segunda-feira, outubro 28, 2013

A MENINA TANGARELA E O AMOR

        Não minha gente. Não errei a grafia. Foi criada por um estudante ao responder uma questão formulada num vestibular! E sabe-se lá por que razão achei que o som da palavra assim grafada reflete mais o sentido. Ao tomar conhecimento desta nova forma apareceu viva a imagem de uma menina “tangarela” com quem mantive um extraordinário diálogo. O ano era 1969; o local um avião; o percurso Rio/Brasília. Eu estava intranquila. Na verdade estava mesmo era com medo. Minha casa funcionava, naquela época, como refugio ocasional de pessoas procuradas pela ditadura. Em viagem o medo piorava porque a qualquer momento poderia ser um destino sem volta. Aeroporto era um lugar perigoso, naquela época. Foi com alívio que observei a menina que se sentava a meu lado.

Uns 18 anos, tipo hippie de fim de semana e muito bonita. O medo voltou ao ver sentar-se ao lado dela um empertigado senhor que vestia o terno como quem veste uma farda.  A menina não parava de falar. Ia visitar o namorado e dele fiquei sabendo tudo. A desaprovação do senhor sobre o que ouvia era visível em seu rosto. Quase chegando a Brasília ela pediu um copo d’água para tomar um remédio. O olhar do senhor disse tudo: remédio, coisa nenhuma! Olhou ameaçador a inofensiva pastilha de dramamina sendo ingerida. O olhar deve ter assustado a menina que derrubou o copo soltando um sonoro “Merda!”. O terrível olhar transformou-se em uma terrível censura. Ela voltou-se para mim.

-   Molhou a senhora?
-   Graças a Deus, não! Vou direto para uma reunião. Não ia dar para trocar de roupa.
-   E não podia ir molhada?
-   Claro que não!
-  É porque a senhora é formal. Eu não sou. Sou contra qualquer formalidade. Todas têm que acabar. Liberdade não existe quando existe formalidade.

O senhor inclinou-se para frente, olhar duro, exigindo de mim uma resposta à altura.

-   Mas pelo menos uma formalidade você segue.
-   Eu?! Imagina!
-   Você só me chama de senhora. Isto é uma formalidade.

A menina me olhou com assombro.

-   Ora, isso é...
-  ... formalidade. Eu não chamei você de senhorita!

O terreno estava se revelando perigoso e ela partiu para marcar território numa tentativa de me chocar. Vai daí que declarou num tom agressivo.

-  Sou pelo amor livre. O que é que a sen... você acha disto?
-  Acho que não pode ser de outro jeito. Quem é que pode ser a favor de um amor não livre? Todo amor é livre. Tem que ser.
-   Não é nada disso. Eu estou dizendo que ... que... vou pra cama com qualquer um que me dê vontade.

Olhei para o apopléctico general (devia ser um). Este homem vai enfartar, pensei. Voltei-me para a menina.

-  Ah! É isso! Mas me diz uma coisa: o que é tem isto a ver com amor? 
-  Acho que a sen..,. que você não entendeu nada. Eu vou explicar. A gente...
-  Precisa explicar não. Eu entendi perfeitamente. Você vai para cama com qualquer um que lhe dê na telha. Tudo bem.

A menina se assombra e o general bufa em minha direção.

-   Tudo bem como?!!!
-  Tudo bem, se é isto que você quer e gosta. A minha discordância é que isto seja amor. É inviável. Não dá tempo.
-   Não dá tempo de que?!!!
-   De amar, ora. Precisa um mínimo de tempo pra isso, você não acha?  É a mesma coisa que você olhar um prato de comida que nunca comeu e dizer: como isto é gostoso!

A menina me olhou insegura e o general com horror.

-   Vai dizer que eu não posso olhar o prato e pensar que é gostoso.
-  Claro que pode. E até deve, sabe? Mas não pode ter certeza de que é. Isto que você faz não é amor. É atração. É desejo. Mas vocês dizem tesão, não é?

O General estrebuchou na cadeira, acompanhado da pela trilha musical do grito da menina.

-   Caramba! Você tem filhos?
-   Tenho. A mais velha deve ter sua idade.  
-   E você é capaz de dizer uma coisa destas para ela?
-   Se ela achar que amor é isto vou dizer uma coisa destas, sim.

A “tangarela” emudeceu, rosto bonito refletindo confusão enquanto o rosto crispado do General procurava furiosamente um motivo para me enquadrar como uma ameaça à segurança nacional. Vai ver era um “legalista” porque naquela época motivo não era necessário. Para sorte minha, não encontrou. 

As rodas do avião tocaram o solo e a menina “tangarela” sorriu. Um sorriso doce, bonito de se ver.

-  Sabe? Com meu namorado... a gente teve tempo. Então      do jeito que você falou é amor, né? 

E foi sorrindo que eu respondi:

-  E livre, meu bem! 
 2006


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