Inexplicavelmente
Ely não falava inglês como era exigido a todos os oficiais aviadores. Sabe-se
lá como havia conseguido passar nas provas, nada fáceis, nos anos em que
cursara a escola de cadetes da Força Aérea Brasileira. Por sorte, ou
propositalmente, não era um piloto de caça. Num bombardeiro sempre haveria
outro piloto para quebrar o galho na falação radiofônica no idioma obrigatório
da aviação internacional. No entanto nem sempre deu certo. Uma vez, pelo menos,
este socorro lhe foi negado resultando numa divertida composição linguística
que até hoje deve estar na memória dos controladores de voo da torre do
aeroporto de Ciampino, em Roma.
Meu
marido, tendo Ely como co-piloto, estava decolando de Roma e já infernizado de
ter sido o único, durante toda viagem, a manter conversações pelo rádio,
exigiu: pelo menos uma vez vê se consegue
articular alguma coisa em inglês e pergunte à torre a hora da decolagem.
Ely sorrindo com superioridade declarou: Deixa
comigo! Com expressão e tom de galã cinematográfico saiu-se com uma
extraordinária locução: Ciampino Tower!
Ciampino Tower! What time o’clock? Tudo isto pronunciado como em português
e segundo ele significando “que horas são?”!
Pouco
tempo depois deste incidente deslocaram-se meu marido e mais outros sete
oficiais, entre eles Ely, para os Estados Unidos em busca de aviões Netuno
recém adquiridos pela FAB. No avião que os levava tomamos carona Elsie (senhora
de um dos oficiais) e eu. Eles destinavam-se à Califórnia onde se localizava a
fábrica dos aviões e nós a Washington e Nova York. Antes de nos separarmos
estava prevista uma estadia de quatro dias em Miami. Todos os oficiais, já
vacinados contra o auxilio necessário a Ely para que ele desse conta da lista
de compras que sempre trazia, exigiram que Elsie e eu o acompanhássemos fazendo
as vezes de interpretes.
A
lista era enorme já que o infeliz tinha mulher, três filhos, pai, mãe, irmãos e
mais uma quantidade espantosa de amigos que haviam feito encomendas. A solução
era tentar uma Department Store. Com sorte encontraríamos a maior parte dos
itens da lista num só lugar. Era o ano de 1959 e no Brasil estas lojas eram
pouquíssimas. De fato, ao final de algumas horas havíamos eliminado uma enorme
quantidade de itens que foram se acumulando em cada uma das seções para
posterior pagamento e embalagem. Tudo parecia correr da melhor maneira e Eli
até que não dava muito trabalho aceitando nossos palpites sem discutir.
Mas a tragédia ocorreu quanto terminamos.
Naquele tempo, estrangeiros que fizessem compras nos Estados Unidos e as
mandassem entregar no aeroporto de saída poderiam ser isentados de pagar os
impostos embutidos nos preços das mercadorias adquiridas desde que
apresentassem o passaporte informando data, hora e o aeroporto onde deveriam
ser entregues. Dirigímo-nos para a primeira seção em que havíamos comprado,
escrevemos num papel as informações sobre o dia e voo da partida e treinamos Ely na
apresentação do passaporte e na frase mais que simples: “no taxes” e na conseqüente entrega do documento.
Assim que terminasse deveria se encaminhar para a seção seguinte para onde nos
dirigimos para agilizar a embalagem das compras e onde se repetiria o
desempenho lingüístico do no taxes, e
assim por diante até que tivéssemos terminado todas as seções.
Localizadas
as compras nada de Ely. Preocupadas retornamos e nos deparamos com uma cena
extraordinária: acuado contra uma parede o vendedor com uma expressão apavorada
tentava se defender de Ely que agitando o passaporte no ar como uma arma e gritava:
I strange! I strange! Segundo nos
explicou depois que acalmamos o pobre vendedor, ele havia esquecido o “no
taxes” e tentava informar que era estrangeiro e o “estúpido” homem não
entendia. O “strange” aos gritos provavelmente significou algo que, convenhamos,
deve ter sido mesmo assustador.
Mas
a mais extraordinária façanha de Ely ocorreu na véspera de nossa partida.
Havíamos saído à tarde em pequenos grupos com destinos diversos e ao nos
encontrarmos todos para jantar demos por falta de Ely. Segundo seu companheiro
de quarto ele não havia saído esperando um telefonema da mulher. Naquela época
os telefonemas internacionais eram complicadíssimos e demoravam para ser
completados. Um dos rapazes vai a busca de Ely e retorna surpreso dizendo que
no quarto ele não estava. Quando já estávamos providenciando a formação de uma
equipe de busca aparece o herói, com pequeno embrulho nas mãos.
Radiante
nos conta que a mulher pediu que ele comprasse uma cera depilatória que não
existia no Brasil e ele resolveu, num ato de extrema coragem, ir sozinho. E
havia conseguido! Maravilhados perguntamos como e ele explicou: fazendo mímica e dizendo uma única palavra.
Fui à drug-store farmácia e disse “my wife” e comecei a fazer gestos de arrancar os
cabelos. O homenzinho entendeu logo e me deu a cera! Muito simpático ele me deu
até umas batidinhas no ombro. Acho que gostou de minha performance. Incrível,
não?
Elsie
curiosa e já interessada em igual aquisição pediu para ver a tal cera. Leu o
rótulo e deu uma gostosa gargalhada: Ely havia adquirido um tônico contra
calvície! Pudera que o homenzinho deu umas batidinhas no ombro. Solidário deve
ter ficado extremamente penalizado com a careca de “my wife”.
2010
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