quarta-feira, outubro 09, 2013

OUTRO MENINO E A FINITUDE

A campainha toca às oito da manhã. O ar descomposto que eu apresentava me impediu de ir logo abrindo, habito perigoso nos tempos que correm, mas do qual não me livro. O olho mágico me revela um hall deserto! Foi Deus, penso: é um assaltante que acocorado espera por jóias e dólares que não tenho! Como é mesmo aquele número da polícia? Antes que a memória retorne ouço uma batida enérgica. Olho de novo e vejo um bracinho tentando alcançar a campainha que soa em seguida. Resolvo abrir já que é provável que eu consiga enfrentar um assaltante mirim. A porta aberta revela Ricardinho com uma expressão irritada:

-      Você tava dormindo!
-      Ricardinho! Que boa surpresa! Entra, vai!
-      Eu já ando sozinho de elevador.

Uma preocupação me assalta:

-      Sua mãe sabe que você veio aqui?
-      Não sei.
-      Ela está lá em baixo?
-      Pra que você quer saber? Você não conhece minha mãe. 
-      Conheço, sim, Ricardinho.
-      Você não fala com minha mãe! 

Embatuco. De fato nunca falo com “minha mãe” que sempre me olha com desconfiança, sei lá eu por quê. Resolvo mudar a conversa que está deslizando para um campo perigoso como sempre acontece nos meus encontros com Ricardinho:

-      Mas conta, o que é que você veio fazer aqui?
-      Eu vim ver se você não morreu mesmo. Eu perguntei ao Célio       (porteiro) e ele me disse que você não tinha morrido.

Antes que eu pudesse me recobrar do espanto ou mesmo dar graças por não ser uma verdade a dúvida de Ricardinho, ele continua sério. Solene mesmo:

-      Minha avó morreu.
-      Ah! Ricardinho! Que pena. Você está triste. É ruim, não é?
 
Pergunta não respondida, a expressão de Ricardinho nada esclarece. Ele apenas olha direto em meus olhos com aquela franqueza de que só as crianças e os gatos são capazes. Não sei o que dizer. A gente apenas se olha. Ele rompe o silêncio e desde que nos conhecemos é a primeira vez que sinto insegurança em sua voz:

-      Você vai morrer agora?
-      Acho que não, Ricardinho.

Percebo que a resposta não é a esperada e desavergonhada, afirmo:

-      Não vou morrer não. Não vou mesmo. Agora vou conversar         com você.
-      Tá bom! Você sabe jogar Mico Preto?
-      Sei sim. Jogo muito bem Mico Preto.
-      Você vai parar de não ir lá em baixo? Se você não for lá em           baixo não pode jogar comigo.
-      É verdade. Acho que vou ter que deixar de não ir lá em baixo. 
-      Pra jogar Mico Preto.
-      É. Para jogar, sim.
-      Amanhã você vai. Eu levo o Mico Preto.
-      Estamos combinados. Amanhã eu vou descer e a gente joga           Mico Preto.
-      Você não vai jogar com o Alvinho.
-      Mas, Ricardinho, quanto mais gente melhor, você não acha?
-      O Alvinho não conhece você.
-      Você me mostra quem ele é e a gente joga.
-      Não!!! Ele nem sabe que você não morreu!

A lógica é irrefutável. Alvinho, creio eu, nem sabe que eu estou viva!

-        Tá certo. Ricardinho. Jogamos só nós dois.
-        A gente vai jogar todo dia.
-         Todo dia eu não sei, Ricardinho. Às vezes não vai dar. Mas         sempre que der  gente joga.  
-        Tá. Por que você não vai morrer mesmo, não é?

Promessa difícil de cumprir esta. Mas e expressão do menino exige resposta e, sobretudo exige uma que garanta o sossego daquele coraçãozinho aflito e eu minto descaradamente:

-        Não vou morrer de jeito nenhum.

Acompanho Ricardinho ao elevador. Já dentro ele me lança um de seus raros e encantadores sorrisos:

-        Amanhã eu vou ganhar de você!

O elevador parte levando meu grande amigo e a deliciosa promessa de vida eterna a que me levou Ricardinho. Sem a presença do Alvinho, é claro!
2008



Nenhum comentário:

Postar um comentário