Não! Não se trata de uma biografia. Não
poderia escrevê-la porque não tive o cuidado ir construindo uma ao longo dos
muitos anos, para uso externo. Existem pessoas que o fazem, não é? Falo hoje do
efeito devastador de um fato resumido numa frase que li num renovado encontro
com Pirandello: “somos tantos quantos
aqueles que nos vêem”. A constatação de que sou várias veio há muitos
anos atrás.
Preocupado com desentendimentos que começaram
a surgir entre seus subordinados o gerente de nossa divisão inventou de nos
fazer comparecer a um encontro comportamental. Seríamos confinados num hotel
durante três dias onde, sob a condução de um especialista em relações humanas,
teríamos que refletir sobre nós mesmos. Um horror! A maioria, na qual estava eu
incluída, reagiu furiosamente: estávamos atolados de trabalho e prazos nos
atormentavam, como sempre. Declaramos enfáticos e revoltados que estas receitas
de bolo nunca dão certo. Mas a pessoa jurídica do chefe (que como pessoa física
era, e é até hoje, um muito querido e encantador amigo) exigiu. Mandou mesmo!
E vai daí que fomos introduzidos num ônibus
para que fossemos encarcerados num hotel longínquo. Lembro-me que chegamos à
noite e o tal do encontro começaria no dia seguinte às oito horas da manhã.
Insubordinados, cinco de nós passaram a noite jogando pôquer, atirando-nos às
cinco da manhã na piscina gelada para espantar o sono. Tudo que conseguimos foi
entrar na sala na hora marcada com os cabelos pingando água como zumbis mal
humorados.
O tal do especialista já nos esperava com
cadeiras dispostas em círculo o que nos obrigava a ver alguém para qualquer
direção que voltássemos o olhar. Cinco folhas de um questionário nos foram
distribuídas. Em quatro delas deveríamos assinalar a existência ou não de
características pré-impressas, dos quatro participantes sentados em nossa
esquerda. A quinta folha deveria ser preenchida sobre nós mesmos. Um saco! Mas
fazer o que? E lá fui eu assinalando quadradinhos numa certeza de julgamento
que me vinha dos muitos anos de conhecimento daqueles que avaliava. Coisa mais
infantil! Certeza maior me causava a que preenchi sobre mim mesma.
Findo o exercício os resultados foram
tabulados e... caí da cadeira. Não me reconheci naquela pessoa descrita pelos
outros. Pior ainda, os meus julgadores nem sempre concordavam entre si e muito
menos comigo! Na discussão que se seguiu ficou claro que nenhum deles mentia. E
nem eu. Melhor seria dizer nem eus. Porque eu havia descoberto ser
várias. Se era assim no trabalho como seria fora dele? E então que me dei conta
dos diversos personagens que interpreto vida afora. A profissional, a filha, a
mãe, a neta, a avó, a mulher, a amiga e vai por aí. Cada uma delas tem seu
script, sua movimentação, sua idade, seu aspecto físico e suas marcações, fixadas
sabe-se lá por que diretor. Até se vestem de forma diferente, acreditem.
Lembro-me que há muitos anos atrás fui
descrita como uma “pombinha sem fel”, por um indivíduo que mal conhecia, na
empresa onde trabalhava. Isto provocou um ataque de riso incontido nos que
escutaram esta extraordinária declaração. Eu própria tive que admitir que esta
descrição passava ao largo. No entanto vai ver este doce e pipilante eu-pomba,
sabe-se lá porque artes, havia se revelado em algum momento.
Às vezes me assalta uma ideia maluca. E se eu
trocasse os eus? Numa versão Pai-Patrão, que certamente seria uma
comédia, poderia começar a levar a personagem-avó a uma reunião para definir um
sistema; a profissional ao jantar com amigos; a amiga passaria a se entender
com o bombeiro que resolve mal um entupimento na cozinha e a mãe se
relacionaria com o síndico enquanto a patroa falaria com as netas. Seria
divertido, mas se revela impossível. Como fazer surgir estas personagens? Não
tenho o menor controle sobre elas. Elas “baixam” estimuladas pela presença do
interlocutor que lhes dá vida. Até mesmo por telefone!
Um “oi, vó Anna” em resposta ao “Alô” do
personagem-atende-telefone desfaz a testa franzida do eu-analista de sistemas,
presente antes que o telefone soasse, interrompendo a tentativa de resolver o
problema de um modelo de dados. Imediatamente o eu-analista combinado com o
eu-atende-telefone, bem mais jovens, envelhecem anos. E os desdobramentos?
Porque existem! A personagem-avó são duas: uma surge a partir das netas mais
velhas e a outra da neta criança. E aí se dá um extraordinário paradoxo: a
avó-da-neta-mais-moça, que é a mais recente personagem, é a mais velha de
todas! Eu-mãe se desdobra em: mãe-do-filho e mãe-da-filha, que dão origem aos
corolários sogra-do-genro e sogra-da-nora.
Pirante isto, né? Ergo: a existência de um
único eu positivamente não existe. Descartes me garante que não sou um
fantasma: penso, portanto existo. Nem sempre penso o que devo, é verdade, mas
inegavelmente penso. Descartes não sabia de nada. O certo é “pensamos, logo
existimos” isto não invalida a certeza da minha(s) existência(s). O problema
não é este e sim um muito mais sério e que provoca a dúvida que para qual até
hoje não tenho resposta: quem sou Eu?
2006
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