quinta-feira, outubro 24, 2013

DANE-SE O POLVO!

Nos idos de 1974 estávamos todos empenhados na implantação de um sistema de âmbito nacional. E, como sempre acontecia quando a abrangência era esta, teria que ser implantado nos diversos estados centralizadores da operação. Implantação é atividade não aconselhável para um único analista. A Lei de Brook funciona sempre e até que se obtenha sucesso total (estranhamente sempre obtido no prazo previsto), são noites sem dormir, aflições, urgências e padeceres inimagináveis que se tornam insuperáveis, se solitários. Vai daí que nove pares de analistas deveriam se deslocar nas todas as direções da Rosa dos Ventos.

Tratava-se de uma empresa democrática, embora a época em que isto se passava não o fosse. A postura democrática exigia a realização de uma reunião para que os viajantes escolhessem seus pares e destinos. Isto sempre provocava discussões apaixonadas nas quais a linguagem nem sempre primava pela elegância.

Na véspera da tal reunião fui chamada pelo Chefe. Grave, ele declarou: você é a única mulher. Surpreendi-me. Este fato nunca havido sido objeto de censura. A frase que se seguiu evidenciou que, fosse o que fosse, não se tratava de um agravo a minha  condição feminina e nem um repudio às minhas convicções feministas: o Gustavo estava numa situação dificílima. Completamente sem dinheiro. Embora penalizada, dei tratos a bola para estabelecer um link entre esta situação lamentável à minha recém percebida condição de mulher. Não era crível que isto pudesse ser a causa de estar o Gustavo – tão simpático e bom colega – sem um tostão. O cachorro quente que ele me havia oferecido na véspera, dificilmente teria dilapidado sua fortuna.

Fiquei aliviada com a explicação que veio logo a seguir: quando se formarem os pares, por favor, nem pense em ir com Gustavo. Ele, não podendo compartilhar o quarto de hotel com você, pagará uma diária mais cara e vai acabar não sobrando nada do que vai receber para viagem. Repita comigo cem vezes: posso viajar com quem quiser desde que não seja com o Gustavo. Entendeu bem?  O “entendeu bem”, ao contrário do que possa parecer, não era motivado por uma dificuldade minha em perceber o sentido de tão clara recomendação. Devia-se ao histórico de inúmeras distrações e trapalhadas que me acometem, relatadas em prosa e verso por toda empresa. Obediente repeti (apenas uma vez, é claro, embora mentalmente o tenha feito várias vezes até a bendita reunião): entendi! Posso ir com qualquer um que não seja o Gustavo. Fica tranqüilo. A expressão do chefe não estava lá muito tranquila, mas resignado ele resolveu entregar a Deus e à probabilidade: seria improvável que entre dezessete homens eu, mesmo esquecida da recomendação, fosse escolher o único que não devia ser escolhido.

No dia seguinte armou-se a reunião: como sempre a confusão democrática se estabeleceu iniciando pela formação das duplas. Todos se davam muito bem entre si, mas existiam situações particulares que motivavam preferências e recusas: um preferia a companhia de alguém que, como ele, era enlouquecido pelo delicioso polvo que se comia naquele restaurante à beira da praia e que eu detestava; outro se recusava a ir com alguém que fumasse (coisa que a maioria fazia); os que roncavam eram rechaçados; a companhia dos casados fiéis (acreditem! Muitos eram!) não era desejada pelos que programavam um bordejo, na madrugada, pelas zonas menos comportadas das cidades e, aquele que tinha medo de avião, era banido por todos porque era constrangedora a necessidade que tinha de ficar de mãos dadas com o vizinho, na decolagem, além das Ave Maria, murmuradas durante todo trajeto cujo texto ia ficando incompreensível dado o alto teor etílico necessário para enfrentar o suplício do voo.

A duração da discussão já estava ultrapassando o aceitável quando o chefe, numa tentativa de formar pelo menos um par, declarou, apontando para mim: ela é a única mulher. Esta declaração espantou a platéia, da mesma forma que me havia espantado na véspera. Todos estavam perfeitamente cientes desta diferença de gênero. Mas a esta afirmação, seguiu-se: por esta razão ela tem direito a escolher com quem vai. O olhar do chefe atingiu-me significando: olha lá o que você vai dizer. Retribui com um olhar de anjo significando: deixa comigo! Abri um sorriso e disparei firme: posso ir com qualquer um desde que não seja com o Gustavo!

Só percebi o que havia dito pelo silêncio que se seguiu e pelo tom magoado do Gustavo: mas por quê? O que foi que eu lhe fiz? Esquecida de que nunca é aconselhável tentar melhorar uma gafe retornei, gentil, com o que me parecia o argumento adequado e elucidativo: porque não posso dormir com você. Isto claramente atestava a possibilidade de dormir com qualquer dos outros, além de deixar claro que não considerava Gustavo digno de meus favores. Ele ficou realmente arrasado. Não que houvesse um dia acalentado este desejo. Mas a rejeição pública era, sem dúvida, humilhante.

Sem outra saída, um furioso chefe foi obrigado a esclarecer o real motivo, fazendo com que Gustavo se sentisse ainda pior do que eu o havia deixado. Mas antes que isto fosse feito, no silêncio que se seguiu a minha infeliz declaração, ouviu-se uma voz enfática e entusiasmada: oba! Dane-se o polvo! Vou com ela!

2005


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