A campainha toca às oito da manhã. O ar descomposto que eu apresentava
me impediu de ir logo abrindo, habito perigoso nos tempos que correm, mas do
qual não me livro. O olho mágico me revela um hall deserto! Foi Deus, penso: é
um assaltante que acocorado espera por jóias e dólares que não tenho! Como é
mesmo aquele número da polícia? Antes que a memória retorne ouço uma batida
enérgica. Olho de novo e vejo um bracinho tentando alcançar a campainha que soa
em seguida. Resolvo abrir já que é provável que eu consiga enfrentar um
assaltante mirim. A porta aberta revela Ricardinho com uma expressão irritada:
- Você tava
dormindo!
- Ricardinho!
Que boa surpresa! Entra, vai!
- Eu já ando
sozinho de elevador.
Uma preocupação me assalta:
- Sua mãe
sabe que você veio aqui?
- Não sei.
- Ela está
lá em baixo?
- Pra que
você quer saber? Você não conhece minha mãe.
- Conheço,
sim, Ricardinho.
- Você não
fala com minha mãe!
Embatuco. De fato nunca falo com “minha mãe” que sempre me olha com
desconfiança, sei lá eu por quê. Resolvo mudar a conversa que está deslizando
para um campo perigoso como sempre acontece nos meus encontros com Ricardinho:
- Mas conta,
o que é que você veio fazer aqui?
- Eu vim ver
se você não morreu mesmo. Eu perguntei ao Célio (porteiro) e ele me disse que
você não tinha morrido.
Antes que eu pudesse me recobrar do espanto ou mesmo dar graças por não
ser uma verdade a dúvida de Ricardinho, ele continua sério. Solene mesmo:
- Minha avó
morreu.
- Ah!
Ricardinho! Que pena. Você está triste. É ruim, não é?
Pergunta não respondida, a expressão de Ricardinho nada esclarece. Ele
apenas olha direto em meus olhos com aquela franqueza de que só as crianças e
os gatos são capazes. Não sei o que dizer. A gente apenas se olha. Ele rompe o
silêncio e desde que nos conhecemos é a primeira vez que sinto insegurança em
sua voz:
- Você vai
morrer agora?
- Acho que
não, Ricardinho.
Percebo que a resposta não é a esperada e desavergonhada, afirmo:
-
Não vou morrer não. Não vou mesmo. Agora vou
conversar com você.
- Tá bom!
Você sabe jogar Mico Preto?
- Sei sim.
Jogo muito bem Mico Preto.
- Você vai
parar de não ir lá em baixo? Se você não for lá em baixo não pode jogar comigo.
- É verdade.
Acho que vou ter que deixar de não ir lá em baixo.
- Pra jogar
Mico Preto.
- É. Para
jogar, sim.
- Amanhã
você vai. Eu levo o Mico Preto.
- Estamos
combinados. Amanhã eu vou descer e a gente joga Mico Preto.
- Você não
vai jogar com o Alvinho.
- Mas,
Ricardinho, quanto mais gente melhor, você não acha?
- O Alvinho
não conhece você.
- Você me
mostra quem ele é e a gente joga.
- Não!!! Ele
nem sabe que você não morreu!
A lógica é irrefutável. Alvinho, creio eu, nem sabe que eu estou viva!
-
Tá certo.
Ricardinho. Jogamos só nós dois.
-
A gente vai
jogar todo dia.
-
Todo dia eu não sei, Ricardinho. Às vezes não vai
dar. Mas sempre que der gente joga.
-
Tá. Por que
você não vai morrer mesmo, não é?
Promessa difícil de cumprir esta. Mas e expressão do menino exige
resposta e, sobretudo exige uma que garanta o sossego daquele coraçãozinho
aflito e eu minto descaradamente:
-
Não vou
morrer de jeito nenhum.
Acompanho Ricardinho ao elevador. Já dentro ele me lança um de seus
raros e encantadores sorrisos:
-
Amanhã eu
vou ganhar de você!
O elevador parte levando meu grande amigo e a deliciosa promessa de vida eterna a que me levou Ricardinho. Sem a presença do Alvinho, é claro!
2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário