segunda-feira, outubro 21, 2013

MÍMICA EQUIVOCADA

Inexplicavelmente Ely não falava inglês como era exigido a todos os oficiais aviadores. Sabe-se lá como havia conseguido passar nas provas, nada fáceis, nos anos em que cursara a escola de cadetes da Força Aérea Brasileira. Por sorte, ou propositalmente, não era um piloto de caça. Num bombardeiro sempre haveria outro piloto para quebrar o galho na falação radiofônica no idioma obrigatório da aviação internacional. No entanto nem sempre deu certo. Uma vez, pelo menos, este socorro lhe foi negado resultando numa divertida composição linguística que até hoje deve estar na memória dos controladores de voo da torre do aeroporto de Ciampino, em Roma.

Meu marido, tendo Ely como co-piloto, estava decolando de Roma e já infernizado de ter sido o único, durante toda viagem, a manter conversações pelo rádio, exigiu: pelo menos uma vez vê se consegue articular alguma coisa em inglês e pergunte à torre a hora da decolagem. Ely sorrindo com superioridade declarou: Deixa comigo! Com expressão e tom de galã cinematográfico saiu-se com uma extraordinária locução: Ciampino Tower! Ciampino Tower! What time o’clock? Tudo isto pronunciado como em português e segundo ele significando “que horas são?”! 

Pouco tempo depois deste incidente deslocaram-se meu marido e mais outros sete oficiais, entre eles Ely, para os Estados Unidos em busca de aviões Netuno recém adquiridos pela FAB. No avião que os levava tomamos carona Elsie (senhora de um dos oficiais) e eu. Eles destinavam-se à Califórnia onde se localizava a fábrica dos aviões e nós a Washington e Nova York. Antes de nos separarmos estava prevista uma estadia de quatro dias em Miami. Todos os oficiais, já vacinados contra o auxilio necessário a Ely para que ele desse conta da lista de compras que sempre trazia, exigiram que Elsie e eu o acompanhássemos fazendo as vezes de interpretes. 

A lista era enorme já que o infeliz tinha mulher, três filhos, pai, mãe, irmãos e mais uma quantidade espantosa de amigos que haviam feito encomendas. A solução era tentar uma Department Store. Com sorte encontraríamos a maior parte dos itens da lista num só lugar. Era o ano de 1959 e no Brasil estas lojas eram pouquíssimas. De fato, ao final de algumas horas havíamos eliminado uma enorme quantidade de itens que foram se acumulando em cada uma das seções para posterior pagamento e embalagem. Tudo parecia correr da melhor maneira e Eli até que não dava muito trabalho aceitando nossos palpites sem discutir.

 Mas a tragédia ocorreu quanto terminamos. Naquele tempo, estrangeiros que fizessem compras nos Estados Unidos e as mandassem entregar no aeroporto de saída poderiam ser isentados de pagar os impostos embutidos nos preços das mercadorias adquiridas desde que apresentassem o passaporte informando data, hora e o aeroporto onde deveriam ser entregues. Dirigímo-nos para a primeira seção em que havíamos comprado, escrevemos num papel as informações sobre o dia e voo da partida e treinamos Ely na apresentação do passaporte e na frase mais que simples: “no taxese na conseqüente entrega do documento. Assim que terminasse deveria se encaminhar para a seção seguinte para onde nos dirigimos para agilizar a embalagem das compras e onde se repetiria o desempenho lingüístico do no taxes, e assim por diante até que tivéssemos terminado todas as seções.

Localizadas as compras nada de Ely. Preocupadas retornamos e nos deparamos com uma cena extraordinária: acuado contra uma parede o vendedor com uma expressão apavorada tentava se defender de Ely que agitando o passaporte no ar como uma arma e gritava: I strange! I strange! Segundo nos explicou depois que acalmamos o pobre vendedor, ele havia esquecido o “no taxes” e tentava informar que era estrangeiro e o “estúpido” homem não entendia. O  “strange” aos gritos provavelmente significou algo que, convenhamos, deve ter sido mesmo assustador.

Mas a mais extraordinária façanha de Ely ocorreu na véspera de nossa partida. Havíamos saído à tarde em pequenos grupos com destinos diversos e ao nos encontrarmos todos para jantar demos por falta de Ely. Segundo seu companheiro de quarto ele não havia saído esperando um telefonema da mulher. Naquela época os telefonemas internacionais eram complicadíssimos e demoravam para ser completados. Um dos rapazes vai a busca de Ely e retorna surpreso dizendo que no quarto ele não estava. Quando já estávamos providenciando a formação de uma equipe de busca aparece o herói, com pequeno embrulho nas mãos.

Radiante nos conta que a mulher pediu que ele comprasse uma cera depilatória que não existia no Brasil e ele resolveu, num ato de extrema coragem, ir sozinho. E havia conseguido! Maravilhados perguntamos como e ele explicou: fazendo mímica e dizendo uma única palavra. Fui à drug-store farmácia e disse “my wife” e comecei a fazer gestos de arrancar os cabelos. O homenzinho entendeu logo e me deu a cera! Muito simpático ele me deu até umas batidinhas no ombro. Acho que gostou de minha performance. Incrível, não?

Elsie curiosa e já interessada em igual aquisição pediu para ver a tal cera. Leu o rótulo e deu uma gostosa gargalhada: Ely havia adquirido um tônico contra calvície! Pudera que o homenzinho deu umas batidinhas no ombro. Solidário deve ter ficado extremamente penalizado com a careca de “my wife”.


2010

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