O coração deu um tranco e ela murmurou: eu posso levar. Ele mora tão perto... A tia sorri: ótimo! Vou avisar que vai por você. Ela
sai agarrada ao embrulho que lhe abrirá as portas da casa do Poeta. Já o havia
visto, muitas vezes, em casa da tia ou na sua própria, amigo que era do pai.
Mas sempre em jantares e almoços onde são tantos os famosos que ela passa
despercebida. Agora em seus 14 anos recém-feitos, fica olhando, só olhando.
Devorando com os olhos aqueles monstros que são capazes de produzir tanta beleza.
Entre
eles o Poeta é o maior. O maior de todos. Idade para ser seu pai, ele tem, é
verdade. Mesmo assim o coração bate mais forte. Sonha: Quem sabe agora... Vamos
estar sozinhos, eu e ele. E na casa dele! O bonde de Laranjeiras a Copacabana
transforma-se no veículo do sonho. Numa tela são projetadas imagens dela e
dele, perdidos numa conversa emocionada. Olho no olho. Mão na mão! Outro
sobressalto: o que é que eu vou dizer pra ele? Meu Deus! Ele vive de palavras e
as minhas... Tem que encontrar aquela.
Aquela única que vai soar bonito. Instigante. Que vai dar poesia. É isto! Que
vai dar poesia.
Acorda do sonho quase passando do ponto em que deveria
descer. Não o da casa dele. Da casa dela. Tem que se tornar bela para o
encontro. Por que é um encontro, não é? Banho, escova de cabelo, perfume “Mais
Oui”, tão sugestivo. Pinga algumas gotas no embrulho. Por que não? Afinal
passará das mãos dela para as dele. É o elo. A ponte. O motivo. O pretexto.
Espera o anoitecer mais romântico e vai a pé. Nem sente o chão. Vai flutuando pensando na
primeira frase que dirá docemente provocante: lembra de mim? Instigante e
ao mesmo tempo de bom gosto. Não lhe passam pela cabeça as respostas mais
prováveis: você é uma das sobrinhas, não
é? Ou então “não é a filha de...? O
“uma das” e o “filha de” seriam mortais.
Mas ela não se dá conta de que poderiam ser estes os ditos. Ao contrário
as respostas que imagina são lindas: de
há muito observo você. Não tive
coragem de... De que, Meu Deus? Não! Vai ser só “de há muito”. E ela dirá
provocativa: por quê? Por que me observa
tanto? Ai, sim, ele...ah.. ele...
Vem a emoção do que se seguirá e aperta o embrulho contra o
peito. Assusta-se com a intensidade do perfume. E se ele pensar que foi posto
pela tia? Que horror. Por que foi fazer isto?! Agora não tem mais jeito. Mas se
ela chegar bem perto dele, bem perto mesmo ele vai sentir que é o seu perfume.
Fica alguns minutos parada em frente ao prédio. Precisa curtir a emoção mais um
pouco. Naquele mesmo lugar quando partir, noite alta, o mundo estará mudado.
Nada mais será como antes. Quem sabe vai levar consigo um poema? Pequeno que
seja, mas dela.
Aperta a campainha e ajeita o doce sorriso. É uma empregada!
Que droga! E agora? Corajosa declara: é
pra entregar em mãos! A mulher some e ela examina a sala onde ele vive e
onde, quem sabe, fabrica os versos andando de um lado para outro, olhando às
vezes pela janela. Assusta-se com a voz: como
vai menina? Sua tia me disse que vinha. Já está uma moça, heim? As mãos
avançam para pegar o embrulho que ela estende em mudo desespero.
Cruel, indiferente ao sofrimento dela, ele continua: estava ouvindo o jogo do Fluminense. Você
gosta de futebol? Mas senta aí. Quer uma laranjada? Deixa-se cair no sofá
derrotada, humilhada pelo futebol e naufragada na laranja. Um poeta?! Pode
isto?! Não só pode como piora: e seu pai,
como vai? Faz tempo que não o vejo. Passa da conta! Tem que meter pai no
meio? Sufocada sente que vai chorar. Levanta-se e diz a frase que nunca
imaginou dizer: tenho que ir. Vim só entregar. Ele sorri: você foi uma flor em trazer. Me fez um enorme favor. Uma flor? Quem sabe ainda há esperança? Mas
ele continua impiedoso: já está uma moça
mesmo. Andando por ai sozinha...
trazendo encomendas. Que frase idiota. Cretino, ela pensa. Velho cretino!
Sorri falsa: boa noite! Ele a acompanha até a porta que felizmente se
fecha antes que as lágrimas comecem a brotar.
O desencanto e a raiva conduzem seus passos rua acima. O chão
agora é sólido, duro. Já é noite e as pessoas passam apressadas ignorando que
ali está alguém que sofre a tragédia do amor traído. Em casa tranca-se no
quarto para sofrer. Sofrer bastante. Meio ao sofrimento as batidas do irmão na
porta: tão chamando pra jantar! Gente
insensível! Como é que se pode comer numa hora destas?
Para piorar a mãe havia falado no telefone com a Tia: ela me disse que você foi entregar um livro
que ela mandou. Esteve com ele? Antes
de responder, pensa: esta família não respeita a intimidade das pessoas. Responde lacônica: estive. E o pai se encarrega de piorar: há tempos não o vejo. Sabia que
ele também é Fluminense? E ninguém entende porque ela se levanta derrubando
a cadeira. Não sou fluminense. Odeio futebol. E ele é um velho gagá. Subindo a
escada em lágrimas, com vontade de morrer, ainda escuta a voz do pai
perguntando à mãe: quando é que vão
cessar estas crises de adolescência? E
por que raios dão sempre na hora de jantar?
2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário