domingo, outubro 13, 2013

PALPITE INFELIZ

A jovem analista respirou fundo e disparou, num tom professoral e pretensioso: manda a melhor técnica... Ela precisava se agarrar em alguma coisa e técnica até que fornece um bom respaldo, quando outros não estão à mão. E, era evidente, não dispunha de outro socorro: arrogante e insegura precisava marcar o território.

Sempre que escuto esta frase, faço uma tradução para: “manda o melhor martelo, manda o melhor serrote ou manda o melhor abridor de latas”. Porque como o martelo, o serrote e o abridor, técnica é um instrumento. Pra lá de útil, é claro. Deve-se conhecê-la e muito... até para poder desrespeitá-la criando soluções adequadas, não escritas em um manual, para atender ao que há de humano nos sistemas. E, acreditem, o humano está lá, sempre presente, e é aí que a técnica às vezes resvala. O humano é, por vezes, imprevisível e (deliciosamente) fora de esquadro.

Era o ano de 2005 e eu estava me despedindo após sete anos de consultoria ao projeto. Havia resolvido ”pedir as contas” e me mandar, entre outras razões por não concordar com a admissão da jovem, reprovada que havia sido pelos critérios estabelecidos, mas respaldada por razões políticas aliadas, infelizmente a outras de alcova! Trabalhar com jovens sempre havia sido um prazer. Mas a arrogância, naquele caso, anulava esta condição tão bem vinda e necessária em qualquer instituição. A moça, entrada pela janela (e pela cama), estava assumindo, a coordenação dos sistemas. Os primeiros contatos revelaram a pessoa mal educada e, sobretudo e muito mais grave, mal aprendida.

Vai daí que saiu-se com a maldita frase: manda a melhor técnica... Maldita, porque perigosa, pela presença do verbo “mandar” e pelo sujeito que pretende ser responsável por esta ação. Técnica é um belo instrumento, como o é um bisturi utilizado por cirurgiões que sabem (ou deveriam saber) que não existem doenças e sim, doentes. Não existem sistemas, projetos ou planos prontos. São criados para usuários, pessoas humanas, ou para uma instituição que é gerida e habitada por pessoas humanas. Cada um é um. E, desgraçadamente, a técnica nunca diz exatamente – e muito menos manda – tudo o que se deve fazer ou como fazer. Quase sempre, minha gente, sistemas, planos e projetos são peças artesanais.

Lembro-me que levei anos até descobrir a pergunta milionária que provocaria a resposta correta, na fase de levantamento. Eu dava com os burros n’água orientada pela técnica de entrevistas: qual o objetivo deste sistema que você quer e outros que tais, sempre provocavam um relato “técnico” onde a pessoa partia para uma solução já imaginada, sem me dar pistas do real problema.  Um dia, sabe-se lá porque, perguntei: o que foi que aconteceu que fez você perceber que precisava deste novo sistema? Fascinada, ouvi o relato claro do problema. Nele os fatos “técnicos” se misturavam aos sentimentos humanos: frustrações, impossibilidades, medo de errar, incertezas e que mais sei eu. O problema e suas causas me foram mostrados em carne viva. A solução e o tratamento, a mim caberiam e seriam possíveis a partir dali. Para diagnóstico me haviam sido dados todos os elementos. A técnica poderia entrar em cena e nela eu iria garimpar o que me serviria e, sobretudo serviria a quem me pedia solução.

Pouco depois desta descoberta um estagiário procurou-me para relatar a uma entrevista sua com um cliente. Às folhas tantas deixou escapar a “melhor técnica”, embora mais atilado não tenha utilizado o verbo mandar. Isto foi o início de uma conversa de horas em que relatei, e discutimos, a “não técnica”. Aquele rapaz, bem diferente daquela outra jovem, sabia ouvir e, porque ouvia, elaborava em cima para então falar. Pela ousadia da juventude, sempre bem vinda e reveladora de outros caminhos, ao se dar conta do que eu dizia, acrescentou ao que eu havia aprendido e eu passei a aprender com ele. Lembro-me que fui rindo para casa com a frase que me disse, quando já se fazia noite e nós nem havíamos percebido: foi bom pra você também? Tenho saudades dele, hoje um brilhante analista sênior. Dele e de uma centena de outros dos quais me ficaram gravados os olhos brilhantes, a alegria, o entusiasmo, a inteligência, o valor.
 
Sinto-me um tanto culpada. Eu deveria ter dedicado algum tempo àquela esta moça. Não o fiz e, ao invés disto, peço emprestado a Noel Rosa, o título desta crônica. Pareceu-me inútil tentar esclarecê-la. A arrogância impedia a assimilação do que quer que fosse. Era o “rempli de soi même” total.

Não sei se entre os que me leem existem jovens profissionais iniciando uma carreira. Mas se existir pelo menos um, a este peço encarecidamente: faça com que a técnica fique a seu serviço; nunca se ponha a serviço dela. E, sobretudo, pense, reflita, discuta, duvide, mande, diga. Não deixe a técnica faça isto por você. Se forem suas, estas ações certamente vão resolver o que há de humano, embutido no plano, projeto ou sistema. Ao contrario do que a jovem analista me declarou “tecnicamente”, um banco de dados não armazena “registros”, mas sim pessoas. Uma parte da vida dessas pessoas está lá. E as pessoas e a vida lá delas merecem o respeito de sua inteligência e de sua cultura. 

2005

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