Barney
Kessel me emociona nesta mais uma tarde. Faz tempo, muito tempo mesmo que o
ouvi pela primeira vez desde ai sempre no sonho impossível de tornar meu violão
pelo menos parecido. Todas as vezes que
escuto, descubro algo novo, nuance antes não percebida. Hoje, em meio à
extraordinária execução em ré de Love is
Here to Stay, descubro uma nota “blue” que nunca havia percebido,
enriquecendo a harmonia. Os apaixonados por jazz e blues sabem do que estou
falando. Para os demais é importante que eu esclareça o que é esta nota.
A
“blue note” surgiu de uma briga entre as escalas pentatônica africana e a
diatônica européia. Os catadores de algodão de origem africana cantavam nos
campos usavam a escala pentatônica. É claro que cantavam sem o acompanhamento
de instrumentos. Mas eis que esta cantoria começa a chamar atenção de músicos profissionais
que com os instrumentos fabricados na Europa e, portanto, apropriados para
executar a escala diatônica, tentaram em vão reproduzi-las. Empacaram no
conflito entre as duas escalas. Para superar o problema os músicos
Afro-americanos introduziram na escala diatônica a “blue note” que, fora da
escala, traz um inesperado colorido à musica.
E
eu me pego pensando meus amigos são “blue notes”! Inesperadas pessoas que fora
da escala me trazem o encanto e a harmonia da vida. Não são muitos, não. Nem
poderiam ser por que são raros, especiais, caros. E o que é raro, especial e
caro, é escasso. Não vou nomeá-los. Eles sabem quem são e vocês não teriam
deles a mais pálida descrição só lhes conhecendo o nome. Impossível
descrevê-los em grupo. São tão diferentes. Profissões, maneiras de ser, formas
de encarar a vida as mais variadas e até discordantes. O que menos me chama
atenção em cada um deles é o aspecto físico embora eu os veja belos. Das mais
variadas idades distribuem-se nas dezenas que vão dos 50 aos 80. Existe
um ponto fora da curva: Ricardinho de quem já falei a vocês. Deve estar agora
com 12 anos. Este nunca mais vi. Mas era
amigo de fé.
Do
que mais me lembro quando ausentes, é da voz. O jeito que dizem meu nome na
surpresa gostosa da frase: vou dar uma
passadinha aí ou dá uma passadinha aqui. De passadinha em passadinha, lá e cá, construímos um mundo
nosso onde conversas rolam, onde apoios são dados gratuitamente, onde
discordâncias e alertas são feitos, onde dizer “não” é permitido a todos sem
mágoas ou recriminações. Mas criticas existem. Por que não?
O
mais recente surgiu a cerca de quinze anos atrás. O mais antigo há mais de
quarenta. E todos sabem de mim, como sei deles, mesmo quando distantes (para
minha enorme saudade dois se bandearam para longe e lá ficaram). Saber da gente
é muito importante: só assim o que dizemos, seja o que for, é entendido em seu
real sentido. O subtexto é claro entre nós. Fica fácil conversar assim, não é? E
o silêncio, quando existe, não é aflitivo nem desconcertante. Não há a menor
necessidade de explicações, traduções, esclarecimentos. Como isto é
confortável!
Mesmo
quando discordamos, e isto é freqüente, a coisa fica gostosa. E não são carpideiras, não, os meus amigos.
Se a coisa vai bem se alegram comigo e se vai mal me tiram do buraco, até com
violência. E, sobretudo me fazem rir. O que é ótimo. A vida me concedeu muitos
privilégios. Sem dúvida ter estes amigos é um dos maiores.
Morreram
de rir do meu medo de fazer uma biópsia por causa da agulha (tenho medo delas)
e nada fizeram para diminuí-lo. Ao contrario vaticinaram momentos terríveis.
Incrivelmente isto ajudou a colocar a coisa em sua devida proporção. Este
comportamento não é intencional ou proposital. É natural. E isto é que é bom. Como uma cascata de “blue notes” soam. Esquentam o coração e criando harmonia. Não
agradeço, não. Mesmo porque sou assim para eles também. Transitamos numa rua
duas mãos. Às vezes o transito é maior num sentido e todos corremos para lá. De
repente inverte e, até hoje, ninguém se desorientou ou perdeu o rumo.
Competentes que somos sempre chegamos a bom porto. Talvez nem sempre
inteiramente sãos e salvos, já que arranhões da vida são de lei. Mas o estoque
de band-aids de que dispomos é espantoso. Jamais faltaram. E assim vivendo encantados e protegidos pela harmonia que criamos. Ah! Barney Kessel, desta você teria
inveja!
2010
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