sábado, outubro 26, 2013

FILA DOS IDOSOS III

Desoladamente, desço a Rua Voluntária da Pátria demandando a agência do BANERJ. Hoje é o IPTU de um terreno que tenho em Miguel Pereira. Só pode pagar lá. Para piorar, fecharam a agência do Humaitá.  A Voluntários, na altura de D. Mariana, é um perto-longe. Não tem sentido tomar ônibus, táxi ou pedir uma carona à minha filha. O jeito é ir a pé, sol a pino, aproveitando para resolver pendências, no caminho: a pilha do telefone sem fio, a tomada do abajur da cabeceira, a borracha da fazedora de café italiana, que em vão procuro, aquele botão que caiu e nunca será encontrado deixando aquele buraco entre os demais que teimam a se agarrar à blusa azul, o cartucho de tinta da impressora e outros itens daquela lista que organizo com perfeição e que jamais se esgota. As soluções insistem em ser sempre em menor quantidade que os acréscimos.

Mais eis que chego ao BANERJ e, passada a porta giratória, empenho-me na execução da operação que desenvolvi com perfeição desde os benditos 60 anos que me valeram o privilégio, entre outros nem tanto, da “fila dos idosos”. Passo 1: peço à última ou ao último colocado dos idosos que me guarde o lugar; passo 2: memorizo os traços dele ou dela; passo 3, repito os passos 1 e 2 na fila dos não idosos; garantidas as colocações nas duas filas, inicio o passo 4: percorro a fila dos idosos contando as pessoas, até a boca do caixa; passo 5: verifico quantos caixas estão atendendo esta fila; passo 6: divido a quantidade de pessoas pela quantidade de caixas e encontro o resultado “x”  (só executado quanto há mais de um caixa, o que é raríssimo); passo 7: repito os passos 4 a 6 para a fila dos não idosos e encontro o resultado “y”; passo 8: comparo o resultado “x” com o resultado “y”; passo 9: opto pela fila que probabilisticamente andará mais depressa. Quase sempre há um empate o que faz com que sempre duvide da eficácia do método.

Neste dia, no entanto, a fila dos idosos evidencia uma sensível vantagem sobre a outra. Volto à pessoa que era a última da fila não idosa (que, evidentemente, não é mais última), agradeço e dispenso a guarda do lugar. Sabe-se Deus por que, parto numa carreira desabalada para ocupar meu lugar na fila vencedora. O senhor empertigado e sério que me guardou o lugar está ainda no mesmo lugar.

Agradeço sorrindo. O senhor, solene, fala num leve tom de censura: eu sei o que a senhora fez e posso lhe garantir, minha senhora, não adianta! e termina num tom definitivo: pelos meus cálculos, qualquer que seja a fila, vamos ficar aqui uma hora e meia. Sufoco a curiosidade de perguntar como é o sistema de cálculo dele. Um tanto irritada afirmo: não creio. Existem 16 pessoas na minha frente. Numa média de 3 minutos por pessoa vai dar cerca de 48 minutos. Com uma margem de segurança para os que demoram um pouco mais vai dar, no máximo, uma hora. Um sorriso irônico surge no rosto do senhor: a média vai ser, no mínimo, de 6 minutos, e continua com um ar de desdém, a maioria tem contas a pagar. A senhora não considerou este dado no cálculo da sua média

Furiosa e num arroubo juvenil (e imbecil), pergunto: quer apostar? A resposta vem com escândalo: claro que não! O “claro que não” soa como um insulto. Velho cretino! Deve ser um chato em casa. Vai ver inferniza a vida de todo mundo. Ufa! A senhora gorda que estava no caixa está se mandando. Discretamente, para que o desagradável vizinho não perceba, consulto o relógio para marcar o tempo da senhora magra que avança ávida para a portinhola, bramindo ameaçadora um calhamaço de papeis. Raios! Ela vai pagar contas. Tem um carnê de INSS. Deus! Faça com que não tenha que ser calculada multa! Esquecida do velho observo hipnotizada o ponteiro dos segundos que roda inexorável contrapondo-se à imobilidade das costas da velha magra, em frente ao caixa. 

A voz do velho vem carregada de ironia: ela já está lá ha 4 minutos. Vai ficar mais de cinco. Até agora só recebeu dois comprovantes autenticados e tem no mínimo umas cinco contas na mão. Isto se não for pedir saldo e retirar dinheiro. Acredite, minha senhora, de uma hora e meia a duas horas! Vai dar o que eu afirmei – e num riso mau – ou mais! Finjo não ouvir.

Finalmente as esquálidas costas abandonam o caixa. Agora é a vez dos cabelos de um amarelo duvidoso, um capacete de laquê! Ainda se usa isso, gente?! Vitória! Fica apenas um minuto. Intrépidas e másculas avançam as calças jeans de um velho esportivo que dando uma pirueta, num tempo recorde e num andar lépido, passam, céleres, demandando a saída, enquanto lentos chinelos avançam para o caixa. Coitada, deve ser joanete. Diz que dói pra burro. Numa rapidez incrível a mulher avança. É... não são joanetes. É desleixo mesmo! Os chinelos somem na porta giratória.

Não me contenho e cutuco as costas do velho. Falo num tom de desafio: foram três em menos de cinco minutos. Seis minutos daquela primeira e mais quatro minutos dos três últimos, dá dez minutos que divididos por 4 dá... (quase grita) dois minutos e meio!  E agora só faltam 12. Mantenho minha média! Vamos ficar aqui mais 36 minutos que somados aos 10 que já passaram dá 46 que é, praticamente, o que eu calculei! Seis minutos é um desvio desprezível, estatisticamente. O velho aponta para o caixa um dedo acusador, carregado de péssimas intenções, que se faz acompanhar de um arfar rouco, macabro. Uma senhora avança amparada por uma acompanhante que tem nas mãos uma mixórdia de papeis de todos os feitios e tamanhos. Agora, minha senhora, sua média, vai para o beleléu! Esse cretino falou beleléu! Não tem nada a ver com ele esta palavra. Este personagem jamais diria isto! É inverossímil! Decido: este homem não existe!

Ostensivamente, com grosseria, volto às costas ao velho e à fila e puxo conversa com a senhora portuguesa que, atrás de mim, parece tão simpática e otimista. A senhora sorri com bondade: está demorando, pois não? Acho que vamos cá ficar mais de uma hora! Humilhada e vencida, concordo: e pois

2004

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