quinta-feira, agosto 01, 2013

INCONDICIONAL APOIO MATERNO

       Ela que me perdoe. Mas a história é saborosa demais mantê-la em segredo mesmo porque ocorreu, e não por acaso, frente à vasta platéia. Somos ela e eu, bem diferentes. Ela, de uma reserva construída pela altivez que tem origem em nobres antepassados; eu, nada reservada, descendente de Pedro Álvares Cabral e, ainda por cima, por linha bastarda! Jamais lhe poderia fazer concorrência. Mas o que nela mais encanta é a forma pela qual se expressa. Num português espantosamente correto e elegante, jamais se permite a uma palavra, uma expressão, um dito, que não seja considerado de extremo bom gosto. Um tanto desatualizada é fato, mas ainda assim saborosa mesmo quando “reclame” significa “anúncio”. É a única pessoa de quem ainda escuto a palavra “detraqué” que aplica parcimoniosa a alguns desafetos. Gírias, jamais. Ao ouvir uma anedota mais picante ou quando surge na conversa algum assunto julgado “inconveniente”, como sexo ou política percebe-se um ligeiro apertar dos lábios e um franzir de testa comandando o rumo da conversa para outras paragens.

      Com o correr dos anos habituamo-nos a respeitar esta sua maneira de ser e a censura norteia as conversas com ela. Viúva, de há muito, jamais lhe passou pela cabeça um novo casamento. E muito menos lhe ocorreram quaisquer casos amorosos. Bem que havia aparecido candidatos encantados, como nós, com tanta altivez e nobreza. Mas nem pensar. A isto não se permitiria. Seu coração de há muito (mais precisamente há 53 anos) abriga uma monumental paixão: o filho. Único e arquiteto. É ele a razão dos seus dias e noites passados em louvação da beleza e inteligência deste ser extraordinário. Um deus grego redivivo, diz ela. De fato, pelas fotos que existem em profusão pela casa, é belo o rapaz, isto é, o senhor. E, também segundo nos relata, inteligente, agradável, sensível e que mais sei eu. Uma mais que confortável situação econômica permitiu que ela o presenteasse com uma cobertura, por ele projetada. Dizem que tão bela quanto o dono. Jardins suspensos na Babilônia em Ipanema.


      Começa aí o mistério: desta cobertura o filho não sai! Nunca! Que se saiba passa os dias elaborando projetos arquitetônicos de localização extremamente vaga. Não se consegue saber onde, nem para quem. Ou para o que. Solteiro é o Adônis e nunca, mas nunca mesmo, se teve notícia de um namoro, de uma ligação qualquer que fosse. Isto, evidente, sempre foi objeto de especulações sobre sua sexualidade. Nenhuma de nós, é claro, teria qualquer problema se assim fosse, mas qualquer indagação a respeito não seria admitida, tínhamos certeza. Além de demonstrar curiosidade (sentimento menor e mal são de acordo com a escala de valores de nossa amiga) seria por ela considerado grosseiro e destituído de qualquer classe. Jamais nos arriscaríamos a correr o perigo de sermos banidas de seu convívio por termos pisado na bola. Evidente que a expressão “pisar na bola” não havia sido utilizada quando do relato que nos fez do expurgo de alguém que havia ousado interpelá-la sobre o filho.


      Aos sábados, já fazia tempo, nos reuníamos em seu apartamento para um torneio de bridge. Sempre as mesmas senhoras, a mesma conversa e o mesmo chá acompanhado por madelaines (Proust era sempre citado). Mas eis que uma das parceiras muda-se para São Paulo. Para aqueles não iniciados é necessário explicar que uma mesa de bridge é obrigatoriamente formada por quatro jogadores. Como resolver? Ou ingressava alguém ou três seriam eliminadas, o que não era desejável. Nos tempos que correm não é tarefa das mais fáceis encontrar alguém que jogue bridge. A salvação veio na pessoa da prima de uma das jogadoras, recentemente chegada dos Estados Unidos onde morou durante anos. A senhora, protagonista desta crônica, decidiu que a possível parceira seria convidada para um sábado apenas. Era necessária a restrição para que fosse feito o julgamento de sua adequação ao grupo, consideradas todas as qualificações técnicas, culturais e morais desejadas e indispensáveis. 


      Foi então que se deu o extraordinário acontecimento. Esfuziante a moça (era moça) adentrou o recinto. Nem todas haviam chegado e era o momento das conversas baldias. Não houve tempo para alertá-la. Nem bem chegou passou a examinar a galeria de fotos do filho e para o horror geral, entre exclamações absolutamente inconvenientes sobre o físico do rapaz, soterrou a escandalizada progenitora sob uma avalanche de perguntas e comentários: ele costuma vir aos jogos? Não!!? É casado? Oba! Sorte minha! Vou querer conhecer este gato. Não circula? Nossa!!! E por que? Mas foi casado, não foi? Não?!!! Nunca?!!! Que estranho! Esta última observação foi seguida de um Ah, sei... que pena! Nenhum problema, é claro, mas que  desperdício! Isto foi dito com um sorriso de claro entendimento dos motivos da reclusão e do não casamento. 


     No terrível silêncio que se instalou a valorosa mãe nos mostrou a que ponto pode chegar o apoio materno. Abrindo mão de uma vida de frases impecáveis e mostrando um extraordinário poder de concisão, colocou um ponto final na maledicência e nos maus pensamentos que, segundo seus parâmetros, acometiam a moça e numa uma voz firme e grave disparou a extraordinária declaração: meu filho não sai de casa e não se relaciona socialmente porque, há anos (pausa dramática) está comendo a vizinha!

2005



2 comentários:

  1. Anna,
    Desta vez, voce leva o leitor para um final surpreendente e contraditorio.

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  2. Não me dê este crédito, José! A vida é que é surpreendente e contraditória, A história é verdadeira. Meu único mérito foi contar, Que bom vê-lo sempre por aqui. Abraços Anna Maria

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