolo”. Como tantos que hoje conhecemos.

    2012 

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