Olho incrédula para o convite: Reveillon da Terceira Idade! Eu,
heim?! Até pra convite sou assim, rotulada! Irritada, rasgo o cartão. Mas
ficam martelando em minha cabeça, o valor do ingresso e a programação
anunciada: cem reais para ouvir orquestra do “nosso tempo”. Engraçado! Não
falaram em dançar... Vai ver acham que seria demasiado esforço ou mesmo uma
impossibilidade. Penso maldosa: no caso o ouvir a “orquestra do nosso tempo”
pode ser também uma impossibilidade!
Pior é o alerta: você estará entre os seus! Que meus, cara
pálida?! Coisa mais maluca. Sabem eles lá quem são os meus? Pra falar a verdade
nem mesmo eu conseguiria relacionar todos os "meus" que
povoaram minha já tão longa vida. “Meus”
que já partiram, “meus” que sempre o foram e permanecem sendo, “meus” novos que
chegam sem aviso numa surpresa gostosa. E, certamente, novos ainda “meus”
surgirão. Jamais imaginei classificá-los por idade. Este nunca foi um dado
determinante de minhas inclusões na categoria “meus”.
Outro dia mesmo um novo “meu” surgiu trazendo solução para um
grande problema: o filho de seu Álvaro. Seu Álvaro era um “meu” há mais de 40
anos. Um encanto de pessoa que manteve viva e ativa a jurássica máquina de
lavar que eu teimo em conservar. Mas seu Álvaro se foi. Doeu. Seu Álvaro fez
falta. Era um “meu” de respeito. Mas eis que o filho de seu Álvaro – Alvinho –
que já conhecia pelas histórias do pai na hora do cafezinho, veio em meu
socorro. O mesmo jeito, o mesmo sorriso, a mesma tranqüilidade de resolver
qualquer enguiço. Tornou-se um “meu”. Não vou passar o reveillon com ele, mas isto
acontecesse teria o maior sentido.
A Jô, faxineira, também não vai passar o reveillon comigo. Não
tenho a menor ideia de onde estará ela nesta hora festejada. Provavelmente
com o namorado, cego de um olho, um negão pra lá de simpático e a filha, mulata
linda de morrer. Jô é um dos melhores “meus” que tenho. Com ela nunca passei o
reveillon, mas passo a vida, desde sei lá quando, no diário do macio das roupas
lavadas e da casa mais que limpa, onde ela deixa sua presença perfumada quando
se vai.
E o Zé porteiro? Com este até que passei um reveillon. Havia
decidido que não decidiria por qualquer dos lugares possíveis em companhia de
“meus” viventes. Queria mais era ficar em casa sozinha, mas não solitária, com
meus livros, com meus discos e com os “meus” que já se foram, sempre presentes
e atuais e com os quais mantenho, esquizofrênica, longas e deliciosas
conversas. Quase à meia noite lembrei que o Zé estava de serviço na portaria.
Atraquei-me a uma garrafa de champagne e a duas taças e precipitei-me elevador
abaixo. Ficamos conversando tomando champagne e ouvindo o barulho dos fogos.
Ele já era um “meu”, desde que tinha vindo morar ali e vigiava meu filho mais
moço, um pequeno demônio. Nesta noite Zé ficou sendo mais “meu” ainda de tanto
que conversamos sobre os respectivos “nossos”.
Um pensamento ataca: tenho meus da minha idade? Sorrio na
lembrança das “primas”. A mais moça nos recém sessenta e a mais velha regulando
comigo. São sete ao todo. Vez por outra nos reunimos para um chá. O último foi
até de madrugada. Em cada um destes chás (nos quais toma-se tudo menos chá)
revelações estarrecedoras se fazem. Segredos da adolescência e da infância que
foram assim classificados porque na época sua revelação teria efeitos
devastadores. Você também namorou Roberto?! A descoberta de que o belo primo
conquistou de forma sequencial três de nós, sem que ninguém jamais houvesse
desconfiado, provoca gargalhadas. Positivamente as primas são “meus”.
Mas a maioria, a grande maioria dos “meus” é jovem, muito mais
jovem do que eu. O mais moço é Ricardinho que está com uns cinco anos e que
continua a tentar atropelar-me nos pilotis, agora com uma bicicleta ao invés de
velocípede. Ricardinho provavelmente estará dormindo na hora da virada e não
seria razoável convidá-lo para um reveillon. Ele é um “meu” matinal. Lá isto é.
E os “meus” de carteirinha? Amigos daqueles que aceitam a gente
pelo conjunto da obra seja esta obra boa ou não. São poucos, mas são “meus” pra
valer, para o que der e vier. E tem os “meus” cadeira cativa, atávicos. Os
filhos, o irmão, a cunhada, os sobrinhos, as netas, seus namorados, o genro e a
nora. Esta última é recente. Um meu surgido na surpresa que me deixou sem
fala ao anúncio do filho (aquele que era um demônio!): vou me casar na semana
que vem! E não é que a menina tornou-se um meu! Nunca os reuni a todos num
reveillon. E precisa? Sempre que estão juntos, a visão do que foram e do que –
imagino – serão, se faz presente. É só pousar o olhar em cada um deles e os
vejo com a nitidez e a beleza de um filme de época, desde que surgiram e se
instalaram como “meus”. O sonho e o desejo fabricam a visão do pra frente lá
deles, num ano novo que se anuncia todos os dias.
Dou-me conta que ainda não decidi sobre o reveillon deste ano. Mas
uma coisa é certa, esteja onde estiver, estarão nele presentes, na realidade ou
na lembrança, todos os “meus” de minha vida. Como sempre.
2005
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