quarta-feira, outubro 23, 2013

ACORDEMOS

Dizia-se “merci”... Seja honesta, Anna Maria: você ainda diz “merci”. Escapole no sem querer, revelando o que nunca me afligiu revelar: estou velha e só os velhos e os franceses, é claro, dizem assim. Minha mãe dizia “chauffeur”, ao invés de motorista; “restaurant” ao invés de restaurante; e Leblon, pronunciado por ela podia ser um bairro de Paris.

Os Estados Unidos não tinham vez, naquela pré-guerra. Mas a França!  No dia em que caiu subjugada pelo exército alemão eu, uma menina de 9 anos, fui levada à frente do Teatro Municipal para cantar a Marselhesa. Todos choravam e eu também chorei por imitação – é verdade – porque era aniversário de uma amiga e eu não iria. Esta lembrança me veio ao acordar em francês no primeiro dia deste ano: nunca tinha me dado conta! Reveillon significa Acordemos! Para que? Para um novo ano, para novos desafios, para novas empreitadas e sei lá eu mais o que.

Fazem-se planos, promessas, tomam-se decisões seriíssimas como perder 10 quilos, deixar de fumar, procurar o amor perdido caindo de joelhos, pedindo desculpas, implorando por uma nova chance. O engraçado é que se está, quase sempre, em meio a muita gente e as decisões tomadas são sempre individuais. Beija-se a pessoa que está ao lado, marido, namorado ou, hoje em dia, um ficante, pensando-se: este ano “eu”... 

No entanto acordar é necessário no todo dia. Acordar mesmo. Literalmente. Tirar os pés da cama e andar em frente. Ficar parada é que não dá pé. Isto não parece ser um grande problema mas... o problema não é o “andar”. É o “em frente”, significando um rumo certo para chegar a algum lugar. Agora – penso - danou-se! O “certo” pesa pra valer, tornando o problema imenso. O que é certo? Nem estou pensando no “certo” com um viés moral. Não! É o certo para cada um. Aquela opção que vai nos fazer bem. A gente passa a vida escolhendo entre opções, né? E nem sempre as certas.

Fica-se adulto no momento em que se percebe que ao fazê-las – as opções – se ganha alguma coisa e se perde outra. E fica-se velho, numa boa, quando não se culpa o mundo, a má sorte, alguém ou “alguéns”, pelo que deu errado. Fácil? Quem falou?! Não é, não. Nem um pouco. Mas faz parte do “réveillon”. Está nele embutido com todos os “fff e rrr” mesmo que “réveillon” não os tenha grafados. Ao pensar “fica-se velho”, surpreendo-me: não “acordei” para isto antes que ocorresse! 

É claro que pensava, nos idos da mocidade – e põe idos nisto - em aposentadoria, por exemplo. Discutia valores e fazia projeções (bem mais otimistas do que se revelou a realidade), mas, nestas projeções, estranhamente, nunca me vi velha. E um dia - pareceu-me que repentinamente - fiquei! E até que dei sorte: sem que houvesse planejado, meus maiores prazeres eram permitidos para a mais avançada idade desde que e enquanto a cabeça ajudasse: ler, ouvir música e conversar.

Para o desempenho deste último verbo as substantivas leitura e música irão garantir assunto, no momento em que dificuldades de locomoção não mais permitirem colecioná-los no mundo dos seres circulantes. No “réveillon” de todos os dias a grande “trouvaille” (penso em francês, imitando mamãe) é acordar para acumular prazeres, garantindo uma velhice que me permitirá, pedindo licença ao poeta, “chegar humana ao mar da morte”. 

2005

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