Quer dizer, não é propriamente de família o segredo já que
ela - hoje octogenária - é a única que dele tem conhecimento. E vai morrer com
ela. Poderia até ser revelado sem problema algum. Ao contrário, divertiria a
geração dos bisnetos da Mãe, hoje adultos. Mas aquilo que se passou em meados
dos anos 30, só revelado quarenta anos depois, teria causado uma devastação na inocente
responsável pelo horror.
Entre todos os membros daquela extraordinária família a Mãe
era a que mais tinha herdado os valores um tanto esdrúxulos. Os “pode” e “não
pode”, nada ortodoxos, nela tinham uma fiel guardiã. Vai daí que numa época em
que mulheres não fumavam e nem andavam de calça comprida, todas as da família o
faziam. Pessoas que não sabiam beber eram execradas. Falar de dinheiro era
considerado um horror! Não falar francês era de uma enorme ignorância. As
crianças não conferiam a senhoria aos mais velhos dirigindo-se a todos com o
“você” tão intimo. Não saber se ter à mesa, sempre servida à francesa, era considerado
uma falta gravíssima e assim que a faca e o garfo pudessem ser manejados os
pequeninos passavam a fazer parte das refeições ouvindo as conversas as mais
absurdas e comendo alcachofra com talheres próprios (uma estranha pinça
manejada pelo polegar e indicador).
Neste cenário ela – a octogenária de hoje – tinha asma! Um
horror que atormentava a todos e que nem mesmo o Tio Pediatra conseguia dar
jeito. Vinha sem que se soubesse por que, impedindo tudo que era de mais gostoso
na vida: os cavalos, a piscina, os jogos e tudo mais. E, sobretudo, o sono. Quando
o acesso se instalava o clima ficava pesado na casa. Até os empregados sofriam.
Buscando o ar a meninazinha nos seus cinco anos chiava, guinchava observada
pelas fisionomias tristes e preocupadas de todo clã. Havia-se tentado tudo e
nada dava jeito.
Até o dia em que um empregado do sítio e dele morador, como o
eram todos, apareceu com aquelas folhinhas e declarou: é só deixar secar e queimar na cabeceira da cama quando ela for dormir.
A fumaça vai fazer passar esta coisa ruim. Baixo as gargalhadas do Tio
Pediatra, a Mãe em desespero topou a
parada. Secadas ao sol as folhinhas foram maceradas e instaladas num pequeno
fogareiro de barro aguardando o próximo acesso. E este veio como era previsto.
Toda família assistiu ao deitar da menina sufocada e a
instalação e acionamento do fogareiro. E lá veio a fumacinha com um cheiro
estranho que ela até hoje guarda na memória olfativa. Mais que isto lembra-se do
estranho bem estar começou a se instalar. Em meio à fumaça viu a cabeça de seu
cavalo albino e ele estava rindo. Rindo pra ela. Coisa que ela sempre quis que
ele fizesse. Sorriu também e foi assim que dormiu para assombro de todos. Era
visível o efeito mágico.
A partir deste dia o salvador ficou encarregado de manter o
estoque de folhinhas em dia. E tome a fumacinha que se não tinha um efeito
curador garantia a noite de sono e um monumental conforto. Tanto que a menina
gostaria que mesmo sem asma ela embalasse seu sono. Era tão bonito o que via o
cavalo albino fazer. Implorou a Mãe que instalasse o fogareiro todas as noites,
mesmo sem asma. Esta achou de bom alvitre não ceder: em excesso podia fazer
mal! Uma pena. Por que era gostoso mesmo.
Esta defumação durou uns quatro anos sempre trazendo enorme
alívio até que repentinamente, como havia se instalado, a asma misteriosamente
se foi para todo sempre. E ela sentiu saudade. Não da asma, mas da fumaça. Com
o tempo a adolescência e os namorados se encarregaram de varrer da memória as
peripécias da infância que só voltaram muito mais tarde. Os filhos que vieram
quando ainda muito jovem não herdaram, felizmente, o suplício da asma.
Foi só nos anos setenta que o segredo se revelou em toda sua
intensidade. E isto ocorreu na praia numa linda manhã de verão. O grupo se reunia
sempre no mesmo ponto, em Ipanema. Deitada em baixo da barraca ela escutava a
conversa animada dos outros quando de repente veio o susto: o cheiro! O cheiro
da fumacinha estava inundando a areia! Senta-se assustada. Por que esta
lembrança agora? Se dá conta que não é a memória que faz das suas. O cheiro
estava mesmo atuando. Pergunta aos outros:
vocês estão sentindo um cheiro estranho? Assombrada escuta a resposta num
tom mais que natural: é maconha. 'Tão
fumando naquela barraca ali. Vai dizer que você nunca sentiu? Com dificuldade consegue impedir a
verbalização espantosa: desde os cinco
anos. Eu sempre dormia num barato.
Estava tudo explicado: as visões do cavalo albino, o bem
estar, a vontade de que aquela sensação se repetisse todas as noites: sua mãe, aquela
santa senhora, a havia viciado! Ela precisa saber disto, pensa. E é com alegre
antecipação que à tarde demanda à casa da mãe para relatar a divertida
história. Mas antes que o possa fazer a Mãe, indignada, começa a contar que
despediu o motorista (que para ela era chauffeur
dito sempre com a pronúncia impecável) porque soube que ele fumava maconha! Uma desmoralização! Um horror! Maconha e
maconheiros eram positivamente um inegável e execrável “não pode”. E foi ai que
percebeu que não poderia revelar ter sido a Mãe responsável por suas noturnas e
reconfortantes viagens alucinatórias. Mas que deu uma saudade enorme do sorridente
cavalo albino, lá isso deu!
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