Leio, divertida o texto do e-mail: “Por
apenas R$ 40,00 você adquire em CD-ROM um completo Curso de Liderança, com
ensinamentos dispostos de maneira didática e objetiva, para tornar-se um líder
com excelência, aspecto de suma importância em sua vida profissional”. E me vem à memória a figura de Seu
Xandinho, maior líder que já conheci e que, certamente, jamais pagou pelos
ensinamentos desta arte mesmo porque, creio, teria melhor uso para R$ 40,00 que
naquela época nem reais eram.
Corria o ano de 1966 e, pela primeira vez, o
País empreendia a hercúlea tarefa de coletar dados para conhecer sua estrutura
agrária. O conceito de “estabelecimento rural” utilizado pelo IBGE não
descrevia esta estrutura já que voltado para produção agrícola sem qualquer conotação
com a tenência da terra. Empreendeu-se então a realização do Cadastro de
Imóveis Rurais. Dura tarefa: os detentores de terra, a qualquer título, teriam
que responder a um longo questionário sobre suas posses ou propriedades. Isto
em todo Brasil!
Sabíamos que a resistência, por motivos
diversos e até conflitantes, seria enorme entre os grandes e pequenos proprietários
e os posseiros. Vai daí passamos a viajar para os mais longínquos municípios
com o difícil encargo de explicar e convencer a todos para que preenchessem os
formulários e aos prefeitos para que instalassem uma Unidade Municipal de
Cadastramento.
Logo nos primeiros Municípios percebemos que
se não tivéssemos a ajuda do líder local esta tarefa jamais teria êxito. A
identificação deste líder nos levou a uma espantosa constatação: nem sempre era
o Prefeito. Aliás, quase nunca era. Horas intermináveis de tentativas de
convencimento de padres, padeiros, farmacêuticos e até uma mãe de santo, nos
estavam levando à exaustão na subida da ainda não terminada Belém-Brasília Um
pequeno parêntese para esclarecer uma dúvida: já terminou?
Foi então que nestas lonjuras, surgiu Seu
Xandinho. Havíamos sido informados de que se conseguíssemos sua adesão o
sucesso seria total. A aparência era de uns 70 anos. Enrugado e calado apenas
ouvia. E nos deixou desorientados quando declarou lacônico que faria uma
reunião na pequena capela do povoado. Contra ou a favor?! Impossível saber.
Tentamos em vão obter uma pista e tudo que recebemos como resposta, num tom de
reprimenda, foi: vocês na hora vai vê!
Apreensivos, tomamos a palavra na reunião
tentando explicar o propósito, as vantagens, e a necessidade do preenchimento
do formulário e da instalação da UMC (Unidade Municipal de Cadastramento) na
pequena cidade e abrimos para perguntas. Silêncio total: até o Prefeito dirigia
o olhar para Seu Xandinho que, pitando seu cigarrinho de palha, olhava para o
chão como que desinteressado da participação.
O silêncio, desagradável e constrangedor,
prolongava-se e eu aflita levantei-me disposta a conseguir alguma reação da
platéia. Fui impedida de dizer a primeira palavra pela voz severa de seu
Xandinho: a moça já falou. Agora fala
mais não. A moça (eu), nos seus trinta e seis anos, engolindo seus
arrogantes e técnicos argumentos, botou a viola no saco e calou-se, sob o olhar
divertido dos demais técnicos da equipe. E seu Xandinho, sentado como estava,
dirigiu-se à platéia.
A tradução que fez de nossos argumentos era
extraordinária. Ele havia entendido perfeitamente a finalidade do Cadastro e a
urgência de serem tornados disponíveis os dados que permitiriam obter as
informações necessárias à realização de uma Reforma Agrária. Percebia também
com clareza a reação de resistência por parte dos grandes proprietários e de
desconfiança por parte dos posseiros e, mais que isto, tinha claro o conceito do que era Reforma Agrária, o que até hoje nas "cultas" cidades não é comum! Ele falava manso nos designando como
“eles” como se ali não estivéssemos presentes. Este “eles” nem sempre era
acompanhado de adjetivos e predicados agradáveis: eles não é daqui, não conhece nós e tem lá o trabalho deles para fazê.
Embora ao pé da letra isto fosse verdade,
soava como uma enorme censura. O desconforto era cada vez maior. Terminada a
explicação nada ortodoxa das finalidades e razões do cadastramento seu Xandinho
faz uma pausa como que autorizando a pergunta que veio de um figurante na
platéia (provavelmente um sub-lider): e
ai Xandinho, nos faz o que?
Um sorriso surgiu nos lábios de seu Xandinho.
Um sorriso maroto, mas também ameaçador! Tão ameaçador quanto as palavras que
seguiram: nós vai responder este papel e
nós vai cobrar deles tudinho dessa tal de Reforma Agrária que eu achei que nós
carece. E, para nós num seco tom de comando: vocês pode ir agora!
Obedecemos e, meses depois, conferimos a
freqüência de preenchimento dos formulários pelos liderados de Seu Xandinho.
Espantosa: um dos maiores índices obtidos. Lá vão quase cinquenta anos e Seu
Xandinho não mais está entre nós. Mas certamente cobrou, pelo tempo que viveu,
esta Reforma que desgraçadamente nunca se fez. Por isto culpada, mesmo sem ser,
peço desculpas a ele e a seus liderados. E os felicito por terem tido como
líder este extraordinário personagem que nunca freqüentou um curso “receita de
bolo”. Como tantos que hoje conhecemos.
2012
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