sexta-feira, outubro 04, 2013

QUEM SOU EU?

Não! Não se trata de uma biografia. Não poderia escrevê-la porque não tive o cuidado ir construindo uma ao longo dos muitos anos, para uso externo. Existem pessoas que o fazem, não é? Falo hoje do efeito devastador de um fato resumido numa frase que li num renovado encontro com Pirandello: “somos tantos quantos aqueles que nos vêem”. A constatação de que sou várias veio há muitos anos atrás.

 Preocupado com desentendimentos que começaram a surgir entre seus subordinados o gerente de nossa divisão inventou de nos fazer comparecer a um encontro comportamental. Seríamos confinados num hotel durante três dias onde, sob a condução de um especialista em relações humanas, teríamos que refletir sobre nós mesmos. Um horror! A maioria, na qual estava eu incluída, reagiu furiosamente: estávamos atolados de trabalho e prazos nos atormentavam, como sempre. Declaramos enfáticos e revoltados que estas receitas de bolo nunca dão certo. Mas a pessoa jurídica do chefe (que como pessoa física era, e é até hoje, um muito querido e encantador amigo) exigiu. Mandou mesmo!

E vai daí que fomos introduzidos num ônibus para que fossemos encarcerados num hotel longínquo. Lembro-me que chegamos à noite e o tal do encontro começaria no dia seguinte às oito horas da manhã. Insubordinados, cinco de nós passaram a noite jogando pôquer, atirando-nos às cinco da manhã na piscina gelada para espantar o sono. Tudo que conseguimos foi entrar na sala na hora marcada com os cabelos pingando água como zumbis mal humorados.

O tal do especialista já nos esperava com cadeiras dispostas em círculo o que nos obrigava a ver alguém para qualquer direção que voltássemos o olhar. Cinco folhas de um questionário nos foram distribuídas. Em quatro delas deveríamos assinalar a existência ou não de características pré-impressas, dos quatro participantes sentados em nossa esquerda. A quinta folha deveria ser preenchida sobre nós mesmos. Um saco! Mas fazer o que? E lá fui eu assinalando quadradinhos numa certeza de julgamento que me vinha dos muitos anos de conhecimento daqueles que avaliava. Coisa mais infantil! Certeza maior me causava a que preenchi sobre mim mesma.

Findo o exercício os resultados foram tabulados e... caí da cadeira. Não me reconheci naquela pessoa descrita pelos outros. Pior ainda, os meus julgadores nem sempre concordavam entre si e muito menos comigo! Na discussão que se seguiu ficou claro que nenhum deles mentia. E nem eu. Melhor seria dizer nem eus. Porque eu havia descoberto ser várias. Se era assim no trabalho como seria fora dele? E então que me dei conta dos diversos personagens que interpreto vida afora. A profissional, a filha, a mãe, a neta, a avó, a mulher, a amiga e vai por aí. Cada uma delas tem seu script, sua movimentação, sua idade, seu aspecto físico e suas marcações, fixadas sabe-se lá por que diretor. Até se vestem de forma diferente, acreditem.
 
Lembro-me que há muitos anos atrás fui descrita como uma “pombinha sem fel”, por um indivíduo que mal conhecia, na empresa onde trabalhava. Isto provocou um ataque de riso incontido nos que escutaram esta extraordinária declaração. Eu própria tive que admitir que esta descrição passava ao largo. No entanto vai ver este doce e pipilante eu-pomba, sabe-se lá porque artes, havia se revelado em algum momento.

Às vezes me assalta uma ideia maluca. E se eu trocasse os eus? Numa versão Pai-Patrão, que certamente seria uma comédia, poderia começar a levar a personagem-avó a uma reunião para definir um sistema; a profissional ao jantar com amigos; a amiga passaria a se entender com o bombeiro que resolve mal um entupimento na cozinha e a mãe se relacionaria com o síndico enquanto a patroa falaria com as netas. Seria divertido, mas se revela impossível. Como fazer surgir estas personagens? Não tenho o menor controle sobre elas. Elas “baixam” estimuladas pela presença do interlocutor que lhes dá vida. Até mesmo por telefone!

Um “oi, vó Anna” em resposta ao “Alô” do personagem-atende-telefone desfaz a testa franzida do eu-analista de sistemas, presente antes que o telefone soasse, interrompendo a tentativa de resolver o problema de um modelo de dados. Imediatamente o eu-analista combinado com o eu-atende-telefone, bem mais jovens, envelhecem anos. E os desdobramentos? Porque existem! A personagem-avó são duas: uma surge a partir das netas mais velhas e a outra da neta criança. E aí se dá um extraordinário paradoxo: a avó-da-neta-mais-moça, que é a mais recente personagem, é a mais velha de todas! Eu-mãe se desdobra em: mãe-do-filho e mãe-da-filha, que dão origem aos corolários sogra-do-genro e sogra-da-nora.

Pirante isto, né? Ergo: a existência de um único eu positivamente não existe. Descartes me garante que não sou um fantasma: penso, portanto existo. Nem sempre penso o que devo, é verdade, mas inegavelmente penso. Descartes não sabia de nada. O certo é “pensamos, logo existimos” isto não invalida a certeza da minha(s) existência(s). O problema não é este e sim um muito mais sério e que provoca a dúvida que para qual até hoje não tenho resposta: quem sou Eu?
2006

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