domingo, outubro 27, 2013

REVEILLON COM OS MEUS

Olho incrédula para o convite: Reveillon da Terceira Idade! Eu, heim?! Até pra convite sou assim, rotulada! Irritada, rasgo o cartão. Mas ficam martelando em minha cabeça, o valor do ingresso e a programação anunciada: cem reais para ouvir orquestra do “nosso tempo”. Engraçado! Não falaram em dançar... Vai ver acham que seria demasiado esforço ou mesmo uma impossibilidade. Penso maldosa: no caso o ouvir a “orquestra do nosso tempo” pode ser também uma impossibilidade!

Pior é o alerta: você estará entre os seus! Que meus, cara pálida?! Coisa mais maluca. Sabem eles lá quem são os meus? Pra falar a verdade nem mesmo eu conseguiria relacionar todos os "meus" que povoaram minha já tão longa vida.  “Meus” que já partiram, “meus” que sempre o foram e permanecem sendo, “meus” novos que chegam sem aviso numa surpresa gostosa. E, certamente, novos ainda “meus” surgirão. Jamais imaginei classificá-los por idade. Este nunca foi um dado determinante de minhas inclusões na categoria “meus”.

Outro dia mesmo um novo “meu” surgiu trazendo solução para um grande problema: o filho de seu Álvaro. Seu Álvaro era um “meu” há mais de 40 anos. Um encanto de pessoa que manteve viva e ativa a jurássica máquina de lavar que eu teimo em conservar. Mas seu Álvaro se foi. Doeu. Seu Álvaro fez falta. Era um “meu” de respeito. Mas eis que o filho de seu Álvaro – Alvinho – que já conhecia pelas histórias do pai na hora do cafezinho, veio em meu socorro. O mesmo jeito, o mesmo sorriso, a mesma tranqüilidade de resolver qualquer enguiço. Tornou-se um “meu”. Não vou passar o reveillon com ele, mas isto acontecesse teria o maior sentido.

A Jô, faxineira, também não vai passar o reveillon comigo. Não tenho a menor ideia de onde estará ela nesta hora festejada. Provavelmente com o namorado, cego de um olho, um negão pra lá de simpático e a filha, mulata linda de morrer. Jô é um dos melhores “meus” que tenho. Com ela nunca passei o reveillon, mas passo a vida, desde sei lá quando, no diário do macio das roupas lavadas e da casa mais que limpa, onde ela deixa sua presença perfumada quando se vai.

E o Zé porteiro? Com este até que passei um reveillon. Havia decidido que não decidiria por qualquer dos lugares possíveis em companhia de “meus” viventes. Queria mais era ficar em casa sozinha, mas não solitária, com meus livros, com meus discos e com os “meus” que já se foram, sempre presentes e atuais e com os quais mantenho, esquizofrênica, longas e deliciosas conversas. Quase à meia noite lembrei que o Zé estava de serviço na portaria. Atraquei-me a uma garrafa de champagne e a duas taças e precipitei-me elevador abaixo. Ficamos conversando tomando champagne e ouvindo o barulho dos fogos. Ele já era um “meu”, desde que tinha vindo morar ali e vigiava meu filho mais moço, um pequeno demônio. Nesta noite Zé ficou sendo mais “meu” ainda de tanto que conversamos sobre os respectivos “nossos”.

Um pensamento ataca: tenho meus da minha idade? Sorrio na lembrança das “primas”. A mais moça nos recém sessenta e a mais velha regulando comigo. São sete ao todo. Vez por outra nos reunimos para um chá. O último foi até de madrugada. Em cada um destes chás (nos quais toma-se tudo menos chá) revelações estarrecedoras se fazem. Segredos da adolescência e da infância que foram assim classificados porque na época sua revelação teria efeitos devastadores. Você também namorou Roberto?! A descoberta de que o belo primo conquistou de forma sequencial três de nós, sem que ninguém jamais houvesse desconfiado, provoca gargalhadas. Positivamente as primas são “meus”.

Mas a maioria, a grande maioria dos “meus” é jovem, muito mais jovem do que eu. O mais moço é Ricardinho que está com uns cinco anos e que continua a tentar atropelar-me nos pilotis, agora com uma bicicleta ao invés de velocípede. Ricardinho provavelmente estará dormindo na hora da virada e não seria razoável convidá-lo para um reveillon. Ele é um “meu” matinal. Lá isto é.

E os “meus” de carteirinha? Amigos daqueles que aceitam a gente pelo conjunto da obra seja esta obra boa ou não. São poucos, mas são “meus” pra valer, para o que der e vier. E tem os “meus” cadeira cativa, atávicos. Os filhos, o irmão, a cunhada, os sobrinhos, as netas, seus namorados, o genro e a nora. Esta última é recente. Um meu surgido na surpresa que me deixou sem fala ao anúncio do filho (aquele que era um demônio!): vou me casar na semana que vem! E não é que a menina tornou-se um meu! Nunca os reuni a todos num reveillon. E precisa? Sempre que estão juntos, a visão do que foram e do que – imagino – serão, se faz presente. É só pousar o olhar em cada um deles e os vejo com a nitidez e a beleza de um filme de época, desde que surgiram e se instalaram como “meus”. O sonho e o desejo fabricam a visão do pra frente lá deles, num ano novo que se anuncia todos os dias. 

Dou-me conta que ainda não decidi sobre o reveillon deste ano. Mas uma coisa é certa, esteja onde estiver, estarão nele presentes, na realidade ou na lembrança, todos os “meus” de minha vida. Como sempre.
2005




Nenhum comentário:

Postar um comentário