Não minha gente. Não errei a grafia.
Foi criada por um estudante ao responder uma questão formulada num vestibular! E
sabe-se lá por que razão achei que o som da palavra assim grafada reflete mais
o sentido. Ao tomar conhecimento desta nova forma apareceu viva a imagem de uma
menina “tangarela” com quem mantive um extraordinário diálogo. O ano era 1969;
o local um avião; o percurso Rio/Brasília. Eu estava intranquila. Na verdade
estava mesmo era com medo. Minha casa funcionava, naquela época, como refugio
ocasional de pessoas procuradas pela ditadura. Em viagem o medo piorava porque
a qualquer momento poderia ser um destino sem volta. Aeroporto era um lugar perigoso, naquela época. Foi com alívio que
observei a menina que se sentava a meu lado.
Uns
18 anos, tipo hippie de fim de semana e muito bonita. O medo voltou ao ver
sentar-se ao lado dela um empertigado senhor que vestia o terno como quem veste
uma farda. A menina não parava de falar.
Ia visitar o namorado e dele fiquei sabendo tudo. A desaprovação do senhor
sobre o que ouvia era visível em seu rosto. Quase chegando a Brasília ela pediu um copo
d’água para tomar um remédio. O olhar do senhor disse tudo: remédio, coisa
nenhuma! Olhou ameaçador a inofensiva pastilha de dramamina sendo ingerida. O
olhar deve ter assustado a menina que derrubou o copo soltando um sonoro “Merda!”. O
terrível olhar transformou-se em uma terrível censura. Ela voltou-se para mim.
- Molhou a senhora?
- Graças a Deus, não! Vou direto para uma
reunião. Não ia dar para trocar de roupa.
- E não podia ir molhada?
- Claro que não!
- É porque a senhora é formal. Eu não sou. Sou
contra qualquer formalidade. Todas têm que acabar. Liberdade não existe quando
existe formalidade.
O
senhor inclinou-se para frente, olhar duro, exigindo de mim uma resposta à
altura.
- Mas pelo menos uma formalidade você segue.
- Eu?! Imagina!
- Você só me chama de senhora. Isto é
uma formalidade.
A
menina me olhou com assombro.
- Ora, isso é...
- ... formalidade. Eu não
chamei você de senhorita!
O
terreno estava se revelando perigoso e ela partiu para marcar território numa
tentativa de me chocar. Vai daí que declarou num tom agressivo.
- Sou pelo amor livre. O que é que a sen...
você acha disto?
- Acho que não pode ser de outro jeito. Quem é
que pode ser a favor de um amor não livre? Todo amor é livre. Tem que ser.
- Não é nada disso. Eu estou dizendo que ...
que... vou pra cama com qualquer um que me dê vontade.
Olhei
para o apopléctico general (devia ser um). Este homem vai enfartar, pensei. Voltei-me para a menina.
- Ah! É isso! Mas me diz uma coisa: o que é tem
isto a ver com amor?
- Acho que a sen..,. que você não entendeu nada. Eu vou explicar. A gente...
- Precisa explicar não. Eu entendi
perfeitamente. Você vai para cama com qualquer um que lhe dê na telha. Tudo
bem.
A
menina se assombra e o general bufa em minha direção.
- Tudo bem como?!!!
- Tudo bem, se é isto que você quer e gosta. A
minha discordância é que isto seja amor. É inviável. Não dá tempo.
- Não dá tempo de que?!!!
- De amar, ora. Precisa um mínimo de tempo pra
isso, você não acha? É a mesma coisa que
você olhar um prato de comida que nunca comeu e dizer: como isto é gostoso!
A
menina me olhou insegura e o general com horror.
- Vai dizer que eu não posso olhar o prato e
pensar que é gostoso.
- Claro que pode. E até deve, sabe? Mas não
pode ter certeza de que é. Isto que você faz não é amor. É atração. É desejo.
Mas vocês dizem tesão, não é?
O
General estrebuchou na cadeira, acompanhado da pela trilha musical do grito da
menina.
- Caramba! Você tem filhos?
- Tenho. A mais velha deve ter sua idade.
- E você é capaz de dizer uma coisa destas para
ela?
- Se ela achar que amor é isto vou dizer uma
coisa destas, sim.
A
“tangarela” emudeceu, rosto bonito refletindo confusão enquanto o rosto crispado
do General procurava furiosamente um motivo para me enquadrar como uma ameaça à
segurança nacional. Vai ver era um “legalista” porque naquela época motivo não
era necessário. Para sorte minha, não encontrou.
As rodas do avião tocaram o solo e a menina “tangarela” sorriu. Um sorriso doce, bonito de se ver.
- Sabe? Com meu namorado... a gente teve tempo. Então do jeito que você falou é amor, né?
E foi sorrindo que eu respondi:
- E livre, meu bem!
2006
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