Nos
idos de 1974 estávamos todos empenhados na implantação de um sistema de âmbito
nacional. E, como sempre acontecia quando a abrangência era esta, teria que ser
implantado nos diversos estados centralizadores da operação. Implantação é
atividade não aconselhável para um único analista. A Lei de Brook funciona
sempre e até que se obtenha sucesso total (estranhamente sempre obtido no prazo
previsto), são noites sem dormir, aflições, urgências e padeceres inimagináveis
que se tornam insuperáveis, se solitários. Vai daí que nove pares de analistas
deveriam se deslocar nas todas as direções da Rosa dos Ventos.
Tratava-se
de uma empresa democrática, embora a época em que isto se passava não o fosse.
A postura democrática exigia a realização de uma reunião para que os viajantes escolhessem seus pares e destinos. Isto sempre provocava discussões apaixonadas nas quais a
linguagem nem sempre primava pela elegância.
Na
véspera da tal reunião fui chamada pelo Chefe. Grave, ele declarou: você é a
única mulher. Surpreendi-me. Este fato nunca havido sido objeto de censura. A
frase que se seguiu evidenciou que, fosse o que fosse, não se tratava de um
agravo a minha condição feminina e nem
um repudio às minhas convicções feministas: o Gustavo estava numa situação
dificílima. Completamente sem dinheiro. Embora penalizada, dei tratos a bola
para estabelecer um link entre esta situação lamentável à minha recém percebida
condição de mulher. Não era crível que isto pudesse ser a causa de estar o
Gustavo – tão simpático e bom colega – sem um tostão. O cachorro quente que ele
me havia oferecido na véspera, dificilmente teria dilapidado sua fortuna.
Fiquei
aliviada com a explicação que veio logo a seguir: quando se formarem os pares,
por favor, nem pense em ir com Gustavo. Ele, não podendo compartilhar o quarto
de hotel com você, pagará uma diária mais cara e vai acabar não sobrando nada
do que vai receber para viagem. Repita comigo cem vezes: posso viajar com quem
quiser desde que não seja com o Gustavo. Entendeu bem? O “entendeu bem”, ao contrário do que possa
parecer, não era motivado por uma dificuldade minha em perceber o sentido de
tão clara recomendação. Devia-se ao histórico de inúmeras distrações e
trapalhadas que me acometem, relatadas em prosa e verso por toda empresa.
Obediente repeti (apenas uma vez, é claro, embora mentalmente o tenha feito
várias vezes até a bendita reunião): entendi! Posso ir com qualquer um que não
seja o Gustavo. Fica tranqüilo. A expressão do chefe não estava lá muito
tranquila, mas resignado ele resolveu entregar a Deus e à probabilidade: seria
improvável que entre dezessete homens eu, mesmo esquecida da recomendação, fosse
escolher o único que não devia ser escolhido.
No
dia seguinte armou-se a reunião: como sempre a confusão democrática se
estabeleceu iniciando pela formação das duplas. Todos se davam muito bem entre
si, mas existiam situações particulares que motivavam preferências e recusas:
um preferia a companhia de alguém que, como ele, era enlouquecido pelo
delicioso polvo que se comia naquele restaurante à beira da praia e que eu detestava; outro se
recusava a ir com alguém que fumasse (coisa que a maioria fazia); os que
roncavam eram rechaçados; a companhia dos casados fiéis (acreditem! Muitos
eram!) não era desejada pelos que programavam um bordejo, na madrugada, pelas
zonas menos comportadas das cidades e, aquele que tinha medo de avião, era
banido por todos porque era constrangedora a necessidade que tinha de ficar de
mãos dadas com o vizinho, na decolagem, além das Ave Maria, murmuradas durante
todo trajeto cujo texto ia ficando incompreensível dado o alto teor etílico
necessário para enfrentar o suplício do voo.
A
duração da discussão já estava ultrapassando o aceitável quando o chefe, numa
tentativa de formar pelo menos um par, declarou, apontando para mim: ela é a
única mulher. Esta declaração espantou a platéia, da mesma forma que me havia
espantado na véspera. Todos estavam perfeitamente cientes desta diferença de
gênero. Mas a esta afirmação, seguiu-se: por esta razão ela tem direito a
escolher com quem vai. O olhar do chefe atingiu-me significando: olha lá o que
você vai dizer. Retribui com um olhar de anjo significando: deixa comigo! Abri
um sorriso e disparei firme: posso ir com qualquer um desde que não seja com o
Gustavo!
Só
percebi o que havia dito pelo silêncio que se seguiu e pelo tom magoado do
Gustavo: mas por quê? O que foi que eu lhe fiz? Esquecida de que nunca é
aconselhável tentar melhorar uma gafe retornei, gentil, com o que me parecia o
argumento adequado e elucidativo: porque não posso dormir com você. Isto
claramente atestava a possibilidade de dormir com qualquer dos outros, além de
deixar claro que não considerava Gustavo digno de meus favores. Ele ficou
realmente arrasado. Não que houvesse um dia acalentado este desejo. Mas a
rejeição pública era, sem dúvida, humilhante.
Sem
outra saída, um furioso chefe foi obrigado a esclarecer o real motivo, fazendo
com que Gustavo se sentisse ainda pior do que eu o havia deixado. Mas antes que
isto fosse feito, no silêncio que se seguiu a minha infeliz declaração, ouviu-se
uma voz enfática e entusiasmada: oba! Dane-se o polvo! Vou com ela!
2005
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