A
jovem analista respirou fundo e disparou, num tom professoral e pretensioso: manda a melhor técnica... Ela precisava
se agarrar em alguma coisa e técnica até que fornece um bom respaldo, quando
outros não estão à mão. E, era evidente, não dispunha de outro socorro:
arrogante e insegura precisava marcar o território.
Sempre
que escuto esta frase, faço uma tradução para: “manda o melhor martelo, manda o
melhor serrote ou manda o melhor abridor de latas”. Porque como o martelo, o
serrote e o abridor, técnica é um instrumento. Pra lá de útil, é claro. Deve-se
conhecê-la e muito... até para poder desrespeitá-la criando soluções adequadas,
não escritas em um manual, para atender ao que há de humano nos sistemas. E,
acreditem, o humano está lá, sempre presente, e é aí que a técnica às vezes
resvala. O humano é, por vezes, imprevisível e (deliciosamente) fora de esquadro.
Era
o ano de 2005 e eu estava me despedindo após sete anos de consultoria ao
projeto. Havia resolvido ”pedir as contas” e me mandar, entre outras razões por
não concordar com a admissão da jovem, reprovada que havia sido pelos critérios
estabelecidos, mas respaldada por razões políticas aliadas, infelizmente a
outras de alcova! Trabalhar com jovens sempre havia sido um prazer. Mas a
arrogância, naquele caso, anulava esta condição tão bem vinda e necessária em
qualquer instituição. A moça, entrada pela janela (e pela cama), estava
assumindo, a coordenação dos sistemas. Os primeiros contatos revelaram a pessoa
mal educada e, sobretudo e muito mais grave, mal aprendida.
Vai
daí que saiu-se com a maldita frase: manda
a melhor técnica... Maldita, porque perigosa, pela presença do verbo
“mandar” e pelo sujeito que pretende ser responsável por esta ação. Técnica é
um belo instrumento, como o é um bisturi utilizado por cirurgiões que sabem (ou
deveriam saber) que não existem doenças e sim, doentes. Não existem sistemas, projetos ou planos prontos. São criados
para usuários, pessoas humanas, ou para uma instituição que é gerida e
habitada por pessoas humanas. Cada um é um. E, desgraçadamente, a técnica nunca
diz exatamente – e muito menos manda – tudo o que se deve fazer ou como fazer. Quase sempre, minha gente, sistemas, planos e projetos são peças artesanais.
Lembro-me
que levei anos até descobrir a pergunta milionária que provocaria a resposta
correta, na fase de levantamento. Eu dava com os burros n’água orientada pela técnica
de entrevistas: qual o objetivo deste sistema que você quer e outros que tais,
sempre provocavam um relato “técnico” onde a pessoa partia para uma solução já
imaginada, sem me dar pistas do real problema.
Um dia, sabe-se lá porque, perguntei: o que foi que aconteceu que fez
você perceber que precisava deste novo sistema? Fascinada, ouvi o relato claro
do problema. Nele os fatos “técnicos” se misturavam aos sentimentos humanos:
frustrações, impossibilidades, medo de errar, incertezas e que mais sei eu. O
problema e suas causas me foram mostrados em carne viva. A solução e o
tratamento, a mim caberiam e seriam possíveis a partir dali. Para diagnóstico
me haviam sido dados todos os elementos. A técnica poderia entrar em cena e
nela eu iria garimpar o que me serviria e, sobretudo serviria a quem me pedia
solução.
Pouco
depois desta descoberta um estagiário procurou-me para relatar a uma entrevista
sua com um cliente. Às folhas tantas deixou escapar a “melhor técnica”, embora
mais atilado não tenha utilizado o verbo mandar. Isto foi o início de uma
conversa de horas em que relatei, e discutimos, a “não técnica”. Aquele rapaz,
bem diferente daquela outra jovem, sabia ouvir e, porque ouvia, elaborava em
cima para então falar. Pela ousadia da juventude, sempre bem vinda e reveladora
de outros caminhos, ao se dar conta do que eu dizia, acrescentou ao que eu
havia aprendido e eu passei a aprender com ele. Lembro-me que fui rindo para
casa com a frase que me disse, quando já se fazia noite e nós nem havíamos
percebido: foi bom pra você também? Tenho saudades dele, hoje um brilhante
analista sênior. Dele e de uma centena de outros dos quais me ficaram gravados
os olhos brilhantes, a alegria, o entusiasmo, a inteligência, o valor.
Sinto-me
um tanto culpada. Eu deveria ter dedicado algum tempo àquela esta moça. Não o
fiz e, ao invés disto, peço emprestado a Noel Rosa, o título desta crônica. Pareceu-me
inútil tentar esclarecê-la. A arrogância impedia a assimilação do que quer que
fosse. Era o “rempli de soi même” total.
Não
sei se entre os que me leem existem jovens profissionais iniciando uma carreira. Mas se existir pelo
menos um, a este peço encarecidamente: faça com que a técnica fique a seu
serviço; nunca se ponha a serviço dela. E, sobretudo, pense, reflita, discuta,
duvide, mande, diga. Não deixe a técnica faça isto por você. Se forem suas,
estas ações certamente vão resolver o que há de humano, embutido no plano, projeto ou sistema. Ao contrario do que a jovem analista me declarou “tecnicamente”, um
banco de dados não armazena “registros”, mas sim pessoas. Uma parte da vida
dessas pessoas está lá. E as pessoas e a vida lá delas merecem o respeito de sua
inteligência e de sua cultura.
2005
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