Em pleno século 21, leio na Folha de São Paulo, numa pesquisa
feita pela Fundação Perseu Abramo, que 58% dos brasileiros consideram
homossexualidade um pecado e 29% a consideram uma doença! Eu tinha dez anos e ainda
me lembro do espanto que fiquei diante da pergunta feita por papai a mim: por que você gosta de abiu? Ele sempre
pronto a me esclarecer sobre qualquer dúvida estava respondendo a uma pergunta
minha com outra, sem pé nem cabeça.
Eu adorava acompanhar a conversa dos adultos durante as
refeições. Era tudo incrivelmente fascinante e eu ansiava pelo dia em que
também seria capaz falar como eles. Nem sempre entendia o que diziam e isto me
obrigava a pedir esclarecimentos a Papai. Em segredo, é claro, para que não se
dessem conta de minha ignorância. Naquele dia não foi diferente. Falavam sobre
um homem que eu não conhecia quando um tio referiu-se a esta pessoa como
“efeminado”. Eu nunca havia escutado a palavra muito menos sabia o sentido.
Terminado o almoço corri para papai: o que é efeminado? E foi ai que, absurdamente, ele me perguntou: por que você gosta de abiu? Lembro-me
que apenas disse um sei lá. Porque gosto,
ora! Mas o que eu quero saber é... E ele me cortou: eu sei o que você quer saber e o seu gostar tanto de abiu tem tudo a
ver com isto. Não existe outro jeito de contar esta história sem reproduzir
o diálogo, ainda intacto em minha memória:
- Você nasceu com alguma coisa dentro
que faz você gostar de abiu. Outras pessoas não. Diga lá: todo mundo gosta de
abiu?
- Tem gente que não. Lá no Rio
(estávamos no sítio, em Miguel Pereira) tem gente que nem sabe que existe. Você
mesmo não gosta!
- Pois é. Não são todas as pessoas que
conhecem e gostam de abiu. Será que isso é errado ou faz você uma pessoa
diferente porque gosta?
- Que maluquice é essa, Papai! Mas tem
uma amiga me acha diferente porque eu não gosto de maçã. A Gerusa!
- E você se acha diferente?
- Sei não! Todo mundo gosta de maçã.
Vai ver eu sou diferente, né?
- E é mesmo, mas não errada. Efeminado
é um homem diferente que nasce gostando de namorar homens ao invés de mulheres.
Existem também mulheres que nascem gostando de mulheres ao invés de gostar de
homens. Do mesmo modo que você gosta de abiu e não gosta de maçã.
- Mas isto é mais esquisito que não
gostar de maçã, Papai!
- Aprenda a usar as palavras certas,
mocinha! Já expliquei a você que o sentido das palavras é muito importante. Não
é esquisito, coisa nenhuma. Só não é comum a todos.
- E por que eu nunca vi um homem assim?
Nem mulher.
- Pensa você. Claro que já viu. Mas
eles ou elas não gostam muito de mostrar isto porque tem gente que acha
esquisito, como você mesma falou agora, viu? Ninguém gosta que os outros digam
que são esquisitos, mesmo quando não são, você não acha?
- Não acho, não. Eu tô pouco ligando se
a Gerusa achar que eu sou esquisita porque não gosto de maçã.
- Ah! Ai é que está o problema. Maçã
não é ligada a sexo, minha filha. Lembra que já expliquei isto a você? A
maioria das pessoas mete os pés pelas mãos quando falam de sexo. Acham um
assunto complicado, proibido, mas você já sabe que não é.
- Ah, sei! Você já falou que sexo é sério, bonito e importante pra gente. Não é pra fazer gracinhas. Você disse que eu conheço gente efeminado. Quem é?
- Conhece e gosta muito: Oscar Wilde.
Você adorou ler O Príncipe Feliz. É lindo não é? E tem aquela amiga de Papai
que deu a você a sela francesa que ela usava quando montava. Ela é casada com
aquela moça que vem sempre aqui com ela. E são muito felizes há anos. E muitos outros,
mas não importa. O importante é se um dia você souber que alguma pessoa é assim,
trata de não fazer gracinhas, como você disse, tá? Acho que “gracinha” não deve
ter sido a palavra que eu usei quando conversamos. Mas o sentido é este
mesmo. Mas nós vamos conversar ainda muito sobre estas pessoas. E tem uma
coisa, filha, mais importante ainda: todo mundo é diferente! Se fossemos todos
iguais esta vida seria um horror.
Isto se
passou há exatamente há mais de 70 anos! Pelas conversas esclarecedoras que se
seguiram, aspectos históricos, científicos, morais, culturais, éticos e
religiosos foram adaptados aos meus ouvidos de criança. E me vi livre do
preconceito. Mas não do preconceito dirigido a mim. Fui na infância e
adolescência várias vezes marginalizada por “saber e falar o que não devia”.
Com tristeza, percebo que a pergunta que por vezes me fazem (como é que uma
senhora de sua idade pode pensar assim?) poderia ser formulada por 58% dos
brasileiros! É espantoso e triste perceber que o extraordinário avanço da filosofia,
da ciência e da tecnologia que ocorreu nestes mais de 70 anos, em nada
contribuiu para tornar o homem mais esclarecido, não é? Caramba!
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